DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Correia et al.
Debate on the paper by Correia et al.
Debora Diniz
Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. anis@anis.org.br
Entre o cuidado e a punição
O artigo de Correia et al. discute um tema esquecido no cenário da saúde pública e dos direitos humanos no Brasil: a situação da pessoa com transtorno mental autora de delito. O manicômio judiciário uma instituição total a meio caminho do presídio e do manicômio não é um espaço de ressocialização, mas, regra geral, uma sentença de apartação social. É a partir dessa constatação que surge a tese central das autoras: o manicômio judiciário ignora as recentes conquistas da Reforma Psiquiátrica, em especial o direito à saúde das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos.
Se entendermos o artigo como um registro de princípios éticos sobre os fundamentos da saúde pública no Brasil, não há maiores controvérsias na tese enunciada pelas autoras. No entanto, o desafio não está no reconhecimento do direito à saúde como um princípio constitucional universal, mas na passagem do princípio para as políticas sociais em saúde e segurança pública. O artigo enfrenta apenas tangencialmente o tema das políticas sociais e, por isso, não avança em sugestões sobre como se daria a implementação dos valores da Reforma Psiquiátrica para o universo das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos.
O manicômio judiciário encontra-se na interface do cuidado e da punição. Os cuidados em saúde são silenciados pelo caráter punitivo da instituição social: a pessoa com transtorno psiquiátrico autora de delito é alguém considerada perigosa para o convívio social. A ambigüidade desse papel institucional é particularmente sentida pelos psiquiatras forenses que discutem como a fronteira entre crime e loucura exige uma redefinição do papel assistencial do psiquiatra: as informações colhidas em consultas psiquiátricas podem ser utilizadas contra os interesses do paciente, algo que subverte a tese tradicional da cumplicidade entre médico e paciente 1.
Mas o principal desafio do artigo é sobre como traduzir o marco ético constitucional do direito à saúde e as conquistas da Reforma Psiquiátrica em direitos efetivos para as pessoas com transtorno mental autoras de delitos. A quem caberá o cuidado do "louco-infrator"? As autoras fazem menção ao direito à integração sócio-familiar, mas há estudos qualitativos sobre as expectativas das famílias sobre o tema? Há estudos que mostrem a expectativa de acolhimento familiar? A sentença de segregação imposta pelos manicômios judiciários seria somente imposta pelo Judiciário e pela Psiquiatria, ou seja, por discursos patologizantes, ou também atende aos interesses familiares que não desejam o retorno familiar e social do "louco-criminoso"?
A afirmação do direito à saúde como um princípio universal é o primeiro passo para o reconhecimento de direitos fundamentais esquecidos para grupos socialmente vulneráveis, como é o caso das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. No entanto, para que o laudo psiquiátrico não signifique "segregação indeterminada", é preciso que existam alternativas para além dos muros das instituições totais involuntárias, como é o caso do manicômio judiciário. É possível imaginar cenários em que o estado de periculosidade não mais exista, muito embora o diagnóstico de transtorno mental permaneça a tal ponto que dificulte o autocuidado. A quem caberá o cuidado da pessoa ex-sentenciada por transtorno mental?
Assim como as autoras, não hesitaria em reconhecer a universalidade do direito à saúde no Brasil. No entanto, uma vez afirmado o princípio, é preciso ir além do fato de que "são escassas as políticas públicas de promoção à saúde mental, de promoção à convivência familiar e de prevenção de transtornos mentais". Como realizar a passagem do princípio do direito à saúde para políticas efetivas de diálogo com as famílias das pessoas com transtorno mental autoras de delitos?
1. Taborda JGV, Abdalla Filho E. Ethics in forensic psychiatry. Curr Opin Psychiatry 2002; 15:599-603.