RESENHAS BOOK REVIEWS
Cecilia McCallum
Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. cecilia.mccallum@uol.com.br
"MEIO QUILO DE GENTE": UM ESTUDO AN-TROPOLÓGICO SOBRE ULTRA-SOM OBSTÉTRICO. Chazan LK. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 230 pp. (Coleção Antropologia e Saúde).
ISBN: 978-85-7541-127-8
Esse estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico em três clínicas particulares no Rio de Janeiro leva o leitor numa intrigante viagem intelectual, com diversos paradeiros, desde as descrições minuciosas dos acontecimentos no interior das salas de consulta dos obstetras ultra-sonografistas, até o lugar, na visão da autora, das práticas e discursos por ela descritos, num esquema geral teórico, seguindo os moldes da análise de biopoder Foucaultiano. O livro traz para o público a primeira investigação etnográfica em profundidade da prática dessa especialidade médica no Brasil, situada frente a uma discussão sucinta da literatura antropológica internacional sobre o tema. Mas, a sua importância não se deriva apenas da originalidade do objeto de investigação, pois, desde a primeira página, o trabalho se destaca pela sua competência e delicadeza, pela qualidade do texto, e pela sofisticação da sua análise.
Distintas qualidades se fazem notar: a clareza com que as referências bibliográficas referentes a diversas áreas disciplinares são discutidas e integradas ao argumento; a descrição e discussão metodológica, sobre a pesquisa antropológica em clinicas médicas, de grande valor didático, e a escrita da etnográfica em si. Chazan escreve com claro prazer, explorando em minucioso detalhe o modo em que os participantes nas sessões de ultra-sonografia as gestantes, seus parceiros e familiares, e os médicos juntos constroem e negociam significados sobre as imagens cinzentas na tela de um monitor produzidas pela tecnologia de ultra-som. Ela demonstra que a produção de sentido é dinâmica e interativa (sendo os médicos tecnicistas cientes que deste modo agradam os clientes, os estimulando a retornar) mas, mesmo assim, regida pelo expertise do médico, que "ensina" aos demais quais significados derivam as imagens.
O resultado principal dessas interações ultrapassa o ostensível objetivo médico de uma consulta de diagnosticar possíveis patologias e checar o crescimento do concepto conforme os padrões "normais". O objetivo médico vem a ocupar um segundo lugar, na medida em que o feto ganha peso e forma, e a gestante retorna para sessões sucessivas. A interpretação das imagens leva à produção do bebê como ser social, cuja individualidade é prefigurada e construída nas reações e locuções dos atores. No momento em que o sexo é estabelecido, o bebê toma os contornos de uma pessoa, com identidade própria, cuja visualização na tela, nas gravações e nas "fotos" impressas levadas para casa é fonte de crescente prazer destas e dos seus familiares.
Segundo Chazan, o prazer de "ver o bebê" se torna um dos principais motivos da marcação de futuras sessões (exceção feita no caso daquelas gravidezes em que alguma anormalidade ocasiona ansiedade e outras emoções negativas). É com astúcia e elegância que Chazan argumenta, no sexto capítulo, que a expansão no Brasil da ultra-sonografia fetal como espetáculo e objeto de consumo em si, com seus contornos social e culturalmente específicos, dá um impulso forte à continuada medicalização da gravidez no país. Seguindo a abordagem analítica que tem um lugar praticamente hegemônico nas discussões sociológicas e antropológicas sobre a biomedicina, ela defende que essa medicalização integra a expansão do biopoder, propiciando a vigia, normatização e controle dos corpos. Na conclusão do livro, a autora sustenta que o prazer de ver as imagens age como ponto central de conexão entre este aspecto da ultra-sonografia obstétrica no contexto sociocultural em foco (das classes média e alta carioca), e o aspecto em que os discursos sobre as imagens ultra-sonográficas fazem dos fetos pessoas.
