ARTIGO ARTICLE
Descentralização, AIDS e redução de danos: a implementação de políticas públicas no Rio de Janeiro, Brasil
Decentralization, AIDS, and harm reduction: the implementation of public policies in Rio de Janeiro, Brazil
Elize Massard da FonsecaI; Amy NunnII; Paulo Borges Souza-JuniorI; Francisco Inácio BastosI; José Mendes RibeiroIII
ICentro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIHarvard School of Public Health, Harvard University, Boston, U.S.A
IIIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
O artigo avalia como a descentralização dos recursos e ações do Programa Nacional de DST e AIDS influenciou as transferências de recursos para os programas de prevenção ao HIV/AIDS entre usuários de drogas injetáveis no Rio de Janeiro, Brasil (1999-2006). Foram avaliados os efeitos da política de descentralização sobre as transferências de recursos para os Programas de Redução de Danos (PRD) no Rio de Janeiro. A descentralização das transferências para os PRD no Rio de Janeiro se efetivou em 2006, com a virtual supressão do financiamento federal direto, obrigando estes programas a buscarem fontes alternativas de financiamento. Constata-se uma fragilidade dos PRD no Estado, agravada pela redução recente do volume de recursos. Dos 22 programas, existentes em 2002, o Estado passou a contar, em 2006, com apenas dois programas, financiados pelo Estado e por um município. A descontinuidade dessas ações pode vir a favorecer a reemergência da epidemia de AIDS nesta população, o que reclama um processo de descentralização mais gradual e melhor pactuado dessas iniciativas.
Descentralização; Políticas Públicas de Saúde; Redução de Danos; Abuso de Drogas; HIV
ABSTRACT
This paper assesses how decentralization of resources and initiatives by the Brazilian National SDT/AIDS Program has impacted the transfer of funds for programs to prevent HIV/AIDS among injecting drug users in Rio de Janeiro, Brazil (1999-2006). The effects of the decentralization policy on Rio de Janeiro's Syringe Exchange Programs (SEPs) are assessed in detail. Decentralization effectively took place in Rio de Janeiro in 2006, with the virtual elimination of any direct transfer from the Federal government. The elimination of direct transfers forced SEPs to seek alternative funding sources. The structure of local SEPs appears to be weak and has been further undermined by current funding constraints. Of 22 SEPs operating in 2002, only two are still operational in 2006, basically funded by the State Health Secretariat and one municipal government. The current discontinuity of SEP operations may favor the resurgence of AIDS in the IDU population. A more uniform, regulated decentralization process is thus needed.
Decentralization; Health Public Policy; Harm Reduction; Drug Abuse; HIV
Introdução
Pouco se sabe sobre como os arranjos institucionais afetam as respostas governamentais para o HIV/AIDS. Em países como Uganda, a resposta à epidemia de HIV/AIDS tem sido centralizada pelo governo federal desde os anos 1990. As autoridades vêm, desde então, encorajando o estabelecimento e a consolidação de organizações da sociedade civil, com o propósito de lutar pelos seus interesses e buscar financiamento internacional 1. No Brasil, ao contrário, as organizações da sociedade civil desempenharam um papel especialmente relevante na institucionalização do programa de AIDS, já nos seus primórdios, e especialmente a partir de 1992 2.
O Programa Nacional de DST e AIDS/Ministério da Saúde (PN-DST/AIDS) financiou as ações de prevenção à AIDS no Brasil de 1993 a 2002 através de convênios firmados com 27 Estados e 177 municípios estratégicos. Além disso, foram também financiados, nesse mesmo período, 976 projetos de organizações da sociedade civil, 186 deles projetos de prevenção à AIDS entre usuários de drogas injetáveis (UDI). A principal fonte de recursos, neste período, foi proveniente dos acordos de empréstimo do Banco Mundial ao governo brasileiro, conhecidos como "AIDS I" e "AIDS II", que totalizaram US$ 350 milhões. Os acordos de empréstimo do Banco Mundial favoreceram principalmente as ações de prevenção ao HIV/AIDS em populações específicas, como os UDI, implementadas, em grande medida, pelas organizações da sociedade civil 3.
