DEBATE DEBATE

 

As autoras respondem

 

The authors reply

 

 

Raquel Maria Rigotto; Lia Giraldo da Silva Augusto

 

 

Ao escrever um artigo, dentro da perspectiva dos "diálogos interdisciplinares", vimos de imediato a dificuldade de fazê-lo a duas mãos, especialmente pela diversidade de referenciais teóricos que dão sustentação a seu objetivo de tratar as iniqüidades e injustiças sociais à luz do modelo de desenvolvimento, tendo o território como um conceito operador e a saúde humana, em sua interdependência com o ambiente, como expressão deste processo.

Discorremos sobre o tema mediante processos sucessivos de diferenciação e integração de idéias, tendo, como base comum, a experiência de construção de práticas sanitárias em saúde do trabalhador e em saúde ambiental na rede de serviços de saúde. E também o campo de investigação em saúde coletiva, no qual participamos como gestoras em serviços de saúde (nas décadas de 80 e 90) e como pesquisadoras (mais recentemente), sem abandonar a militância junto aos movimentos sociais em suas lutas pelos direitos á saúde, ao trabalho e ao ambiente.

Uma reflexão sistemática sobre a articulação saúde-ambiente-desenvolvimento ainda é incipiente na saúde coletiva, embora tenhamos aportes de conhecimento em cada um destes pólos ou em binômios relacionais, muitas vezes de tipo causa-efeito, dentro de formulações lineares e de tendência disciplinar.

Mesmo considerando essas dificuldades, aceitamos o desafio e agradecemos a oportunidade de expor nossas idéias, pois acreditamos que o processo instalado de abertura de diálogo é um caminho profícuo de construção de um conhecimento contextualizado em nossa realidade.

O artigo, ao ser debatido por sete distinguidos acadêmicos, recebeu importantes contribuições complementares, de aprofundamento, de contrapontos e de novos questionamentos. Os sete debatedores lançam olhares que provêm de campos disciplinares distintos e trazem aportes que enriquecem as possibilidades de construção interdisciplinar sobre o tema.

Podemos reunir as críticas e contribuições formuladas em dois eixos principais: o enfoque no território e o relacionado com o conceito de desenvolvimento sustentável. Pareceu-nos que a articulação saúde-ambiente-desenvolvimento ainda espera por uma reflexão mais profunda – excetuando-se a importante contribuição de Christovam Barcellos – o que nos leva a compartilhar o desafio também com os leitores.

De início, faz-se necessário situarmo-nos em relação à crítica de dois colegas sobre o posicionamento ideológico do texto: "engajado", "politicamente correto" de esquerda. De fato, eles compreenderam bem: não comungamos com a crença na neutralidade da ciência – questão já bastante refletida por diversos filósofos da ciência e cientistas de importância para a humanidade, tais como Kuhn e Prigogine, ao abordarem a hegemonia e contra-hegemonia na produção científica. Como lembra Humberto Maturana 1 (p. 14), "tudo que é dito, é dito por um observador". Não há uma verdade a ser desvelada pela racionalidade científica, mas esforços sistemáticos de aproximação do real, marcados sempre pelos contextos epistemológico, histórico, sócio-cultural, político, e também pela subjetividade do pesquisador que busca interpretar o real. Assumir isso como premissa nos permite proceder à "vigilância epistemológica" que recomenda Bourdieu 2, abrindo possibilidades de produção de conhecimentos menos enviesados. É nessa perspectiva que nos propomos a responder alguns dos questionamentos e agradecer as contribuições recebidas.

Paulo César Peiter chama a atenção para a polissemia do termo "desenvolvimento sustentável" e o cuidado para não naturalizar os fenômenos sociais e não recair no ocultamento dos conflitos de interesses que se expressam no território – a maioria inconciliáveis. Sobre esse tema estamos plenamente de acordo e demos ênfase suficiente para uma abordagem que enfatiza as interconexões sócio-ambientais. Certamente que as escalas locais e globais se interconectam, mediante processos assimétricos de poder e de autonomia, como bem explicitou Milton Santos 3. Para uma natureza destinada apenas à contemplação, seria requerida uma condição hipotética da humanidade não depender dos recursos naturais para atender suas necessidades. E não é disso que tratamos, mas sim de uma perspectiva do desenvolvimento humano dirigido ao bem-estar das coletividades, sob a égide de uma ética não antropocêntrica e de uma visão integrada das lógicas sociais e da natureza, que são interdependentes.

