RESENHAS BOOK REVIEWS
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
coimbra@ensp.fiocruz.br
EPIDEMIOLOGY AND CULTURE. Trostle JA. New York: Cambridge University Press; 2005. 208 pp. (Cambridge Studies in Medical Anthropology, 13).
ISBN: 0-521-79050-6 (capa dura); 0-521-79389-0 (brochura).
O livro do antropólogo James Trostle é resultado de bem-sucedida carreira marcada pelo esforço de uma praxis interdisciplinar, ancorada concomitantemente em teoria epidemiológica e antropológica. A síntese alcançada nessa obra não teria sido possível sem o acúmulo, por parte do autor, de múltiplas experiências de pesquisa nas quais foram utilizados pressupostos teóricos e metodológicos de ambas as disciplinas. Esse acúmulo é evidente através das dezenas de artigos do autor publicados em importantes periódicos internacionais tanto das ciências da saúde quanto da antropologia médica. Vale ainda mencionar a larga experiência de Trostle na pesquisa internacional em saúde, marcada pelo esforço colaborativo entre este e investigadores ou grupos de pesquisa de diferentes países da América Latina. É nesse cenário acadêmico, marcado por uma forte e coerente bio(biblio)grafia "antropo-epidemiológica", que emerge Epidemiology and Culture.
O livro é dividido em oito capítulos, que contam com tabelas e figuras. Nos dois primeiros capítulos, Trostle traça os campos das investigações em epidemiologia e em antropologia, define conceitos fundamentais a cada disciplina e historia a fértil trajetória de pesquisa colaborativa entre ambas. Segundo o autor, o conceito de "cultura" é fundamental a todo e qualquer esforço investigativo na área da saúde em geral e da epidemiologia e saúde pública em particular. Não que cultura defina ou determine como pessoas e/ou grupos se comportam, mas certamente exerce forte influência sobre os padrões de adoecimento (e de enfrentamento) e morte de coletividades. Para Trostle não restam dúvidas sobre o peso relativo desempenhado por fatores de ordem social, econômica e política que, em paralelo (porém interconectados entre si) à cultura, delineiam a nosografia de populações e comunidades e suas respostas frente à enfermidade. Esse olhar crítico é fundamental à pesquisa tanto em epidemiologia quanto em antropologia.
É excelente a revisão sobre as conexões históricas entre a epidemiologia e a antropologia (Capítulo 2). A leitura acerca da tradição sociológica comum às duas disciplinas é fundamental para a compreensão do embrião do campo emergente da "epidemiologia cultural". Além da oportuna (re)visita a clássicos dos séculos XIX e XX, como R. Virchow, E. Durkheim e J. Snow, entre outros, Trostle analisa em profundidade dois estudos de caso aquele do Centro de Saúde Pholela (1940) e o do Instituto de Saúde da Família e da Comunidade (1945) ambos na África do Sul, como exemplos de bem-sucedidas pesquisas interdisciplinares em e no serviço. O mérito dessas experiências não residiu apenas no esforço de efetivamente fazer uma "medicina social" aplicada, ancorada na militância da então vanguarda internacional da epidemiologia social e da antropologia social. Consistiu também no caráter desafiador da iniciativa, isto é, por ter sido instalada em um contexto histórico e político no qual prevaleciam práticas de uma medicina colonial em um país cingido pelo racismo. Ao longo do livro, Trostle levará o leitor a outros contextos, a outras regiões do mundo, algumas delas mais próximas de nós, nas quais fica patente que a incorporação de perspectivas antropológicas pode ter implicações importantes do ponto de vista teórico e prático.