Até 2002, os recursos eram repassados aos Estados e municípios estratégicos, através do mecanismo de convênio firmado com o PN-DST/ AIDS e através de concorrências públicas com as organizações da sociedade civil. Entretanto, o mecanismo convenial se mostrou limitado, burocrático e pouco flexível devido às regras impostas pelo Banco Mundial e pela legislação brasileira referente a acordos desta natureza 4. Gradualmente, o PN-DST/AIDS foi se inserindo nas regras mais abrangentes de transferência de recursos da política nacional de saúde.
O Brasil representa um caso paradigmático no processo de descentralização das ações de HIV/AIDS. O Brasil conta com um sistema de saúde orientado à descentralização 5,6 e também com um dos maiores e mais abrangentes programas de HIV/AIDS entre os países em desenvolvimento 7,8. Embora o programa de AIDS brasileiro tenha sido, desde a sua implantação, em 1985, altamente centralizado, seus gestores procederam, a partir de 2000, às primeiras iniciativas de descentralização. As seleções públicas para projetos de organizações da sociedade civil passaram, desde então, à responsabilidade dos maiores Estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Ceará 9.
Um novo arranjo institucional do PN-DST/AIDS começou a ser delineado no ano de 2002. Um novo contrato foi estabelecido com o Banco Mundial, o assim denominado "AIDS III", com duração de três anos. O valor do projeto foi desta feita de U$ 100 milhões, com uma contrapartida equivalente do governo brasileiro. As metas desse acordo enfatizam a descentralização do financiamento e da administração das atividades do programa para Estados e municípios, em consonância com a política nacional de saúde 10.
Os recursos do programa de AIDS passaram a ser efetivamente transferidos para os 27 Estados e para 424 dos mais de 5 mil municípios brasileiros, localidades onde a epidemia de AIDS estava concentrada. Atualmente, são investidos aproximadamente R$ 124 milhões, a cada ano, no contexto dessa política de progressiva descentralização, sendo 10% desse valor obrigatoriamente repassado às organizações da sociedade civil de cada Unidade da Federação ou município 11.
Com isso, o financiamento passou a ser transferido diretamente do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde (transferências fundo-a-fundo), respeitada a lógica da legislação do Sistema Único de Saúde (SUS) (Portaria n º. 2.314/02) 9. Foi adotado o modelo de "incentivo", uma vez que já havia recursos sendo transferidos fundo-a-fundo para algumas ações de controle do HIV/AIDS. Isso permitiu a pactuação de Planos de Ações e Metas entre os gestores do SUS, respeitados os diferentes graus de autonomia e capacitação desses níveis governamentais, bem como a flexibilidade necessária face à extensão e heterogeneidade territorial e às diferentes características e complexidades de que a epidemia da AIDS se reveste nas várias regiões e localidades do país.
O Plano de Ações e Metas passou a ser o instrumento utilizado pelas secretarias estaduais e municipais de saúde para a qualificação dos gestores no recebimento do incentivo, possibilitando a integração dos planos e metas locais à política nacional de controle da epidemia de AIDS 12.
As seleções públicas para projetos das organizações da sociedade civil passaram a ser de responsabilidade exclusiva da Secretarias Estaduais de Saúde, que devem repassar 10% dos recursos transferidos para projetos das organizações da sociedade civil, obedecendo a critérios referentes às características epidemiológicas, geográficas e demográficas das diferentes localidades, levando-se ainda em conta a factibilidade e o custo-efetividade dessas ações. Nenhum recurso foi destinado especificamente para esse fim no Plano de Ações e Metas dos municípios 12.
O monitoramento dos Planos de Ações e Metas é de responsabilidade das instâncias envolvidas. No nível federal o monitoramento está a cargo do PN-DST/AIDS e no nível local a cargo de Estados e municípios. O sistema de monitoramento foi aprovado pela Portaria nº. 1.679/04 13 e é alimentado eletronicamente, sendo as informações abertas à consulta pública.
Procede-se ao acompanhamento da evolução de cinco categorias: metas do Plano de Ações e Metas, indicadores e índice composto de DST, execução dos recursos financeiros, parcerias com organizações da sociedade civil e cumprimento das ações pactuadas nas comissões intergestoras para disponibilização dos insumos estratégicos [medicamentos (para) DST, infecções oportunistas e preservativos].
