RESENHAS BOOK REVIEWS
Sheila Maria Ferraz Mendonça de Souza
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. sferraz@ensp.fiocruz.br
OSWALDO CRUZ: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO NA CIÊNCIA BRASILEIRA. Britto N. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 144 pp.
ISBN: 85-85676-09-4
A obra de Nara Britto já está em sua segunda impressão. Retomando o tema Oswaldo Cruz, com uma proposta singular, este trabalho editado pela primeira vez em 1995 traz uma interessante contribuição à história das instituições e das ciências da saúde no Brasil. Ao discutir Oswaldo Cruz tornado em mito, e o papel dos continuadores do projeto de saneamento por ele iniciado, mostra ao mesmo tempo conflitos e contradições por trás do mito, e prova mais uma vez que em ciência todas as dimensões se aproximam: saberes, competências, política, sociedade. Mostra que ontem, como hoje, a dimensão da pesquisa em saúde não é dissociada dos interesses políticos e sociais.
O livro é apresentado em capa-retrato de Oswaldo Cruz, a face do mito. Poucas imagens clássicas o ilustram, mais seria desnecessário. O tema é apresentado em Introdução apropriada, na qual a autora acentua que não pretende outra abordagem biográfica de Oswaldo, já há muitas. Em defesa da originalidade de sua obra, não se alongará confrontando o mito, mas apresentará as falas dos que o defenderam e elevaram após a morte, e tentará mostrar a intencionalidade dos discursos construindo um mito para o Castelo de Manguinhos, acima de seguidores fiéis e oponentes, de aprendizes e desafetos, útil entre outras coisas para unir em torno de um propósito sanitarista. O livro é desenvolvido em quatro capítulos, que são os seguintes: A Construção de uma Força Social, A Organização do Movimento sanitarista; O Brasil de Luto pela Morte de Oswaldo Cruz; Como Prosseguir sem Oswaldo Cruz; O culto à memória. Esses capítulos são arrematados por Comentários Finais e pela obrigatória apresentação de fontes e bibliografia. Nesse formato, relativamente sintético, Nara Brito apresenta o que foi originalmente sua dissertação de Mestrado, defendida em 1992 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No capítulo em que discute o movimento sanitarista, a autora descreve a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, suas ações e o papel de Belisário Penna como motor das ações que mantinham em movimento o esforço para tirar o Brasil do atraso, descaso, miséria, abandono e falta de saúde a que estavam relegados os já muitos milhões de brasileiros. Descrevendo essa "luta patriótica" pela saúde, lembra que trata-se de projeto social e moral, entendido como único capaz de salvar o país e impulsionar definitivamente o seu progresso. Nara contextualiza o momento em que se discute que "o Brasil é um vasto hospital" e a mobilização das lideranças médicas e acadêmicas representadas pela Academia Nacional de Medicina e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, juntando esforços ao então Instituto Oswaldo Cruz, para que se revertesse a situação a partir da difusão do olhar médico sobre o Brasil. Apresentando a polarização que originalmente representou a criação do Instituto Soroterápico, enquanto instituição de pesquisa, apartada dos núcleos acadêmicos tradicionais e confrontando saberes ali pregados, a autora apresenta aos seus leitores a tensão existente entre as instituições médicas da época e seus reflexos sobre a política de governo dividida entre apoiar ou não o crescimento e a perpetuação de Manguinhos. Num momento em que a tensão entre os saberes clínicos e os experimentais disputavam espaço, profissionais com formação e experiência em ambas as vertentes da carreira, sintetizando uma condição quase ideal, a começar pelo próprio Oswaldo Cruz, eram respaldo ao Instituto de Manguinhos. Atos públicos e homenagens feitas a Oswaldo Cruz já eram parte de uma importante estratégia de agregação dos médicos em torno das mudanças que se operavam, assim como as ações de divulgação de resultados de trabalhos, entre eles as investigações de Chagas, que deixaram tão impressionadas autoridades do porte de Miguel Couto. Com essa apresentação do cenário, Nara Britto oferece um retorno ao momento e à circunstância em que a perda de Oswaldo torna-se crítica. É disso que falará no capítulo seguinte.
No relato e discussão que se seguem sobre a perda de Oswaldo Cruz, um contraste interessante. O relato do mal que vitimou Oswaldo Cruz, crônico, prolongado por anos, conhecido por poucos, percebido e acompanhado por colegas mais próximos, afetando severamente uma série de dimensões da vida do cientista, já foi discutido por tantos biógrafos, e aqui é apresentado de maneira curta, acentuando a recusa do Oswaldo em buscar tratamentos melhores e minimizar seus riscos e desconfortos. Não aceitava diminuir o ritmo, abrir mão de seus projetos: "Morrerei mais cedo se ficar inativo", teria sido sua frase a Salles Guerra, quando este tentou impedi-lo de viajar à Alemanha em 1911. Em poucos períodos a autora relata o final em Petrópolis, agonia prolongada e estoicamente suportada, segundo o mesmo biógrafo citado antes. Descrevendo os procedimentos e as notícias, o impacto da sua morte e o que foi oficialmente realizado, a autora acentua a manipulação da morte: as discussões que se sucederam, as cobranças às autoridades por terem dado pouca importância ao morto ilustre, as disputas e críticas à imprensa por não dar ao fato o valor devido, por não perceber a imensa perda e prejuízo para o país... Confrontado o que de fato foi realizado e a argumentação que acusava descaso, a autora chama atenção para uma certa contradição, que pode ser percebida no próprio álbum de recortes mantido no arquivo de Oswaldo Cruz. Segundo a autora, "a impressão que se tem é de que Oswaldo Cruz teria recebido as homenagens que lhe eram devidas", e apesar disso, o discurso mantido por seus amigos apela para a consciência social e coletiva, para o que representa a sua morte, para a necessidade de dar continuidade ao projeto e à obra em respeito àquele homem. Como diria Neiva em relação à responsabilidade de continuar a obra "...A sua luminosa memória não nos deixará desanimar em meio a tantas tormentas...". Assim a autora prepara o leitor para refletir sobre o projeto de continuar sob a sombra de um ideal, ou de um mito.
