ARTIGO ARTICLE
Atendimentos de emergência por lesões decorrentes de causas externas: características das vítimas e local de ocorrência, Estado de São Paulo, Brasil, 2005
Treatment of injuries in emergency departments: characteristics of victims and place of injury, São Paulo State, Brazil, 2005
Vilma Pinheiro GawryszewskiI; Sandro ScarpeliniII; Jorge Adalberto DibIII; Maria Helena Prado de Mello JorgeIV; Gerson Alves Pereira JuniorII; Mitsuyoshi MoritaV
ICentro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
IIIHospital Geral do Grajaú, Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil
IVFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
VHospital das Clínicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi analisar as características e local de ocorrência dos atendimentos decorrentes de causas externas em unidades de emergência. Foram analisados 35.107 atendimentos, realizados em três unidades de emergência do Estado de São Paulo, Brasil, em 2005. Entre os resultados, a maioria das vítimas foi do sexo masculino (59,1%) e da faixa etária de 0 a 29 anos (62,1%). As causas mais freqüentes foram quedas (39,3%) e impacto acidental (16,5%). Na residência ocorreram 64,7% dos casos e na via pública 19,9%. Agressões foram mais freqüentes na via pública. Nas residências há maior probabilidade das mulheres sofrerem lesões que os homens (OR = 0,51; IC95%: 0,48-0,53). Na via pública, a probabilidade dos homens virem a ser vítimas de lesões é 1,34 vez a das mulheres, nos bares é 3,22 vezes, no local de trabalho é 2,82 vezes. Maior proporção de eventos em residências foi observada para as faixas de 0 a 9 anos e de 60 anos e mais. Esses resultados ressaltam a residência como importante local de ocorrência de lesões, devendo ser objeto de programas de prevenção específicos.
Causas Externas; Acidentes; Violência; Serviços Médicos de Emergência
ABSTRACT
The objective of this study was to analyze the characteristics and place of occurrence of injuries treated in emergency departments. A total of 35,107 emergency department visits for injuries were analyzed, excluding traffic injuries, in São Paulo State, Brazil, 2005. The majority of victims were male (59.1%), and from 0 to 29 years of age (62.1%). Leading causes were falls (39.3%) and accidental blows (16.5%). Most injuries occurred in the home (64.7%), followed by public places (19.9%). Assaults were more frequent in public. Women were more likely to suffer injuries at home, as compared to men (OR = 0.51; 95%CI: 0.48-0.53). Men were 1.34 times more likely to be injured in public places, 3.22 times in bars, and 2.82 times in the workplace. A higher proportion of events among children aged 0 to 9 and individuals 60 years or older occurred at home. The results highlighted the home as an important place for the occurrence of injuries, which should be considered when planning injury prevention programs.
External Causes; Accidents; Violence; Emergency Medical Services
Introdução
Recentemente, as causas externas passaram a ser reconhecidas como um importante problema de saúde pública, que deve fazer parte da agenda de prioridades do campo da saúde em termos de condução de estudos e esforços para a sua prevenção. A maioria do conhecimento científico disponível sobre o tema é proveniente de informações acerca das mortes 1,2. A análise desses dados mostra o grande impacto que os acidentes e violências determinam na vida e saúde da população. No ano de 2005, no Estado de São Paulo, Brasil, essas causas ocuparam o segundo lugar dentre as causas de mortalidade masculina e o sétimo, na feminina. Foram 27.019 vítimas fatais, cujo coeficiente de mortalidade encontrado foi de 68,9/100 mil habitantes (115,3 entre os homens e 24,2 entre as mulheres) 3. Relativamente às internações, as taxas também são elevadas e mostram um perfil epidemiológico que difere daquele evidenciado pela mortalidade 4.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), um dos passos da abordagem da saúde pública na prevenção das causas externas é a produção do máximo conhecimento possível sobre todos os aspectos do problema, por meio da coleta de dados, com vistas a determinar sua magnitude, características e conseqüências 1. Os dados relativos aos atendimentos em emergências hospitalares são ainda pouco estudados em todo o mundo 2,5. A operacionalização da coleta, fluxo, volume e características desse tipo de atendimento são dificuldades apontadas. Mesmo nos Estados Unidos da América, país que destina muitos recursos aos sistemas de informações, os dados oficiais divulgados sobre os atendimentos realizados nas emergências são provenientes de uma amostra de hospitais que é representativa do país, mas não dos estados ou municípios 6.