As ações de prevenção à AIDS entre UDI, que, no Brasil, são majoritariamente implementadas por organizações da sociedade civil e basicamente financiadas pelo PN-DST/AIDS 14, passaram, em 2002, a ser selecionadas através de concorrência pública no nível dos Estados e municípios.
A seguir serão descritas algumas características da epidemia de AIDS entre UDI e o perfil da epidemia de AIDS nessa população específica no Brasil e no Rio de Janeiro.
Programas de prevenção a AIDS entre UDI
As ações de prevenção à AIDS entre UDI no Brasil são conhecidas como Programas de Redução de Danos (PRD). Através desses programas, os UDI têm acesso a seringas novas/estéreis, mediante a troca por seringas usadas, recolhidas da comunidade, reduzindo com isso a circulação de seringas potencialmente contaminadas. Além disso, tais programas proporcionam uma oportunidade única de contatar uma população de difícil acesso, e de implementar, de forma integrada, diversas medidas de saúde pública, como: distribuição de preservativos, aconselhamento, vacinação para a hepatite B e encaminhamento dos usuários de drogas a serviços de tratamento 15.
O Brasil tem tido uma importante influência nas políticas internacionais de prevenção à AIDS entre UDI. Recentemente, na 49ª Sessão da Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, o país reafirmou sua aposta nas estratégias de redução de danos como resposta no âmbito da saúde pública à epidemia nessa população específica 16.
A epidemia de AIDS no Brasil tem evoluído de forma heterogênea, em função da região geográfica e das populações mais afetadas em cada contexto. Os UDI desempenharam um papel relevante na dinâmica da epidemia em algumas regiões do país (Sudeste, Sul, parte meridional do Nordeste e parte do Centro-Oeste) 17,18, afetando, expressivamente, nestas regiões, populações residentes não apenas nas principais áreas metropolitanas, como também em municípios de médio porte 18,19.
Recentemente, observa-se um declínio das taxas de infecção pelo HIV entre UDI em diversas regiões brasileiras (com exceção do litoral Sul), além de um declínio na participação proporcional dos UDI enquanto categoria de exposição nas respectivas epidemias locais e regionais de AIDS 20. As razões para o declínio observado em três cidades que integraram estudo multicêntrico e foram avaliadas de forma coordenada [Rio de Janeiro, Santos (São Paulo) e Salvador (Bahia)] compreendem: a saturação desse segmento populacional, cujo contingente de suscetíveis é relativamente restrito; transformações na cena de uso, com uma redução do contingente de UDI em atividade 21; a mudança espontânea do comportamento dos UDI (no sentido de comportamentos mais seguros); além do papel de programas preventivos, apoiando os usuários de drogas e reforçando sua mudança comportamental espontânea, no sentido de práticas de menor risco 20.
Com o suporte financeiro e institucional do PN-DST/AIDS, no ano de 1996, foram implementadas seis experiências-piloto em diferentes cidades do país, onde a epidemia de AIDS entre UDI tinha magnitude relevante, uma delas no Rio de Janeiro. Transcorridos dez anos do início dessas atividades, o último cadastro oficial do Ministério da Saúde, divulgado em 2005, aponta para um universo de 152 PRD no Brasil 22.
No ano de 2001, seguindo a experiência de outros Estados, como São Paulo, parlamentares, ativistas, usuários de drogas e profissionais de saúde envolvidos nas ações de redução de danos no Rio de Janeiro apoiaram a apresentação de um Projeto de Lei que regulamentasse essas ações no Estado, e tornasse essas iniciativas menos vulneráveis às injunções da legislação federal de drogas (restritiva, e potencialmente punitiva, quanto a estas iniciativas e similares). O Projeto de Lei foi, entretanto, vetado, por duas vezes na Assembléia Legislativa naquele mesmo ano.
No ano de 2002, mesmo sem contar com a regulamentação legal dessas ações no Estado do Rio de Janeiro, o PN-DST/AIDS capacitou, através de uma organização da sociedade civil do Estado, 12 municípios no sentido de que eles viessem a desenvolver atividades de prevenção à AIDS entre UDI. Além disso, as organizações da sociedade civil podiam apresentar projetos de prevenção dirigidos a essa população específica ao PN-DST/AIDS, através de concorrência pública para ações da sociedade civil organizada.
