EDITORIAL
Revisão, revisão sistemática e ensaio em saúde pública
Cadernos de Saúde Pública incorporaram, recentemente, pela primeira vez na história da revista, a designação específica de um editor-associado para a apreciação e manejo dos artigos de revisão e ensaios.
O embate entre revisões "tradicionais" versus revisões sistemáticas ocupa o centro de um instigante debate nos dias que correm. Dois artigos de revisão (de revisões) bastante recentes (Annu Rev Public Health 2006; 27:81-102 e BMC Med Res Methodol 2006; 6:35) questionam as supostas vantagens inequívocas das revisões sistemáticas sobre as revisões tradicionais, em termos, basicamente, de: não, necessariamente terem as primeiras o rigor que pretenderiam ter, quase como um atributo intrínseco ao próprio processo de revisão sistemática; perderem as revisões sistemáticas, em muitas ocasiões, a mirada crítica, e, finalmente, não lidarem adequadamente com o hiato entre evidências e sua tradução em políticas públicas.
As críticas soam pertinentes, mas me parecem decorrentes de uma convivência incômoda entre revisão, revisão sistemática e ensaio em saúde pública, como se a inegável ascensão da revisão sistemática, em anos recentes, especialmente, no campo da epidemiologia, tivesse de se fazer, necessariamente, às expensas das revisões tradicionais e dos ensaios.
Tal conflito é, do meu ponto de vista, artificial. Os equívocos partiriam de leituras históricas e visões conceituais simplistas, como na suposta seqüência linear entre a aplicação de métodos estatísticos à saúde pública, a emergência da epidemiologia clínica e da medicina baseada em evidências, e sua tradução em uma, posterior, visão de que as políticas públicas devam, igualmente, se basear, estritamente, em evidências. Como mostra obra recente (Dicing with Death: Chance, Risk and Health), a seqüência dos fatos históricos não é bem esta. O estatístico inglês Cochrane (homenageado pela base de revisões sistemáticas homônima) foi convocado, inicialmente, a aplicar métodos de análise estatística à avaliação do sistema de saúde inglês, visando reduzir desperdícios e aumentar a efetividade e resolutividade do mesmo. Portanto, a base homônima nasce, sem dúvida, a partir da sistematização inicial de estudos randomizados, e tem nos estudos observacionais evidências tidas como de segunda ordem, servindo de base empírica à medicina baseada em evidências. No entanto, os métodos e técnicas desenvolvidos por Cochrane e seu grupo originário não são tributários da emergência da epidemiologia clínica, que tem lugar décadas mais tarde, e dialogam de forma muito próxima com a operação cotidiana do sistema de saúde inglês.
O ensaio em saúde pública soa para alguns dos pesquisadores de orientação quantitativista como "o patinho feio" das revisões. Haveria aí, a meu ver, outro equívoco, de natureza conceitual. A epidemiologia tem muito a ganhar com o estímulo às revisões sistemáticas, mas muito que se empobrecer caso abra mão das revisões críticas e ensaios. A título de exemplo, cito o ensaio seminal de Stephen J. Gould, na interface entre saúde pública, estatística e psicologia (The Mismeasure of Man). Poucos atentam para o fato de que, em paralelo ao ensaio propriamente dito, Gould publicou um artigo de re-análise de dados empíricos por meio da análise fatorial, na revista Science (1978; 200:503-9). Portanto, não há nada de estranho ou ruim na conjunção entre ensaio e aplicação de métodos quantitativos.
Enfim, há lugar ao sol para as diferentes vertentes de revisão de achados e conceitos. Que venham novas revisões, revisões sistemáticas e ensaios, desde que pautadas na qualidade e legibilidade. Serão, os três, muito bem-vindos!
Francisco I. Bastos
Editor de Artigos de Revisão
Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
francisco.inacio.bastos@hotmail.com