RESENHAS BOOK REVIEWS
Leonardo de Araújo e Mota
Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil.
O TERROR E A DÁDIVA. Pereira PPG. Goiânia: Editora Vieira/Cânone Editorial; 2004. 206 pp.
ISBN: 85-89779-12-2
De maneira geral, as ciências sociais costumam apoiar suas análises do comportamento humano a partir do entendimento de vínculos sociais envolvendo interesse ou obrigação. Se os indivíduos agem de uma determinada forma é porque eles pensam em lucro ou temem sanções. Entretanto, reunindo extenso material sobre registros etnográficos, história das religiões e sistemas legais antigos, Marcel Mauss 1 propôs um terceiro paradigma para compreender a ação humana: a dádiva. Segundo Mauss, as relações humanas não poderiam restringir-se apenas às lógicas utilitaristas, pois a sociabilidade também poderia ser interpretada por meio dos atos de dar, receber e retribuir. Nas sociedades "primitivas", a dádiva representaria uma alternativa à guerra. Trocando presentes, gentilezas e bens, as tribos e clãs evitavam os conflitos, propiciando uma convivência pacífica através de sistemas de reciprocidade moral.
O termo dádiva ainda é geralmente confundido com caridade ou algum tipo de benevolência ingênua, mas não se trata disto. O que caracteriza a dádiva não é a falta de interesse, mas a ausência de cálculo. Em uma relação mercantil, a sociabilidade finda com a quitação da dívida, enquanto nas relações baseadas na dádiva o laço social é continuamente estimulado por meio de uma espécie de endividamento moral que mantém o doador vinculado ao donatário, como ocorre nas relações de amizade, hospitalidade ou camaradagem.
O texto original de Marcel Maus surgiu em 1924, mas ultimamente seu pensamento foi atualizado por meio da iniciativa de um grupo de intelectuais reunido em torno do Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), fundado em 1981 e sediado na França. No Brasil, o debate sobre a dádiva também obteve significativa repercussão, que pode ser verificada tanto mediante a publicação de obras de cunho teórico 2,3, como em trabalhos direcionados especificamente a questões de saúde pública 4,5.
É nesse sentido que surge o livro O Terror e a Dádiva, representando uma significativa contribuição ao modo de pensar os mecanismos da dádiva na sociedade contemporânea, dissertando sobre a questão da AIDS. De início, cabe destacar a meticulosa etnografia empreendida por Pereira na análise de um campo marcado pelo sofrimento, visto que o autor consegue retratar seu objeto de uma forma tão vívida que parece conduzir o leitor através de um documentário visual.
Em primeiro lugar, um trabalho dessa natureza, como observa Pereira no início do livro, dificilmente ocorre sem um comprometimento emocional do pesquisador com seu objeto, ou seja, a difícil inserção no território do indizível. Trata-se aqui de uma espécie de antropologia do sofrimento que conduz o leitor a um estado de constante perplexidade sobre a condição humana quando aviltada de suas mínimas perspectivas de esperança. Pereira descreve a vida de adultos e crianças portadores de HIV/AIDS internos em uma instituição reconhecida pelo pseudônimo de "Fraternidade", situada na periferia de Brasília, de propriedade de uma senhora cujo nome fictício é "tia Janaína", como também outras experiências vivenciadas no Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Uma questão parece permear todo o texto: pode existir solidariedade entre portadores de HIV/AIDS pobres e doentes, com vínculos familiares desgastados, egressos do sistema penal, usuários de drogas e à espera da morte, todos convivendo em uma "comunidade" semelhante a um leprosário, que mistura religião e caridade à ética manicomial e penal?
Fundada na década de 1990, a Fraternidade abrigava, na época da pesquisa, quase duzentos indivíduos em pequenas casas e barracos, além de algumas residências e um centro ecumênico. Trata-se de uma iniciativa que nasceu das convicções de voluntarismo kardecista de "tia Janaína", e funciona rejeitando a interferência do poder público e a aplicação de procedimentos clínicos especializados.
