DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Fry et al.

 

Debate on the paper by Fry et al.

 

 

Kenneth Rochel de Camargo Jr.

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. kenneth@uerj.br

 

 

Rediscutindo a pauperização

O artigo de Fry et al. propõe um debate estrategicamente relevante no momento, tendo em vista a crescente pressão pela "racialização" de políticas públicas em nosso país, como resposta às desigualdades sociais e econômicas relacionadas à cor da pele dos indivíduos: estas desigualdades estariam se traduzindo também numa "racialização" da epidemia de HIV/AIDS?

Os autores apontam, corretamente, a meu ver, o quanto a discussão desse e de outros temas relacionados aos efeitos do racismo e possíveis respostas ao mesmo tem sido prejudicada (ou quase interditada) pela crescente politização desta questão, o que tem feito com que o próprio conceito de "raça", a rigor desprovido de qualquer sentido, passe a ser reificado, passando a servir de base para argumentos que não necessariamente se sustentam em fenômenos empiricamente observáveis.

No que diz respeito especificamente a essa parte do argumento dos autores, é difícil não concordar. De fato, há problemas metodológicos importantes na operacionalização da variável "raça" em pesquisas epidemiológicas, precisamente pelas razões apontadas pelos autores, a saber: fragilidade teórica do construto 1; diversidade de modalidades de codificação da variável (auto versus hetero classificação); má qualidade da informação relativa à variável nas bases de dados de saúde; inclusão recente da variável nestas bases. Tomados em conjunto, esses fatores aconselham extrema cautela na utilização dessa variável como base para a formulação de políticas públicas na área de saúde coletiva. De qualquer modo, como os próprios autores assinalam, embora as informações epidemiológicas constituam um importante recurso para a formulação e acompanhamento da execução de políticas, planos e projetos, seria um grave equívoco tecnocrático tomá-las como a única base a ser considerada.

A mesma cautela, contudo, deveria ser utilizada na discussão sobre pauperização, que é feita de forma algo ligeira pelos autores, a meu ver, e é sobre este ângulo que gostaria de me deter no meu comentário.

O que se descreve como pauperização é a tendência que a epidemia de HIV/AIDS no Brasil teria, uma vez tendo os primeiros casos acometido diferencialmente indivíduos melhor situados do ponto de vista sócio-econômico, de progressivamente se difundir em direção às camadas mais pobres da população. A dificuldade de mensuração desse fenômeno reside, como na epidemiologia social de um modo geral, em como captar adequadamente a situação sócio-econômica dos indivíduos pesquisados. Como apontado pelos autores no seu texto, considera-se, com base em diversos estudos epidemiológicos, que o grau de escolaridade é uma variável que fornece uma aproximação adequada daquela situação 2. Avaliações anteriores da evolução temporal dessa variável nos bancos de dados disponíveis (especialmente o SINAN) apontavam para o aumento proporcional de casos entre os menos instruídos, e redução proporcional entre aqueles com maior grau de instrução 2. Isso foi corroborado por outros estudos que mostraram, por exemplo, uma correlação entre freqüência elevada de comportamentos de risco em práticas sexuais e pior escolaridade, com efeito importante de variáveis de contexto indicadas pelas diferenças inter-regionais no país 3, ou ainda um aumento na velocidade de difusão da epidemia entre os indivíduos de menor status sócio-econômico, identificado a partir do tipo de ocupação 4. Ou seja, há um conjunto de estudos que reforçam convincentemente a hipótese de pauperização da epidemia.

Note-se, adicionalmente, que o termo se refere a uma tendência. Isso não significa que no presente já haja um predomínio da população mais desfavorecida entre as pessoas vivendo com HIV e AIDS, mas que progressivamente sua participação parece estar aumentando.

Voltando ao argumento dos autores, deve-se registrar algumas dificuldades adicionais. Apesar do DATASUS e o PN-DST/AIDS disponibilizarem o acesso à base de dados do SINAN para a realização de diversas tabulações (http://www.aids.gov.br/cgi/deftohtm.exe?tabnet/br.def, acessado em 06/Set/2006), estas não incluem, infelizmente, a variável escolaridade. A Tabela 2 apresentada pelos autores, a partir de um acesso realizado em dezembro de 2005, inclui esse dado, mas o mesmo não está disponível no momento. Isso limita a análise, portanto, aos dados publicados nos boletins epidemiológicos do PN-DST/AIDS.