Entre as vantagens de estudos em emergências pode ser apontada a obtenção de informações mais detalhadas sobre a vítima, as circunstâncias e o local de ocorrência, não conhecidas a partir dos dados oficiais de mortalidade e morbidade hospitalar. Atualmente, a produção de tal conhecimento tem grande importância, na medida em que há necessidade tanto da implementação de estratégias de prevenção mais amplas, universais, para toda a população, quanto de estratégias voltadas para grupos e/ou agravos específicos como, por exemplo, a prevenção das quedas entre os idosos, dos acidentes domésticos ou no ambiente de trabalho. Desse modo, buscando preencher uma lacuna no conhecimento do perfil mais amplo dessas causas, este estudo foi conduzido com o objetivo de conhecer as características da morbidade decorrente de causas externas em serviços de emergência hospitalar no Estado de São Paulo, com ênfase na análise dos tipos de causas externas e o local de ocorrência destes eventos.
Material e método
Trata-se de um estudo transversal, cuja população de estudo é o universo de atendimentos decorrentes de causas externas realizados em três hospitais de grande porte do Estado de São Paulo: Hospital do Grajaú, localizado no Município de São Paulo; Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; e Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Os hospitais foram selecionados por serem referências de atendimento em suas áreas geográficas. O período de coleta correspondeu a um ano nos dois primeiros hospitais (dezembro de 2004 a novembro de 2005) e seis meses no terceiro hospital (julho a dezembro de 2005).
Foi considerado como caso todo atendimento resultante de uma exposição aguda a uma força externa ou substância (por exemplo, força mecânica, térmica, elétrica, química ou radiação), afogamentos, incluindo as lesões não intencionais e aquelas relacionadas com violências e com intencionalidade indeterminada. Essa definição é recomendada pela OMS 2 e é a utilizada pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC, Estados Unidos) no sistema de coleta de dados nas emergências americanas 6. O instrumento de coleta utilizado foi um questionário elaborado a partir de modelos disponibilizados pela OMS 2, CDC e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e que já vem sendo utilizado para a coleta de dados em emergências em alguns países da América Latina. Adicionalmente, o instrumento foi avaliado por profissionais dos serviços de emergência participantes e por profissionais com reconhecida experiência no tema, tanto da área de saúde pública quanto do atendimento ao trauma. Uma preocupação importante, compartilhada por todos, foi o fato de que o questionário não deveria ser muito longo para permitir que os profissionais responsáveis pela coleta dos dados pudessem realizar seu preenchimento com boa qualidade.
Para as finalidades deste estudo, as variáveis selecionadas foram: (1) perfil demográfico das vítimas (sexo e idade) e (2) caracterização da causa externa e circunstâncias (mecanismo da causa externa e local da ocorrência). Foram excluídos os acidentes de transporte terrestre uma vez que o local de ocorrência dos mesmos é, em sua grande maioria, a via pública, além do fato de, pela sua importância e magnitude, serem objeto de outra publicação. Os tipos de causas externas foram classificados conforme a Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10) 7, tendo sido analisados inicialmente em cinco grupos de causas: quedas, queimaduras, demais causas não intencionais, agressões e lesões autoprovocadas. Devido ao grande número de atendimentos, os grupos das quedas e demais causas foi subdivido em novas categorias segundo o mecanismo do acidente (definido como a causa precipitante ou mecanismo que iniciou a cadeia de eventos que levou à lesão) 6.
Foi desenvolvido um aplicativo para a entrada de dados no programa Epi Info 2002 versão 3.3.2 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). Essas informações foram analisadas sob a forma de números absolutos e proporções. Para a verificação de diferenças estatísticas foi utilizado o teste do qui-quadrado de Pearson, tendo sido calculadas as odds ratio (OR) e os respectivos intervalos com 95% de confiança (IC95%). Os testes foram conduzidos com nível de significância de 5%. As análises foram realizadas no Epi Info 2002 e SPSS versão 13.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). Os resultados foram apresentados por meio de tabelas, nos quais os casos com informação ignorada não foram incluídos. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Santa Casa da Misericórdia. De acordo com orientação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, quando um estudo é realizado em vários locais, mas que não se caracteriza como multicêntrico, é suficiente a aprovação em somente um Conselho de Ética e Pesquisa.