Foi somente no ano de 2003, com o pleno desdobramento do processo de descentralização dos recursos e das ações do PN-DST/AIDS para os Estados e municípios, que o Estado do Rio de Janeiro passou a destinar 10% do volume total desse financiamento para as organizações da sociedade civil. Dessa forma, os programas passaram a ser financiados diretamente pelos municípios ou através dos Estados, mediante seleção pública de projetos para as organizações da sociedade civil.
O presente artigo tem por objetivo avaliar como a descentralização dos recursos e das ações do PN-DST/AIDS influenciou as transferências para os programas de prevenção ao HIV/AIDS entre UDI no Rio de Janeiro, no período 1999-2006.
Metodologia
O artigo compila e analisa dados referentes à série histórica de alocação de recursos federais referentes às ações de HIV/AIDS transferidos fundo-a-fundo para Estados e municípios, no período 2001-2005, na sua relação com as transferências totais do SUS referentes ao mesmo período.
Foram também avaliados os recursos federais transferidos fundo-a-fundo para as cinco macro-regiões brasileiras e para o Estado do Rio de Janeiro, discriminados pela natureza das despesas (ações estratégicas; ações estratégicas AIH autorização de internação hospitalar; fórmula infantil adicional, ou seja, suplementação para recém-nascidos de mães com HIV/AIDS; incentivo ao PN-DST/AIDS; incentivo às Casa de Apoio e co-financiamento para realização de carga viral e CD4/CD8) e pelo total de recursos alocados no âmbito do SUS. Avaliou-se a evolução do processo de descentralização dos recursos do PN-DST/AIDS para Estados e municípios. Para a construção dessas duas séries históricas foram utilizadas informações provenientes do Departamento de Informática do SUS/Ministério da Saúde (DATASUS).
É importante ressaltar que os dados aqui tabulados são referentes às transferências diretas do Ministério da Saúde para Estados e municípios. Dessa forma, os dispêndios efetivos do SUS podem ser maiores do que aqueles indicados nas tabelas. Optou-se por utilizar esses dados, uma vez que se trata de artigo que focaliza o processo de descentralização de recursos federais e os mecanismos de transferências resultantes da mudança institucional no âmbito da estrutura de financiamento do PN-DST/AIDS. O gasto real com as ações de prevenção e assistência para o HIV/AIDS é certamente maior do que o aqui tabulado, uma vez que não estão aí incluídos os gastos federais operacionalizados através de convênios e os recursos próprios de Estados e municípios.
Todos os valores foram deflacionados utilizando o índice nacional de preço ao consumidor amplo (IPCA), relativo ao mês de dezembro de cada ano que integra a série histórica.
A análise longitudinal dos possíveis impactos da descentralização sobre o financiamento dos programas de prevenção ao HIV/AIDS entre UDI no Rio de Janeiro foi realizada com base na evolução dos gastos com esses programas por parte das três esferas de governo, no período 1999-2006. Objetivou-se avaliar a participação dos Estados e municípios no financiamento de ações de redução de danos após a descentralização dos recursos do PN-DST/AIDS, em 2002. Além disso, avaliou-se a sustentabilidade dessas ações por parte das instituições executoras. Para isso, foram analisados o período de execução e a continuidade dos projetos financiados pelo PN-DST/ AIDS, pelas Secretarias Municipais de Saúde e pela Secretaria Estadual de Saúde. Os dados foram fornecidos pela Unidade de Planejamento do PN-DST/AIDS, pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro e pela Associação Carioca de Redução de Danos.
Resultados
Evolução das transferências fundo-a-fundo do PN-DST/AIDS para Estados e municípios no período de 2001-2005
A Tabela 1 representa o volume total de recursos federais transferidos para os Estados e municípios, segundo rubrica de despesa. Observa-se um aumento consistente, ano a ano, na série 2001-2005, das transferências para Estados e municípios, em valores nominais, de R$ 19 milhões para R$ 113 milhões. As transferências para os municípios, gradualmente, se sobrepõem às transferências estaduais, especialmente a partir de 2004, quando totalizam R$ 48 milhões para os Estados e R$ 69 milhões para os municípios. Esse comportamento também pode ser percebido no conjunto geral das transferências no âmbito do SUS, uma vez que, no ano de 2001, foram transferidos R$ 14 bilhões, quantia que passa para R$ 21 bilhões, em 2005.