A descrição etnográfica dos "procedimentos terapêuticos" adotados na Fraternidade para os portadores de HIV muito fazem lembrar práticas utilizadas por clínicas improvisadas para a recuperação de dependentes químicos. A ênfase na questão religiosa, o controle da sexualidade, a economia política dos castigos, a desconfiança mútua entre internos e "equipe terapêutica", as mentiras, os sistemas de delações e premiações, o trabalho compulsório não-remunerado para manter a "obra", a ausência e rejeição de serviços de profissionais especializados, tudo isso convivendo com uma aura de "graça divina" em um local que acolhe pessoas que foram totalmente excluídas da sociedade. Mas, ao contrário da dependência química, os internos portadores de HIV/AIDS não parecem nutrir esperanças pelo que poderia se chamar de "um caminho de volta".
A partir dos relatos colhidos por Pereira é possível constatar a existência de vidas permeadas pela violência, prostituição, conflitos familiares, abandono, drogas e pobreza. Um espaço como a Fraternidade consegue reunir, ao mesmo tempo, todas as representações típicas do comportamento desviante: o desvio como pecado, crime e doença 6. No entanto, o autor evita caracterizar os internos da Fraternidade como "vítimas da sociedade", embora ressalte que a epidemia de HIV/AIDS tem atingido significativamente as camadas sociais menos favorecidas, aprofundando suas condições de vulnerabilidade e exclusão social. E segundo os internos da instituição, a AIDS é vista como uma doença de vítimas culpadas, um tipo de "punição" por uma existência desregrada, uma vez que suas vidas estavam relacionadas à contravenção, furtos, tráfico de drogas e assassinatos.
Dentro dessa orientação, a AIDS se insere na mesma ordem de sentido de outras "doenças malditas" que espalharam o terror do contágio em outras épocas, como a lepra, a sífilis e a tuberculose. Da mesma forma como ocorreu às antigas epidemias, a AIDS, além de ser vista como uma "maldição", é também uma conseqüência direta do desgregamento das paixões. Aliás, nunca é tarde para lembrar que, no início da epidemia da Aids, ela era geralmente caracterizada como uma espécie de "câncer gay". Por isso mesmo, essas doenças são importantes para a Antropologia, pois suas manifestações excedem, em muito, sua dimensão físico-biológica.
Mas Pereira também adverte que são justamente nas representações estigmatizantes que reside o maior perigo para os portadores de HIV/AIDS, pois "como o impuro não pode ser eliminado nem isolado, sobrevive como espectro" (p. 132). E como alguém vivendo como um espectro poderia ser considerado um cidadão? Isso faz com que, na Fraternidade, os internos internalizem a condição de moribundos condenados pelos erros do passado, sem qualquer perspectiva de retorno à sociedade. A culpa de ter se deixado contaminar e haver contaminado outros, o temor da morte, os inevitáveis cuidados com o corpo, o medo de voltar para as ruas ou para o sistema carcerário, como também para o suplício das internações hospitalares fazem com que os internos se sujeitem ao poder de mando de tia Janaína, a presidenta da instituição.
Mas, em condições de segregação absoluta, seria possível a existência de relações pautadas na dádiva? Segundo Pereira, a resposta é não. O único tipo de dádiva possível em tais condições seria um tipo de "dádiva simulacral", ou seja, uma espécie de simulação da dádiva. Em outras palavras, o discurso caritativo institucionalizado que permeia iniciativas como a "Fraternidade" não consegue produzir vínculos sociais pautados nos mecanismos da dádiva.
Ao chegar na Fraternidade, o interno sente-se agradecido a tia Janaína por tê-lo salvo do abandono das ruas, dos hospitais ou do sistema carcerário. Doente, sem recursos financeiros e psicologicamente debilitado, o interno acredita haver encontrado o "paraíso". Alguns internos relatam que a Fraternidade se assemelha a um campo de concentração, mas a consideram branda se comparada a um presídio. Mas com o passar do tempo, o interno percebe que as relações na Fraternidade não se efetivam em termos solidários. A competição pelas melhores casas, a cumplicidade com a direção para conseguir privilégios especiais (tornar-se um "peixe" de tia Janaína), o trabalho compulsório como castigo por mal-comportamento e as constantes ameaças de fechar a instituição por parte da presidenta impedem a circulação da dádiva. Dessa forma, "os relacionamentos aí não se constituem pelo prazer da dádiva, nem conseguem manter vínculos" (p. 199).