Resultados
Estes resultados dizem respeito ao universo de 35.107 atendimentos decorrentes de causas externas, excluídos os acidentes de transporte, como referido anteriormente. A Tabela 1 mostra a distribuição desses atendimentos segundo sexo e faixa etária, sendo possível observar o predomínio masculino que concentrou 59,1% do total de atendimentos (20.393 casos) com sexo informado. O sexo feminino foi responsável por 40,9% dos atendimentos (14.091 casos). A razão masculino/feminino foi de 1,4. Para 623 casos a informação acerca do sexo do paciente não foi informada (1,8% do total). A população mais jovem, com idades na ampla faixa etária de 0 a 29 anos, foi a principal atingida por essas causas, concentrando 62,1% do total de casos (21.356 casos). A partir dessa faixa, foi observada uma diminuição gradual dessas ocorrências. Este padrão de distribuição é similar para ambos os sexos; porém não tão acentuado para as mulheres nas faixas mais velhas, de 50 a 59 anos, sendo que na faixa de 60 anos a proporção de atendimentos do sexo feminino é maior que do masculino.
Tipo de acidente e local de ocorrência
A Tabela 2 mostra os diferentes tipos de acidentes distribuídos segundo o local de ocorrência dos mesmos. A análise dos atendimentos segundo os cinco grupos de causas externas mostrou que as classificadas como "demais causas" foram as mais freqüentes, 16.827 casos (47,9%); seguindo-se as quedas, 13.786 (39,3%); agressões, 3.112 (8,9%); queimaduras, 909 (2,6%) e; lesões autoprovocadas, 473 (1,3%). Entre as demais causas, o impacto acidental contra objeto ou pessoa foi o tipo de ocorrência mais freqüente, perfazendo 5.798 atendimentos, 34,5% do total deste grupo. Seguem-se os eventos com instrumentos cortantes (3.013 atendimentos; 17,9%) e as quedas de objeto sobre a pessoa (1.301 casos; 7,7%). Os acidentes provocados por corpo estranho e as mordeduras de cão também foram freqüentes. No grupo das quedas, o mecanismo que determinou maior número de casos foi a queda do mesmo nível, responsável por 70,5% do total do grupo (9.726 casos), seguindo-se as quedas de escada com 12,5% (1.725 casos) e a queda de outras alturas, que pode determinar lesões de maior gravidade (1.504 casos; 10,9%).
O local onde ocorreu a grande maioria das causas externas foi a residência, contando com 22.706 casos; 64,7% do total. A via pública ocupou o segundo lugar (6.998 casos; 19,9% do total). A importância da residência como local de ocorrência pode ser observada a partir do cálculo da razão residência/via pública que foi de 3,2. O local de trabalho ocupou o terceiro lugar com 3.129 casos, 8,9% do total. A análise do tipo de causa externa distribuído segundo o local de ocorrência dos mesmos mostrou que a residência foi o principal local de ocorrências de quatro dos cinco grupos de causas, responsável por 85,3% das lesões autoprovocadas (401 casos), 74,7% das queimaduras (679), 73,3% das quedas (10.104) e 63,6% das demais causas (10.698 casos). Somente o grupo das agressões apresentou maior freqüência de casos na via pública (1.979 casos; 63,8%), seguindo-se a residência, responsável por 26,3% das ocorrências (824 casos). É importante ressaltar que o local de trabalho apareceu em terceiro lugar (666 casos; 4,8%) como local de ocorrência de quedas.