No Capítulo 3, Trostle apresenta sua visão acerca do potencial de contribuição da antropologia para uma leitura crítica de conceitos fundamentais à epidemiologia, com destaque para aqueles relacionados à pessoa/indivíduo (sexo, gênero, idade, etnia/raça, classe social), local (ecologia, geografia, espaço) e tempo (estação, período, calendário). Para o autor, a desconstrução crítica de conceitos, por vezes arraigados na tradição acadêmica de uma disciplina, é fundamental à compreensão, em toda sua complexidade, da complexa trama de natureza social e cultural que subjaze à determinação do processo saúde-enfermidade. Segundo Trostle, isso inclui quem (ou qual grupo), em uma sociedade ou população, adoece ou morre, quem tem acesso a cuidados de saúde, quais estratégias e respostas frente a agravos prevalecem na comunidade.
De acordo com Trostle, em menor ou maior grau, antropologia e epidemiologia dedicam-se ao estudo das práticas culturais humanas e como essas práticas produzem saúde e/ou doença. Fiel a essa visão, elabora no capítulo 4 importante reflexão crítica acerca das abordagens e técnicas mais utilizadas por cada uma das disciplinas na coleta de dados e informações pertinentes ao estudo da "saúde". Chama ainda atenção para a importância de não se perder de perspectiva a (potencial) influência desempenhada por convenções culturais, normas e valores reinantes no meio em que se insere o próprio pesquisador na qualidade final do "banco de dados" coligido na pesquisa. Em última instância, há que se buscar sempre refletir acerca dos possíveis maiores ou menores espaços de operação das (inter)subjetividades pesquisador-pesquisado e como estes podem influenciar sobre o processo de geração de dados, por mais "objetivos" que possam parecer. Para Trostle, a pesquisa que envolve coleta de dados/informações de primeira mão deve ser vista como um processo social de trocas, sistema esse que envolve várias negociações. Contra esse pano de fundo, o autor examina conceitos e métodos caros à epidemiologia, como amostra, seleção, representatividade e entrevista.
O Capítulo 5 aprofunda um caso a epidemia de cólera na América Latina enfocando o contexto sociocultural e histórico que marcou a eclosão e a expansão da doença na região. Distancia-se, portanto, da visão clássica de "história natural" da enfermidade e mostra como que, nos diferentes países atingidos pela epidemia, a cólera não se disseminou ao acaso. Não apenas a distribuição dos óbitos por cólera foi desigual, atingindo desproporcionalmente diferentes sub-regiões, bairros e classes sociais, mas também o registro dos casos variou segundo interesses ou vontades políticas locais. Para Trostle, as próprias estatísticas vitais (no caso particular as estatísticas de mortalidade), a princípio objetivas, podem ser lidas como uma das facetas ou formas de expressão de uma dada sociedade. Afinal, quem define quem será contado e como numa sociedade?
Os Capítulos 6 e 7 são dedicados à revisão e análise das muitas possibilidades de aplicação do trabalho colaborativo entre epidemiólogos e antropólogos. Trostle disseca vários casos de intervenções em saúde, levando em consideração as dimensões individuais, estruturais e culturais que constituem desafios à implementação de ações de saúde em comunidades. Para o autor, é fundamental compreender risco em contextos sócioculturais específicos. No Capítulo 7, o autor aprofunda sua crítica ao conceito (estatístico) de risco e mostra, através de vários exemplos etnográficos, como a idéia de risco pode ser percebida ou interpretada de maneira diferente, a depender do contexto.
Não poderia concluir sem fazer menção à bibliografia, com cerca de 360 referências a livros, artigos de periódicos e documentos de agências de saúde. Trostle não apenas lista referências aos principais clássicos da epidemiologia e da antropologia (em particular da antropologia médica), mas também oferece ao leitor sua seleção de obras contemporâneas mais relevantes em antropologia da saúde, etnomedicina, sociologia médica e epidemiologia social.
Em suma, Epidemiology and Culture constitui excelente leitura e seleta fonte de informação a todos aqueles que buscam uma introdução ao campo dos estudos antropológicos em saúde, especialmente no que tange à sua dimensão "aplicada". A leitura é agradável, repleta de exemplos extraídos da literatura e bem ilustrado, o que torna o livro de Trostle particularmente adequado para cursos de pós-graduação em antropologia da saúde e epidemiologia social.