A contribuição de Marcelo Coutinho Vargas parece afinada com o pensamento da modernização ecológica – teoria que está na base da proposta do ecocapitalismo –, na medida em que não questiona as raízes dos problemas que hoje delineiam a sociedade de risco e defende que a tecnologia trará as soluções para os problemas ambientais, os quais podem ser convertidos em oportunidades de produção de novas mercadorias e negócios – novos nichos de mercado, ampliando espaços de acumulação.

Na mesma linha, considera que as autoras minimizaram "o papel do mercado e do Estado" na construção do desenvolvimento sustentável, assim como a possibilidade do estabelecimento de consensos entre atores com interesses antagônicos (ao estilo tripartite). Nesse sentido, as autoras não negam que os conflitos de interesses dentro das disputas de mercado podem jogar um papel a favor da ecologia, mas estes são secundários – uma concessão, e não o propósito de sua realização, a menos que seja possível dele tirar vantagem econômica. Certamente, o Estado – que também expressa as contradições e os conflitos de interesse –, joga um papel fundamental nesse contexto, mesmo sob a égide do neoliberalismo, às vezes cedendo às pressões da defesa dos direitos coletivos, às (muitas) vezes servindo aos interesses dos atores econômicos transnacionais e nacionais que se ocultam sob o "sujeito oculto" mercado. Como ilustração, temos os posicionamentos do Estado brasileiro perante as demandas dos empresários ruralistas e da agricultura familiar: para tal cria dois Ministérios – o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), dirigido para atender o agronegócio; e o do Desenvolvimento Agrário, para os pequenos agricultores, e que apresentam políticas contraditórias. Também quando se trata da liberação comercial de plantas transgênicas, ou quando a questão é de proteção dos ecossistemas, o posicionamento do atual governo brasileiro tem sido em favor do crescimento econômico, reeditando o modelo desenvolvimentista. Não tem havido de fato uma política clara e explícita de tratar o desenvolvimento brasileiro na perspectiva da sustentabilidade, cabendo ao movimento social, com apoio de algumas esferas minoritárias do Estado, a capacidade de organização e mobilização política para contrapor-se à insustentabilidade do processo de desenvolvimento em curso no país. Os impactos desses e de outros processos – como a transposição do rio São Francisco – sobre a saúde e a qualidade de vida da população vêm sendo desvelados por estudos científicos e pelos movimentos sociais; eles vêm dar concretude às inter-relações entre o processo saúde-doença, o modelo de desenvolvimento e o modo de produção e consumo nas sociedades capitalistas, como já apontava a Epidemiologia Social nos anos 1970, hoje enriquecida pela abordagem ecossistêmica, pela ecologia política, entre outras construções do pensamento crítico. Por fim, Vargas concorda com as autoras de que a perspectiva da gestão integrada no território é um caminho de resistência à injustiça social e de alianças para a construção da sustentabilidade do desenvolvimento.

José Augusto Drummond coloca-se como um "cientista não engajado" e por isto "equipado" para fazer uma análise crítica com base no método científico, que reputa neutro. Ele discorda veementemente da referência de que o capitalismo industrial significou uma revolução sem precedentes na história das sociedades humanas, e pondera que a revolução neolítica teve impactos muito mais significativos para a humanidade. Embora seja arriscado fazer paralelos entre processos tão complexos e diferentes, pensamos que a emergência do capitalismo industrial caracterizou-se realmente por uma intervenção da sociedade sobre a natureza de abrangência espacial e de aceleração temporal inéditas em nossa história. Não se trata de uma simplificação maniqueísta de culpabilização do moderno capitalismo por todos os males da humanidade. No entanto, a realização do círculo virtuoso da economia capitalista só tem sido possível pela exploração intensiva dos recursos da natureza e da força de trabalho, dimensões que pressionam negativamente o ambiente e a saúde humana. O paradoxo citado entre pobreza social e riqueza ambiental não é tão simplista: Que atores sociais estabelecem o "baixo valor agregado" dos recursos naturais que exportamos? Em que medida a "terceira onda" é uma realidade homogênea no mundo globalizado? Será que a sociedade da informação e do conhecimento prescinde dos recursos naturais, da produção industrial pesada, da exploração do trabalho humano? Ou essa concepção apenas tece um véu de ocultamento sobre as desigualdades que marcam a nova divisão do trabalho e dos riscos tecnológicos e ambientais entre os blocos de poder/dependência? Se os países e regiões intranacionais considerados "desenvolvidos" não estivessem exportando riscos, por que se precisaria de tratados como os de Cartagena e Basiléia?