Na distribuição das diferentes categorias de causas, a residência apareceu como o local mais freqüente para todos os tipos de queda (especialmente as quedas de leito/sofá e escada), para as queimaduras por substância/objeto quente, nos casos de intoxicações acidentais, queda de objeto sobre a pessoa, impacto acidental de objetos, lesões com objetos cortantes e perfurocortantes. A via pública é o local predominante de ocorrência das mordeduras de cão. A grande maioria das lesões envolvendo máquinas (187 casos) ocorreu no ambiente de trabalho; 75,4% foram classificadas como cortes, perfuração ou laceração, e o local do corpo atingido em 88,8% dos casos foram os membros superiores.
Local de ocorrência, sexo e faixa etária
Foi observado que 58,3% (11.898 casos) dos acidentes e violências no sexo masculino ocorreram na residência, 21,9% (4.472 casos) na via pública e 12% (2.450 casos) no local de trabalho. O padrão para o sexo feminino foi um pouco diferente, uma vez que as residências foram responsáveis por 73,4% dos casos (10.348), a via pública por 17,3% (2.436 casos) e o local de trabalho por 4,6% (651 casos). A partir de uma primeira análise estatística que verificou que havia diferença estatisticamente significante (p < 0,001) entre sexo e o local de ocorrência, foram realizados outros cálculos para verificar quais eram os locais responsáveis por estas diferenças. Não foram verificadas diferenças estatisticamente significantes entre os sexos para escola e "outros locais". No entanto, nas residências a probabilidade dos homens serem vítimas de causas externas é menor que a das mulheres (OR = 0,51; IC95%: 0,48-0,53; p < 0,0001). E, ao contrário, na via pública, a probabilidade dos homens virem a ser vítimas de uma causa externa é 1,34 vez a das mulheres (IC95%: 1,27-1,42; p < 0,0001), nos bares a probabilidade é de 3,22 vezes (IC95%: 2,05-5,08; p < 0,0001), no local de trabalho é de 2,82 vezes (IC95%: 2,58-3,09; p < 0,0001) e em eventos esportivos é de 1,92 (IC95%: 1,66-2,21; p < 0,0001) (Tabela 3).
Na análise do local de ocorrência em relação à faixa etária, foi observado que apesar da residência ocupar o primeiro lugar para toda as faixas de idade, há variações importantes na proporção de casos. As mais altas proporções de eventos em residências foram encontradas nas faixas de 0 a 9 anos e 60 anos e mais (88,1% e 76,6%, respectivamente) enquanto que na faixa de idade produtiva, dos 20 aos 49 anos, a participação proporcional de lesões ocorridas na via/local público e local de trabalho aumentou (Tabela 4). A via/local público foi o segundo local de ocorrência mais freqüente para todas as faixas etárias. O local de trabalho ocupou o terceiro lugar a partir dos 20 anos de idade. Embora com proporções pequenas de casos, a escola foi o terceiro local mais freqüente de ocorrência de acidentes e violências para as faixas de 0 a 9 anos e de 10 a 19 anos.
Discussão
A predominância do sexo masculino nos atendimentos decorrentes de causas externas encontrada neste trabalho é compatível com os dados da literatura, tanto no Brasil como em outros países 8,9,10. No entanto, foi observado que essa predominância é maior nos óbitos do que nas internações. A análise dos dados de mortalidade do Estado de São Paulo, para o ano de 2005, mostrou que 82,1% das mortes ocorreram no sexo masculino 3. Já nas internações hospitalares no Sistema Único de Saúde (SUS), essa proporção é reduzida para 69,4% 4. Isso pode indicar que os homens, além de apresentarem maior risco de serem vítimas de causas externas, também apresentam lesões mais graves. Um outro dado que revela diferenças em relação às outras fontes de dados usualmente utilizadas é a distribuição por faixa etária, uma vez que, nestes resultados, há grande concentração de casos nas faixas de 0 a 9 anos e de 10 a 19 anos. O mesmo não costuma ser verificado nos dados de mortalidade e morbidade hospitalar no SUS no Estado de São Paulo 3,4.
