DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Correia et al.
Debate on the paper by Correia et al.
Sergio Rego
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. rego@ensp.fiocruz.br
Um dos méritos do trabalho de Correia et al. é o de trazer para essas páginas debate sobre a saúde e o bem-estar de indivíduos de dois segmentos populacionais que são tradicionalmente esquecidos e desconsiderados pela sociedade brasileira: as pessoas com transtornos mentais e a população encarcerada. Não é, portanto, surpresa, que o subconjunto formado pela interseção desses dois segmentos sejam particularmente negligenciados. E, com o aumento dos índices de criminalidade em nosso país e da freqüência com que a banalização da violência tem atingido segmentos das classes médias, tem-se observado uma intensa mobilização dos meios de comunicação social em defesa de punições cada vez mais severas aos criminosos. Como um possível resultado dessa abordagem recorrente se pode esperar que tal negligência se agrave. A violência, entretanto, não é um fato novo. Há muitos anos que os estudos apontam o aumento da mortalidade decorrente de causas externas e, especialmente entre homens, jovens e pobres, que são a expressão visível do aumento da violência do crime e policial entre as populações mais pobres. Foi preciso que a proximidade da barbárie chegasse às classes médias com mais freqüência para que os meios de comunicação social reagissem com sua habitual simplificação, preconizando a intensificação das incursões policiais nas comunidades carentes, a redução da maioridade penal, a diminuição das possibilidades de progressão da pena. Mas enfocar os direitos e necessidades desses segmentos populacionais é pertinente do ponto de vista da organização do sistema de saúde e efetivamente levá-los em consideração é uma obrigação moral.
Se a máxima atribuída a Mahatma Gandhi de que o grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela forma como trata seus animais é usualmente aceita como verdadeira, ela poderia ser complementada dizendo-se que a forma como uma sociedade trata seus prisioneiros evidencia o grau de seu desenvolvimento moral. Embora seja plenamente compreensível e esperado que os parentes das vítimas de violência desejem não só a punição dos perpetradores, mas também muitas vezes o seu sofrimento, a sociedade não pode agir movida pelo sentimento de ódio e de vingança, mas pelo princípio de justiça.
Retornando agora ao objeto específico do trabalho foco destes comentários, as pessoas com transtorno mental autoras de delitos, consideremos agora suas especificidades, que poderiam torná-las, eventualmente, não merecedoras da mesma consideração ética que um indivíduo sem transtorno mental e não autora de delitos. São indivíduos que têm sua capacidade de autodeterminação diminuída tanto pela sua condição de indivíduos institucionalizados (internos em uma unidade prisional ou hospitalar) como pela sua saúde. No entanto, com freqüência esses sujeitos encarcerados são escolhidos como objetos de pesquisas biomédicas. Existem registros da solicitação de Pasteur ao Imperador Pedro II de autorização para que fossem utilizados prisioneiros brasileiros para o teste da vacina anti-rábica 1. Como parte do esforço de guerra norte-americano na segunda guerra mundial, também foram utilizados prisioneiros para o teste de novos medicamentos que poderiam ser úteis na frente de batalha 2. E por que a escolha de prisioneiros é tão freqüente quando olhamos para a história da pesquisa de novos medicamentos ou vacinas? Por um lado é exatamente por terem sua capacidade de exercício de sua autonomia bastante limitada, mas por outro é como se fosse uma punição adicional que se pretende impor em decorrência de seu comportamento anti-social. Algo como se disséssemos a eles que por não estarem contribuindo espontaneamente para o bem-estar social, o fariam ainda que contra suas vontades. O que nos leva a refletir igualmente sobre as condições inumanas que freqüentemente são denunciadas ora pelo Ministério Público, ora por organizações de defesa dos direitos humanos, ora por rebeliões em presídios, a que essa população está submetida. Como podemos pensar em saúde em tais condições? E acaso a condição humana deve ser negada aos encarcerados? Será que necessitamos de um novo Sobral Pinto que tenha de se basear na Lei de proteção aos animais para defender prisioneiros tratados de forma inumana como o grande advogado fez com Luis Carlos Prestes 3?
Assim como os prisioneiros, as pessoas com transtornos mentais têm uma longa história de exclusão, abusos e desrespeitos, não só na assistência como também na pesquisa. Novamente a explicação para tais abusos é melhor compreendida quando baseada na sua própria condição individual e no paradoxal tratamento que a sociedade brasileira ainda dedica aos indivíduos com transtornos mentais.
Todo ser humano é vulnerável, posto que finito, mas a condição em que pessoas com transtornos mentais e autoras de delitos se encontram é a de vulnerados 4, ou seja, sofreram um processo de vulneração que as tornou ainda mais suscetíveis ao dano 5, para além de sua vulnerabilidade biológica. E a resposta que a Saúde Pública deve dar frente a essa situação extrema deve ser a de instituir medidas de proteção que busquem assegurar a superação dos fatores que produzem esse estado de vulneração.
Assim, a garantia de assistência à saúde integral de prisioneiros não pode jamais ser compreendida como um privilégio ou um direito abusivo, mas um imperativo ético. É claro que as condições dessa assistência devem ser adaptadas às condições especiais às quais essas populações estão sujeitas, posto que perpetradoras de um crime, mas as condições e a qualidade dessa assistência não devem, por razões éticas, serem qualitativamente diferenciadas.
1. Goldin JR. Pesquisa em prisioneiros. http://www.ufrgs.br/bioetica/pesqpris.htm (acessado em 21/Mar/2007).
2. Rothman D. Strangers at the bedside. New York: Basic Books; 1991.
3. Ordem dos Advogados do Brasil. Os primeiros anos. http://www.oab.org.br/hist_oab/primeiros_anos.htm (acessado em 21/Mar/2007).
4. Schramm FR. Información y manipulación: ¿Como proteger los seres vivos vulnerados? La propuesta de la bioética de la protección. Revista Brasileira de Bioética 2005; 1:18-27.
5. Kottow M. The vulnerable and the susceptible. Bioethics 2003; 17:460-71.