Os gastos referentes aos estados com ações de controle e assistência ao HIV/AIDS passam a constar das tabulações orçamentárias em 2001, com uma transferência de R$ 19 milhões aos Estados, não havendo à época qualquer transferência para os municípios. Já em 2002, o volume de recursos praticamente dobra no âmbito dos Estados, representando 1,54% das transferências totais do SUS, e são registradas as primeiras transferências para os municípios. No ano seguinte, o valor transferido praticamente dobra para os Estados, representando R$ 23 milhões a mais no âmbito das transferências estaduais. Porém o maior aumento se verifica no âmbito dos recursos repassados aos municípios, com um aumento da ordem de 35 vezes (R$ 39 milhões a mais), seguindo o padrão observado para o conjunto do SUS.
Em 2005, esse padrão de transferências financeiras se fortalece, e as transferências para ações de controle do HIV/AIDS para os municípios (R$ 70 milhões) suplantam as transferências referentes aos Estados (R$ 43 milhões). Essas sucessivas alterações na partição de recursos nas diferentes esferas do poder público atestam a vitalidade do modelo de transferência de um modo geral, e como o financiamento específico das ações em AIDS acompanhou esse mecanismo mais abrangente de transferência.
Os dados da Tabela 2 sumarizam a distribuição regional dos recursos federais transferidos segundo categorias de despesa. Observa-se que as regiões Sudeste e Sul eram, até 2002, as mais favorecidas pelas transferências de recursos. A partir de 2003, as transferências para o Nordeste se equiparam às transferências para a Região Sul, representando, respectivamente, 17,3% e 17% do total transferido para a AIDS, em 2003, e 17,4% e 18,1%, em 2004. No ano seguinte, as transferências para a Região Nordeste suplantam as transferências para a Região Sul (20,3% e 17,36%).
O principal volume de recurso transferido, proporcional ao gasto total das transferências para as ações de HIV/AIDS, entre 2002-2005, refere-se à rubrica de "Incentivo do PN-DST/AIDS", com 61,4%, 83,5% e 85%, respectivamente. Essa rubrica traduz o principal efeito da mudança no arranjo institucional da política de financiamento das ações de controle ao HIV/AIDS no Brasil, pois representam os recursos investidos nos Planos de Ações e Metas apresentados pelos Estados e municípios.
Gastos com os projetos de prevenção ao HIV/AIDS entre UDI no Rio de Janeiro, no período de 1999-2006
A Figura 1 representa o volume total de gastos com os projetos de prevenção ao HIV/AIDS na população de UDI no Rio de Janeiro. Os gastos aumentam, de forma consistente, até atingir um pico em 2002, com um investimento de R$ 432 mil. Um dos fatores relevantes para o aumento no gasto com esses projetos foi a capacitação de 12 municípios para que eles desenvolvessem ações de redução de danos entre UDI naquele ano. Esse gasto possivelmente representa uma transição para as novas regras de transferência do PN-DST/AIDS, conforme demonstradas na Tabela 1. Observa-se que, especialmente em 2004, os gastos com esses programas diminuíram drasticamente para R$ 176 mil.
Os dados da Tabela 3 sugerem que a descentralização só ocorreu efetivamente no Estado do Rio de Janeiro em 2006. Foram financiados em 2006 apenas dois programas, através da Secretaria Estadual de Saúde, um deles através de uma Secretaria Municipal de Saúde e um segundo programa através do PN-DST/AIDS, com um volume total de recursos de R$ 68 mil. Essas informações sugerem que esses programas desempenharam um papel secundário e contaram com um aporte residual de recursos no Rio de Janeiro.
Em relação à sustentabilidade dos projetos de prevenção à AIDS entre UDI financiados pelo PN-DST/AIDS é possível perceber na Figura 2 uma descontinuidade nas instituições que executaram essas ações. Apenas três instituições conseguiram se manter estáveis por mais de três anos (B, G, I, J). As demais instituições (em número de 12) experimentaram uma descontinuidade das suas atividades.