Embora a violência tenha se tornado uma das maiores preocupações da sociedade brasileira, os resultados aqui apresentados não demonstraram que a violência teve o mesmo impacto entre os atendimentos realizados nas emergências hospitalares quanto na mortalidade. Os dados de mortalidade da população residente no Estado de São Paulo, para o ano de 2005, mostram que as causas intencionais foram responsáveis por 42% dos óbitos 3. Neste estudo, o componente não intencional predominou, tendo sido responsável por 87,2% dos atendimentos decorrentes de causas externas, excluídos os acidentes de transporte. Também a análise dos atendimentos de emergência decorrentes de causas externas em dois grandes hospitais públicos do Rio de Janeiro mostrou que as agressões (tentativas de homicídio e outras agressões) foram responsáveis por somente cerca de 6% do total de atendimentos 11. Mesmo em localidades com altas taxas de mortalidade por homicídios, como Cali, Colômbia, dados coletados em emergências hospitalares no período de 2003 a 2005 mostraram que 64% das lesões eram não intencionais e 32,6% eram intencionais 8. Estudo conduzido na Nicarágua em 2005, evidenciou que 88% dos atendimentos em emergências eram decorrentes de lesões não intencionais 12. Os dados de 2005 para os Estados Unidos da América mostraram que as causas não intencionais nas emergências corresponderam a 92,1% do total de atendimentos 9.
A alta proporção de quedas, responsável por 39,3% dos atendimentos, aponta a necessidade de planejar intervenções e novos estudos com vistas à determinação dos principais fatores de risco em nosso meio. Proporção similar foi encontrada nas emergências dos Estados Unidos (dados de 2005), onde as quedas foram responsáveis por 34,6% do total de atendimentos, excluídos também os acidentes de transporte 9. O estudo realizado em emergências no Rio de Janeiro apontou que as quedas representaram a causa de procura mais freqüente (cerca de 32%) 11. Particularmente em relação à prevenção das quedas entre os idosos, que acarretam sérias conseqüências e custos sociais altos, há vasta literatura disponível que pode subsidiar o estabelecimento de ações de curto prazo e baixo custo, como exercícios para melhorar o equilíbrio, flexibilidade e força muscular; orientação efetiva no uso dos medicamentos (especialmente os psicoativos) e; orientações no cuidado pessoal (uso de sapatos adequados) e do ambiente doméstico (iluminação, móveis, tapetes) 13,14,15,16.
O alto número de lesões determinadas por impacto acidental contra objeto ou pessoa é um achado freqüente em estudos com dados de emergências dos Estados Unidos 6,9,17 e Colômbia 8. De um modo geral, quando não intencionais, determinam lesões de menor gravidade. Também as lesões por instrumentos cortantes ou perfurocortantes determinaram demanda elevada nas emergências desses locais 6,8,9. Do mesmo modo, a observação de menores percentuais de atendimentos por intoxicações acidentais e corpo estranho também ocorreu naqueles países 6,8,9. Esses achados sugerem que o perfil da demanda de causas externas em serviços de emergência é comparável mesmo em locais tão diferentes geográfica e culturalmente.
É importante salientar o fato das residências serem o local mais freqüente de ocorrência de causas externas que determinam atendimentos nas emergências hospitalares, evidenciando a importância dos acidentes domésticos como responsável por considerável morbidade. Dados sobre causas externas e o local de ocorrência ainda são escassos na literatura, especialmente em nosso país, onde acreditamos ser este o primeiro estudo que enfatiza esta análise. Porém, publicações dos Estados Unidos reconhecem a casa como importante fonte de risco para esses eventos 17,18. O achado de maiores proporções de lesões cujo local de ocorrência foram as residências nos extremos da curva de idades (0 a 9 anos e 60 anos e mais) é esperado, uma vez que estes grupos passam maior tempo em casa do que a população em idade produtiva. Estudos americanos apontam que, para crianças menores de 15 anos e indivíduos acima de 70 anos, a residência é o local predominante de lesões não intencionais fatais 17,18. Uma vez que a maioria das famílias, em todo o mundo, gosta de considerar a sua casa como um ambiente de bem-estar, mais protegido das ameaças do mundo externo, como um lugar para estar com a família e amigos, é possível que estratégias de prevenção bem desenhadas voltadas para este grupo possam ter boa adesão e impacto na redução de ocorrência de causas externas. Particularmente as escolas e o ambiente de trabalho também devem ser considerados no desenho dessas estratégias de redução de fatores de risco. Escolas e locais de trabalhos que são incapazes de proteger seus alunos e seus trabalhadores dentro do seu próprio espaço ignoram uma de suas responsabilidades básicas.