Hans Michael van Bellen auxilia as autoras com diversos comentários que respondem aos questionamentos dos debatedores anteriores, em especial ao reforçar a relação do conceito de desenvolvimento sustentável ao de justiça ambiental. Ressaltou a desigualdade no uso dos recursos naturais ou na distribuição dos ônus dos impactos negativos sobre o ambiente. Em geral, estes últimos recaindo com mais intensidade sobre as camadas mais pobres da população, e também para o poder público, significando maior penalização da sociedade, com proteção ao capital. Os danos ambientais e à saúde não são internalizados pelos agentes econômicos e nem há mecanismos de proteção para que os mesmos não sejam repassados aos consumidores finais. Nos sugere utilizar o modelo de "tipo ideal de Weber, na qual existem múltiplas dimensões que definiriam o grau de sustentabilidade do processo de desenvolvimento de uma dada sociedade".

Eduardo Marandola Jr. traz ao debate uma discussão bastante interessante ao aprofundar a importância do conceito de território. Buscou demonstrar sua utilidade para tratar as interfaces entre território – iniqüidades sociais – desenvolvimento, mediante o importante conceito de indicadores de vulnerabilidades e de riscos, expressos no contexto social, e que são caros à saúde coletiva. Reconhecemos que esses indicadores mais recentemente têm sido revisitados por uma epidemiologia crítica, à luz da complexidade. A internalização do conceito de território ao sistema de análise permite melhor operar a complexidade do processo saúde-doença, uma vez que podemos incluir nele o contexto, e sair da limitação dada pelos modelos de causalidade linear (de tipo causa-efeito ou de fatores de risco). Agradecemos as interessantes referências bibliográficas que certamente serão apropriadas aos diálogos interdisciplinares a que nos propusemos.

A contribuição de Christovam Barcellos nos pareceu muito próxima às questões centrais deste artigo. Traz uma discussão importante da diferenciação entre o conceito de ambiente, como uma categoria mais operacional e que compõe um sistema mais aberto. O conceito de território seria mais delimitado, teria maior identidade social, permite expressar com maior propriedade o palco das relações de poder, onde se incluem as características do ambiente e da saúde. Útil como uma estratégia para revelar as iniqüidades na distribuição das condições de riscos para a saúde e as relações de injustiças ambiental e social. Barcellos reforçou a importância da discussão sobre desigualdades territoriais e a questão das diferentes escalas. Tratar as expressões das iniqüidades e dos riscos e seus impactos para a saúde, tendo como unidade de análise o território é um avanço para o campo da Saúde Coletiva, que tem estado limitado, de uma certa forma, pelas ferramentas analíticas da epidemiologia – que são fundamentais, mas não suficientes para uma maior aproximação do modelo (complexo) de estudo dessas relações com as dinâmicas sócio-ambientais da realidade.

Por fim, Catterina Ferreccio pontua que o conceito de desenvolvimento sustentável e de justiça ambiental, embora recentes, são "naturais" aos profissionais de saúde, partindo do pressuposto de que estes são formados para "compreender a relação ambiente-agente-hospedeiro", bem como para "entender os problemas das pessoas no tempo e no lugar". Parece-nos, entretanto, que boa parte das práticas sanitárias ainda permanecem calcadas em um modelo reducionista de causalidade, de tipo linear (causa-efeito), em que o ambiente é algo externo e não interdependente da ação humana. O ser humano – e potencializado pela organização em sociedades complexas – é mais do que um hospedeiro. O modelo de Leavell-Clark hoje não mais responde à complexidade do processo saúde-doença, requerendo a implementação de uma abordagem sócio-eco-sanitária, conforme tem sido discutido 4. Demandamos novos referenciais teóricos, que inclusive nos permitam ver, para além "del papel del rio Mapocho en la transmisión de enfermedades entéricas", por exemplo, a complexidade dos processos de urbanização na América Latina, a estratificação sócio-espacial dos riscos nos conglomerados humanos, as vulnerabilidades desiguais, a omissão do Estado na garantia do direito dos cidadãos à saúde, as diferenças entre as dinâmicas das fronteiras políticas e dos ecossistemas etc.

 

 

1. Maturana HR. La realidad: ¿objetiva o construida? Tomo II. Fundamentos biológicos del conocimiento. México DF: Editora Anthropos; 1996.

2. Bourdieu P. O poder simbólico. Lisboa: Difel; 1989.

3. Santos M. A natureza do espaço. São Paulo: Editora Hucitec; 1997.

4. Tambellini AT, Câmara VA. A temática saúde e ambiente no processo de desenvolvimento do campo da saúde coletiva: aspectos históricos, conceituais e metodológicos. Ciênc Saúde Coletiva 1998; 3:47-59.

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