Mas o que ainda confere à Fraternidade certa "aura" de dádiva? Só cabe aqui uma explicação: as crenças religiosas de tia Janaína que, segundo Pereira, "constituem o amálgama que direciona as práticas e as ações, formando as características gerais da Fraternidade" (p. 105). Considerando que a presidenta da instituição é adepta do kardecismo, doutrina que coloca a caridade como principal meio de evolução espiritual, não é difícil entender o caráter "simulacral" de dádiva que envolve esta instituição. Além disso, a maioria das doações recebidas para sua manutenção provém de grupos religiosos, que contribuem na esperança de serem recompensados em uma existência posterior a partir da prática da caridade cristã, da mesma forma que esperam contribuir para a sociedade evitando o contágio de outras pessoas pelos internos.
Segundo histórias relatadas na instituição, haveria também uma "Fraternidade espiritual", que seria um plano superior para onde os internos iriam após sua morte expiar o restante de suas faltas. Assim, "a 'Fraternidade espiritual' deve ser compreendida como o momento em que os espíritos dos internos, antes de reencarnar, continuam expiando as suas penas, pagando pelos erros e faltas severas que cometeram, no intuito de se 'purificarem' " (p. 103). A Fraternidade do "plano espiritual", assim, manteria as mesmas características das encontradas naquela do "plano terreno", como ocorre com as relações de poder entre direção e internos.
A Fraternidade, contudo, desafia a análise antropológica. Se por um lado a instituição vive um constante clima de terror em função de um ordenamento autoritário e do medo da morte; quando alguns internos são expulsos, eles logo voltam para as ruas, com drogas e farras, retornando quando sua saúde não suporta mais as intempéries do meio externo. Se os castigos na Fraternidade são comuns, não parece que o mundo exterior seja capaz de oferecer algo "melhor", isso sem mencionar as experiências traumáticas vivenciadas pelos internos nos hospitais públicos ou no sistema carcerário. Nesse caso, será que uma presidenta "autoritária" poderia ser condenada por suas práticas, quando ela se dispõe a acolher pessoas qualificadas como a "sucata do mundo"?
Enfim, o trabalho de Pereira revela meandros desnorteantes para os profissionais envolvidos com questões de saúde pública que envolvem patologias com um alto grau de estigmatização e sofrimento. Embora o Brasil seja hoje considerado um país exemplo nas questões relacionadas à epidemia de HIV/AIDS, o autor busca demonstrar que as classes menos favorecidas ainda carecem de uma maior atenção. Iniciativas de caráter voluntário, como a instituição analisada, podem ser frutos da ausência de atendimento profissional disponível.
A noção de que homossexuais, prostitutas e usuários de drogas injetáveis seriam as únicas pessoas passíveis de contaminação pelo HIV está sendo hoje relativizada na medida em que pessoas que não fazem parte destes "grupos de risco" passaram a se contaminar, como no caso de mulheres heterossexuais casadas. Então, faz-se necessário formular políticas públicas a partir de uma maior sensibilização acerca deste problema, incentivando uma visão interdisciplinar que contemple ciências médicas, saberes psi e ciências sociais para que, desta forma, a solidariedade possa inibir a exclusão social.
1. Mauss M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.
2. Godbout JT. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora FGV; 1999.
3. Caillé A. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.
4. Mota LA. A dádiva da sobriedade: a ajuda mútua nos grupos de Alcoólicos Anônimos. São Paulo: Paulus; 2004.
5. Martins PH. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópolis: Editora Vozes; 2003.
6. Conrad P, Schneider JW. Deviance and medicalization: from badness to sickness. St. Louis: C.V. Mosby; 1980.