Desse modo, considera-se que os dados aqui apresentados podem ser de grande valor para os planejadores e executores de políticas públicas, no sentido de fornecer bases concretas para o estabelecimento de ações prioritárias e o conseqüente planejamento de algumas estratégias de prevenção, sendo que muitas delas podem ser atividades educativas, geralmente de baixo custo e alto impacto, mas que devem ser contínuas, devendo envolver as escolas, serviços de saúde e a comunidade. Pesquisa conduzida em Michigan, Estados Unidos, mostrou que os professores consideravam importante a inclusão de prevenção de queimaduras no currículo escolar devido aos prejuízos sociais que tais lesões representam 19. Também as escolas médicas, considerando o perfil de morbimortalidade atual, deveriam incluir a prevenção e controle de causas externas em seus currículos 20. Certamente que tais atividades devem fazer parte de um conjunto de intervenções mais amplas que vão exigir o envolvimento dos vários setores do governo, organizações não-governamentais, indústrias e mídia, num compromisso social de criar um ambiente mais seguro para toda a sociedade. Um exemplo interessante de envolvimento positivo da mídia é a proposta de associar a inevitável cobertura de alguns acidentes com a oportunidade de divulgar informações de prevenção dos mesmos 21.
Este estudo demonstrou ainda que as emergências hospitalares podem ser uma boa fonte de dados para os acidentes de trabalho (8,9% dos eventos ocorreram no local de trabalho), uma vez que os dados provenientes das análises dos dados de morbidade e mortalidade do Departamento de Informática do SUS (DATASUS; http://www.datasus.gov.br) costumam ser muito subestimados 22 e os dados relativos à Previdência dizem respeito somente aos beneficiários. Apesar disso, merece ser ressaltado que esses resultados ainda devem estar aquém da real dimensão do problema, uma vez que os acidentes de transporte não estão incluídos nesta análise e são eventos que ocorreram em via pública relacionados com o trabalho. Também estudo conduzido na Nicarágua mostrou que o sistema de vigilância de lesões estabelecido em emergências se constituiu numa importante fonte de detecção destes casos 23.
O presente trabalho apresenta algumas limitações e pontos fortes. Entre as limitações que devem ser consideradas na interpretação dos resultados é que esses dados não devem ser generalizados e, por isso, não permitem a construção de taxas. Entre os pontos fortes está a obtenção de informações novas e detalhadas acerca das causas externas, o que é extremamente relevante para o estabelecimento das estratégias voltadas para grupos e/ou agravos específicos, para os quais já há conhecimento científico acumulado que permite o estabelecimento de propostas de curto prazo. Desse modo, estudos deste tipo ao ampliar o conhecimento do impacto das causas externas na saúde das pessoas, permitem ampliar as possibilidades de ação.
Colaboradores
V. P. Gawryszewski participou da concepção, elaboração do texto e análise dos resultados. S. Scarpelini, J. A. Dib e G. A. Pereira Junior coordenaram o trabalho de campo e revisaram o texto. M. H. P. M. Jorge colaborou na concepção, elaboração e revisão do texto. M. Morita contribuiu na análise dos resultados e elaboração do texto.
Agradecimentos
Prof. Dr. José da Rocha Carvalheiro e Dra. Neuma T. R. Hidalgo (Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo); Dr. Herlander Manoel Mendes Coelho, Elisangela Barroso Lins e Efigênia Maria da Silva Piai (Hospital Estadual do Grajaú); Dr. Renato Zan e Dra. Lygia Silveira (Irmandade Santa Casa da Misericórdia); e Dr. Afonso Dinis Costa Passos (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo). Ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; processo 505446/2004-9).
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Correspondência
V. P. Gawryszewski
Centro de Vigilância Epidemiológica
Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo
Av. Dr. Arnaldo 351, sala 609, São Paulo, SP
01246-902, Brasil
vilmapg@saude.sp.gov.br
Recebido em 11/Jun/2007
Versão final reapresentada em 24/Ago/2007
Aprovado em 24/Set/2007