Discussão
O arranjo institucional previsto na Portaria nº. 2.314/02 9 reorientou a estrutura de financiamento da política de controle do HIV/AIDS no Brasil de forma evidente, a partir do ano de 2002. Devido ao grau de descentralização do financiamento já existente no setor saúde, o PN-DST/AIDS foi realinhando, paulatinamente, sua estratégia de implementação de ações, de modo a adaptar-se às regras da política de saúde no Brasil. Os dados apresentados demonstram o vigor do modelo de descentralização no financiamento no SUS, uma vez que os recursos transferidos através do mecanismo fundo-a-fundo aos Estados e municípios aumentaram dramaticamente nos últimos cinco anos.
Por ser este o padrão institucional dominante do SUS, seria de se esperar que o financiamento da AIDS tivesse as despesas com ações para controle do HIV/AIDS transferidas através das normas previstas na política nacional de saúde. Cedo ou tarde, o programa de AIDS seria constrangido a se incorporar a esse modelo.
O fato de os recursos da AIDS serem, grosso modo, transferidos para os Estados e municípios desloca a disputa do financiamento para as arenas políticas estaduais e regionais, tendo como instrumento de alocação o Plano de Ações e Metas, através da Comissão Intergestora Bipartite (CIB) e Comissão Intergestora Tripartite (CIT). Isso aumenta o poder de decisão dos governos estaduais e municipais acerca de quais projetos deverão ser financiados. Dessa forma, as organizações que pleiteiam recursos no campo da AIDS, como as instituições executoras de programas de redução de danos, têm de sair da esfera federal para disputar seus projetos no âmbito de Estados e municípios.
A Região Sudeste e, mais recentemente, a Região Nordeste são as maiores beneficiárias das transferências federais. O elevado investimento na Região Sudeste segue a concentração espacial da epidemia de AIDS, que afeta substancialmente a população dessa região. Por outro lado, as diferenças no volume de recursos alocados nas regiões Sul e Nordeste parecem refletir a Portaria nº. 2.129/03 23, que elevou os valores transferidos para R$ 75 mil, com relação aos municípios que contavam até então com valores de referência inferior, e aumentaram em 33% os valores de referência para os Estados e municípios das regiões Norte e Nordeste. Essa medida teve por objetivo reduzir as diferenças regionais e implementar uma resposta à AIDS no Norte e Nordeste, face à tendência de interiorização da epidemia 18,19. Uma segunda hipótese a ser investigada é a influência dos políticos e instituições regionais do Nordeste nas decisões referentes à alocação desses recursos, seja com propósitos clientelísticos, seja com vista a uma maior eqüidade, em se tratando de uma região sabidamente mais pobre e com menor infra-estrutura.
O mecanismo convenial, que possibilitava ao PN-DST/AIDS contratar diretamente ações de prevenção a AIDS, inclusive na órbita da redução de danos, está em franco declínio. Os resultados da descentralização das ações de HIV/AIDS para os Estados e municípios no Brasil são coerentes com o desenho institucional do SUS, porém, os efeitos desse processo em relação às ações de prevenção e assistência devem ser melhor investigados.
O estudo de caso dos PRD no Rio de Janeiro sugere que a descentralização das transferências para os PRD no Rio de Janeiro só se mostrou efetiva a partir de 2006, com a supressão do financiamento direto do PN-DST/AIDS aos PRD, o que obrigou os programas a buscarem fontes alternativas de financiamento. Os recursos transferidos a esses programas e o número de programas financiados foram se reduzindo consideravelmente, ao longo dos últimos três anos, o que pode se traduzir em um retrocesso nas políticas de prevenção ao HIV/AIDS entre UDI no Estado.
Uma hipótese a ser investigada é que a estrutura de veto ou os constrangimentos políticos (à plena operação desses programas) no plano estadual e municipal pode ter sido maior no nível local do que no âmbito do Ministério da Saúde. Uma possibilidade se refere aos obstáculos no âmbito do executivo governamental estadual, interpostos por grupos religiosos ou lideranças conservadoras refratárias às práticas dos interessados na implementação destas políticas (stakeholders). Mesmo com o apoio do Banco Mundial e do Ministério da Saúde, que contribuíram para aumentar a legitimidade e a aceitabilidade dessas ações, as estratégias de redução de danos no Rio de Janeiro parecem não se mostrar sustentáveis, uma vez iniciado o processo de descentralização.