Nas interações entre profissionais de saúde, gestantes e outros participantes, ocorridas durante as sessões de ultra-sonografia, o médico reafirma a hegemonia de uma epistemologia que privilegia o visual, o que é uma característica chave do conceito do saber na cultura em foco, como nota Chazan. No primeiro capítulo, ela explora a construção do olhar, a visualidade, e o lugar das tecnologias de imagem na produção de "verdades" sobre o corpo, na "sociedade ocidental contemporânea" conceito que inclui o segmento da sociedade brasileira em foco, aquele cujos membros gozam de acesso à medicina particular. Esse capítulo, junto com o que segue uma revisão da recente produção antropológica internacional sobre ultra-sonografia obstétrica introduz os temas principais que os demais capítulos vão explorar. O ponto de partida é uma discussão da visualidade, no seu entrelaçamento com o saber e o poder, na história européia dos últimos séculos. Baseada na sua revisão da literatura sobre o período, Chazan descreve como a visualidade veio a ocupar um lugar de destaque na maneira como os sujeitos se relacionam com o mundo, para então explorar o impacto da criação e difusão das tecnologias imagéticas, sobretudo, o ultra-som, sobre a obstetrícia no século 20. Esses dois capítulos fornecem a base analítica e de comparação cultural para a análise da etnografia realizada pela autora, nos capítulos seguintes.
Nota-se que Chazan toma como dado que o Brasil (ou um segmento importante da sociedade brasileira) pertence a uma categoria denominada "sociedade ocidental contemporânea". Desse modo, situa a sua análise dentro do escopo analítico histórico citado, seguindo a tradição sociológica que constrói a "modernidade" como propriedade substantiva dessas sociedades denominadas "ocidentais". Essa assimilação acrítica do mundo dos sujeitos pesquisados a uma categoria nebulosa de "sociedade ocidental" é recorrente em estudos sociais brasileiros, inclusive, na antropologia da pessoa, referencial importante para Chazan. No entanto, a desconstrução da noção de "ocidente" como conceito analítico ou descritivo, bem como da noção da pessoa atribuída às "sociedades ocidentais", tem provocado debate na antropologia desde a década de 90 (ver, por exemplo, a coletânea de Carrier 1. Para uma discussão crítica da antropologia da pessoa no Brasil, em relação ao conceito de "sociedade moderna ocidental", ver Cabral 2 e McCallum 3).
Uma omissão na discussão de Chazan sobre a sua própria etnografia diz respeito ao tema de parentesco, que está ganhando renovada importância na antropologia da reprodução e das tecnologias reprodutivas (ver, por exemplo, Edwards et al. 4). Ao destacar a construção do feto como pessoa individuada (com sexo e nome), o argumento dá menos ênfase na esfera relacional de parentesco. Um aprofundamento da discussão nessa direção enriqueceria a análise já extremamente convincente de Chazan, e levaria a uma abordagem mais ampla, o que possibilitaria a dispensação do apelo a categorias nebulosas e amplas, em favor de um maior rigor científico etnográfico.
Essas críticas são oferecidas em espírito de debate, sem a intenção de desmentir a importância desse trabalho. Não resta dúvidas de que "Meio Quilo de Gente": Um Estudo Antropológico sobre Ultra-Som Obstétrico é item indispensável para qualquer coleção bibliográfica de qualidade sobre a biomedicina e sobre a reprodução no Brasil.
1. Carrier JG, editor. Occidentalism: images of the west. Oxford: Clarendon Press; 1995.
2. Cabral JP. A pessoa e o dilema brasileiro: uma perspectiva anticesurista. Novos Estudos CEBRAP 2007; 78:95-111.
3. McCallum C. Sem nome: pessoa como processo na dinâmica racial e de gênero brasileira. In: Cabral JP, Viegas SM, organizadores. A ética dos nomes: género, etnicidade e família. Lisboa: Editorial Almedina; 2007. p. 265-89.
4. Edwards J, Franklin S, Hirsch E, Price F, Strathern M. Technologies of procreation: kinship in the age of assisted conception. Manchester: Manchester University Press; 1993.