Observando-se a trajetória da variável escolaridade nas tabelas apresentadas no Boletim Epidemiológico de 2003 (Ano XVII, n. 1) [há dados mais recentes no boletim de 2004, mas estes não permitem a comparação com os dados de escolaridade; eventuais diferenças, de todo modo, não são de tal monta a invalidar a argumentação que desenvolvo a seguir], observa-se que nos anos anteriores a 2000 o comportamento da variável escolaridade parecia, em termos gerais, seguir o que se esperaria como conseqüência da pauperização, ou seja, aumento entre os menos instruídos e redução proporcional entre os mais instruídos. De 2000 em diante, contudo, há uma aparente reversão dessa tendência, como se pode ver na Figura 4, que se refere aos dados para as mulheres (o gráfico para homens, não apresentado, indica um perfil semelhante). Como explicá-la?

 

 

Em primeiro lugar, deve-se considerar que a introdução do SINAN-Windows em 2000 criou uma série de problemas para a manutenção dos bancos de dados correspondentes, que aos poucos estão sendo sanados pela equipe da epidemiologia do PN-DST/AIDS, como vem sendo indicado em notas técnicas dos seguidos boletins epidemiológicos, utilizando-se técnicas de relacionamento de registros. Isso teve um impacto na qualidade geral dos dados, incluindo-se a informação sobre escolaridade, que já não era das melhores. A Figura 5 mostra a evolução ao longo do tempo do percentual de indivíduos com escolaridade desconhecida; note-se que esta proporção vinha sendo reduzida ao longo do tempo e esta tendência é invertida a partir de 2000, precisamente o período utilizado pelos autores em sua análise.

 

 

Adicionalmente, deve-se considerar a evolução temporal dessa variável na população em geral, uma vez que a escolaridade não se manteve estática no período estudado. A Figura 6 mostra a tendência temporal da escolarização das mulheres no Brasil ao longo do tempo, segundo tabulação feita a partir do site do DATASUS (http://www.datasus.gov.br, acessado em 06/Set/2006), com base nos dados das PNADs (no caso dos homens, cujos dados não são mostrados, o gráfico indica tendências semelhantes). Esse gráfico mostra que, no mesmo período, houve uma modificação importante no padrão de escolarização da população brasileira, com redução da proporção de pessoas com menor instrução e aumento da proporção dos com mais instrução. Se compararmos as proporções das pessoas com maior e menor instrução na população em geral e nos indivíduos notificados como casos de AIDS no início e final do período, é nítido que as proporções relativas nos dois grupos mostraram tendências divergentes; em outras palavras, mesmo que tenha havido um aumento da proporção de pessoas com maior instrução entre os casos de AIDS, este ainda é inferior ao que ocorreu na população geral.

Em síntese, tendo em vista o acima exposto, me parece apressado descartar a pauperização da epidemia de HIV/AIDS no Brasil como um aspecto importante de sua evolução. De qualquer modo, como os próprios autores indicam, mais estudos e uma melhoria da qualidade da informação disponível são necessários antes que se possa fazer afirmações tão categóricas sobre os rumos da epidemia em nosso país.

 

 

1. Laguardia J. O uso da variável "raça" na pesquisa em saúde. Physis (Rio J) 2004; 14:197-234.

2. Fonseca MG, Bastos FI, Derrico M, Andrade CLT, Travassos C, Szwarcwald CL. AIDS e grau de escolaridade no Brasil: evolução temporal de 1986 a 1996. Cad Saúde Pública 2000; 16 Suppl 1:77-87.

3. Szwarcwald CL, Castilho EA, Barbosa Jr. A, Gomes MRO, Costa EAMM, Maletta BV, et al. Comportamento de risco dos conscritos do Exército Brasileiro, 1998: uma apreciação da infecção pelo HIV segundo diferenciais sócio-econômicos. Cad Saúde Pública 2000; 16 Suppl 1:113-28.

4. Fonseca MGP, Travassos C, Bastos, FI, Silva, NV, Szwarcwald CL. Distribuição social da AIDS no Brasil, segundo participação no mercado de trabalho, ocupação e status sócio-econômico dos casos de 1987 a 1998. Cad Saúde Pública 2003; 19:1351-63.

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