A descentralização dos recursos para projetos de redução de danos no Rio de Janeiro fez com que os PRD passassem a ser selecionados pelas secretarias municipais e estaduais de saúde. Os gestores municipais e estaduais passaram a ter autonomia quanto às suas decisões de investir ou não em redução de danos. Considerando-se que a epidemia de AIDS local não é especialmente relevante entre os UDI (sua magnitude no início da epidemia era basicamente função do fato de a epidemia nacional ter-se iniciado no Rio de Janeiro e São Paulo) e se mostra claramente declinante em anos recentes 20, é provável que os gestores prefiram investir em outras ações, e não em prevenção ao HIV/AIDS entre UDI.
A maior proximidade dos executores de PRD junto aos governos locais parece não ter influenciado a agenda de redução de danos no Estado e nos municípios. Aparentemente, está em curso um fenômeno de progressiva fragilização das instituições e dos grupos de interesse, que atuariam de forma descontinuada e fragmentária no Estado. Isso pode estar igualmente associado ao fato de essas instituições não conseguirem lidar adequadamente com esse novo modelo.
Um estudo mais aprofundado se faz necessário. Mudar o arranjo institucional de uma política bem sucedida, como a política para o HIV/AIDS no Brasil implica desafios e riscos. Um retrocesso das ações de redução de danos pode se traduzir em risco de reemergência da epidemia de AIDS entre UDI ou na reemergência de outros agravos de saúde pública nesta população, como as hepatites B e C ou a tuberculose. O exemplo da epidemia de tuberculose multi-resistente que se seguiu ao desmonte dos programas de controle de Nova York deve ser sempre lembrado 24.
Atingir as regiões onde a epidemia é ainda incipiente, consolidar atividades de prevenção à AIDS entre UDI e promover uma reversão da epidemia em regiões com epidemias maduras e estáveis constituem os eixos fundamentais das políticas públicas em HIV/AIDS em todo o mundo. As lições do sucesso alcançadas pelos programas de Nova York na reversão de uma das mais extensas epidemias de AIDS entre UDI em todo o mundo devem nos servir de exemplo 25.
Estudos futuros deverão conhecer em maior detalhe a estrutura de financiamento em paralelo às transferências de recursos fundo-a-fundo, ou seja, os gastos diretos do PN-DST/AIDS, dos Estados e dos municípios com as ações de redução de danos. Entrevistas com gestores estaduais, municipais e com os executores das ações de redução de danos podem contribuir para uma melhor compreensão de como vem se dando a migração dos recursos para redução de danos do governo federal para as esferas estadual e municipal. É importante também analisar as diferenças regionais, os pontos de veto e de facilitação da política de redução de danos no Brasil.
De modo similar à dinâmica observada em diferentes países em desenvolvimento, na África, Ásia, América Latina e Leste Europeu, que, simultaneamente, descentralizaram seus sistemas de saúde e expandiram suas políticas públicas em respostas ao HIV/AIDS, estudos de como e se a descentralização facilita ou limita as respostas dos países em desenvolvimento ao HIV/AIDS serão de extrema relevância para as pesquisas em políticas públicas no presente e futuro próximo.
Colaboradores
E. M. Fonseca e J. M. Ribeiro desenvolveram a idéia para esse artigo, participaram da coleta e análise dos dados e redação final. A. Nunn e F. I. Bastos contribuíram com a análise de dados e redação final. P. B. Souza-Junior colaborou com a análise de dados.
Agradecimentos
Projeto parcialmente financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com referência ao projeto de Tese de Doutorado em Saúde Pública, de autoria de Elize Massard da Fonseca, intitulado Descentralização, AIDS e Redução de Danos no Brasil, apresentado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz em 2006. Os autores gostariam de agradecer à Unidade de Planejamento Programa Nacional de DST e AIDS, em especial a Manoel Alves e ao Programa Estadual de DST e AIDS do Rio de Janeiro, que tornaram possível este estudo preliminar.
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Correspondência:
E. M. Fonseca
Departamento de Informações em Saúde
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Brasil 4365
Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil
emassard@cict.fiocruz.br
Recebido em 29/Mai/2006
Versão final reapresentada em 16/Jan/2007
Aprovado em 19/Mar/2007