No capítulo seguinte, Nara Britto repassa os discursos de seguidores e discípulos em seu desafio de continuar sem a presença física de Oswaldo, seus sentimentos expressos em documentos ou livros são apresentados. Os problemas apontados não seriam de ordem prática, dado que Carlos Chagas já havia sido nomeado para o cargo de Diretor do Instituto, tornando de direito uma situação que já exercia de fato. Respeitado e reconhecido por sua mais importante obra, era um homem de porte científico e médico inquestionável. O Instituto, no entanto, não era um bloco único, havendo dissidências e confrontos internos com os quais já vinha lidando ao longo dos anos Oswaldo em sua condução do projeto. Com a morte dele, os riscos representados pelos desafetos e conflitos contidos sob uma liderança inquestionável eram evidentes. Disputava-se o mérito científico, ambicionava-se o cargo de Oswaldo Cruz. Difícil não segmentar por diferentes critérios uma equipe dotada de múltiplos talentos e perfis profissionais tão diferenciados, difícil não politizar as disputar pelo poder e pela sucessão. Disso nos fala a autora com base em documentos e testemunhos de Rocha Lima, Arthur Neiva, Lobato Paraense e outros. Mexendo em tema-tabu, Nara fala das fraturas, dos desequilíbrios, das fragilidades sob o manto de Manguinhos, do concurso, do oportunismo político, das manobras. Segundo a autora, na morte de Oswaldo o Instituto de Manguinhos estava num momento de extrema fragilidade, com relações internas deterioradas, e a perda do mentor contribui para o perigoso aprofundamento de fissuras institucionais. Como propõe, "Este foi o dilema vivido pelos pesquisadores do Instituto após o desaparecimento de Oswaldo Cruz. A questão que se colocava para este grupo era a de garantir o reconhecimento de sua própria competência intelectual beneficiar-se do prestígio de que Oswaldo Cruz, e por extensão, Manguinhos, haviam gozado desde então".
No penúltimo capítulo, Nara apresenta o culto à memória de Oswaldo Cruz e o contrasta com os testemunhos de seu cotidiano, de sua vida real. Argumenta que esse culto, mantido no círculo de discípulos e amigos, em princípio espontâneo e fruto das emoções da perda, teria evoluído para uma intencionalidade, no sentido de contribuir para a construção de uma imagem perfeita do cientista e do homem, um símbolo da ciência brasileira. Com a Liga Pró-Saneamento como um dos mais importantes veículos de difusão dessas idéias, mantinha-se o lema "Não esmorecer, para não desmerecer". Discutindo o grande número de metáforas empregadas pelos seus biógrafos e enaltecedores, a autora reflete sobre a existência no decorrer deste processo de uma quase religiosidade, a atribuição de um caráter missioneiro, e quase místico a Oswaldo. Ainda segundo a autora, um eficiente elemento para a constituição da identidade sanitarista. Ressalta os textos publicados pelos discípulos, entre 1917 e 1922, sobre o mestre, e contrasta a imagem construída com o comportamento cotidiano do homem em seu trabalho. Também discute a figura peculiar do homem Oswaldo e seus atributos. Como físico e postura chamava atenção, contrastava, destoava. O que teria Oswaldo que o tornou tão especial, diferente e competente? Apresenta a opinião contrastante de alguns memorialistas, discute Clementino Fraga em sua crítica à imagem de Oswaldo como predestinado. Mostra quanto os memorialistas pouparam sua história dos momentos mais polêmicos e criticados. Revendo os que contaram sua vida, a autora discute a imagem de Oswaldo como o saneador do Rio de Janeiro e o fundador da medicina experimental, mais um herói nacional elevado ao panteão cívico do Brasil.
Nos comentários finais, Nara conclui sua idéia central: de que a morte de Oswaldo Cruz propicia sua heroificação, redimindo pecados, encerrando polêmicas, fazendo-o transcender. Se por um lado mostra que para a construção do mito do herói atuaram decisivamente seus seguidores e discípulos, por outro admite que muitos atores de fora teriam contribuído com este processo. Propõe que o mito de Oswaldo Cruz é um "fenômeno ideológico de natureza cientificista", que traduz anseios de um grupo num dado momento histórico do país.
Ao encerrar seu trabalho, lembra que de um modo ou de outro, e quaisquer que tenham sido as conse- qüências dessa mitificação, a figura de Oswaldo Cruz destaca-se hoje entre os heróis nacionais como um representante ainda solitário da ciência brasileira.
O livro traz fatos e demonstra como se constroem as histórias e ideais, os mitos e os poderes de homens e de instituições. No livro de Nara aprendemos mais uma vez sobre nossa própria história e nossas fundações, sobre o jogo dos valores e sua importância, sobre a impossibilidade de ter uma ciência isolada da sociedade, das conjunturas políticas, sobre a política que perpassa as instituições científicas, sobre os animais políticos que constroem as instituições científicas. Um livro para ser lido principalmente pelos que ainda pensam que seus laboratórios, gabinetes ou outras salas de trabalho são domínios estanques de saber e de poder.