DEBATE DEBATE

 

Os princípios do Sistema Único de Saúde e a atenção Básica (Programa Saúde da Família): o perigo mora ao lado

 

 

Amélia Cohn

Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. amelcohn@usp.br

 

 

O ensaio traz, no seu desenrolar, questões das mais relevantes e atuais para a reflexão sobre essa rara articulação entre dar-se prioridade à atenção básica, entendida como uma estratégia para a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), identificada com o Programa Saúde da Família (PSF), e suas implicações práticas. Daí porque deixar que o meu viés de leitura do texto prevaleça de forma explícita.

Uma primeira observação é que todo o encaminhamento da argumentação da autora, que, num primeiro momento, recupera (de maneira muito feliz) a trajetória da Atenção Primária enquanto proposta de reforma setorial, para depois resgatar experiências internacionais, para, por fim, discutir a questão brasileira, vai menos no sentido de se constituir num ensaio teórico-conceitual e muito mais no sentido de argüir (embora não seja esse o tom do texto) as implicações propriamente políticas de se adotar um programa de atenção básica (o PSF) como estratégia de implantação dos preceitos da reforma sanitária brasileira.

Mas, em assim sendo, mais uma vez a autora foi feliz ao pontuar uma das maiores falências, a meu ver, da seqüência da dinâmica da reforma sanitária brasileira a partir dos anos 90: "o vazio programático para a questão assistencial no SUS", associado aos atrativos políticos que um programa (no caso o Programa Agentes Comunitários de Saúde - PACS) representa(va), posteriormente tendo seu arcabouço refinado com a proposta do PSF.

Por outro lado, ela também aponta que um estudo de caso de municípios cariocas constatou que a ação setorial focalizada, realizada pelo PSF, não pareceu ser capaz de alterar a perversa dinâmica da "lei do cuidado inverso", ou seja, imprimir avanços na promoção da eqüidade do acesso à atenção à saúde.

Fiquemos, neste momento, com esses dois pontos. O vazio programático da questão assistencial no SUS vê-se traduzido, nos debates acadêmicos e na agenda pública, no tema (em suas várias vertentes) da racionalização do sistema de oferta de serviços de saúde, seu financiamento e seus custos. Complementarmente, a eqüidade e a universalidade, associadas à integração da rede de serviços por níveis de complexidade, buscam dar conta da outra ponta: a defesa dos princípios da reforma sanitária que se materializaram institucionalmente no SUS. Nessa dimensão, verifica-se um dos perigos presentes nas encruzilhadas nebulosas que se apresentam para o avanço da proposta sanitária formulada nos anos 70, 80 e 90: ao se assumir o PSF como uma estratégia de mudança do modelo assistencial brasileiro, esvazia-se, paradoxalmente, a dimensão da política e tende a tomar seu lugar a dimensão técnica na busca de avaliação, monitoramento e aperfeiçoamento desse modelo.

Já no que diz respeito ao segundo ponto, a baixa capacidade que a estratégia assumida revelou para reverter a "lei do cuidado inverso", ela se configura como conseqüência natural do primeiro, exatamente pelo esvaziamento da dimensão da sua política, e também da sua dimensão social, nos esforços para se preencher esse "vazio programático da questão assistencial do SUS". E ao se perderem essas duas dimensões, vários temas são relegados pela agenda do debate público. Dentre eles, agora de forma crítica, pode ser salientada a ausência de um debate vigoroso sobre as implicações de se assumir, como política prioritária de saúde, uma estratégia formulada exatamente para um perfil de atenção à saúde que é o exato oposto do ideário que inspirou e fundamentou o SUS. Num movimento paradoxo, é como se, na ausência da dimensão da política na concepção e implementação da atenção básica no país, a simples "vontade política" e "criatividade brasileira" fossem suficientes para, num passe de mágica, arregimentar os "homens e mulheres de boa vontade" para enfrentar todas as forças presentes que constrangem exatamente a viabilidade da proposta de um SUS realmente democrático e que cristalize a saúde como um direito.

Mas o texto é instigante, ainda, por propor, de forma equilibrada e realista, a discussão da questão da atenção básica tendo, como estratégia, a saúde da família, embora francamente favorável, nas entrelinhas, à tese de que essa é uma estratégia inquestionável, embora não necessariamente a única, para se atingir os objetivos do ideário sanitarista. No entanto, ela deixa de tratar uma dimensão, a meu ver das mais importantes, sobretudo quando a sua preocupação é produzir um ensaio teórico-conceitual: a difícil articulação entre os "determinantes da esfera macro e microssocial numa rede de fatores", com um perfil de complexidade não passível de ser resolvido, ou enfrentado, no âmbito do trabalho. Se a própria questão da articulação entre aquelas duas esferas demanda um esforço hercúleo para deslindá-la, o que não pode ser ignorado no caso da atenção básica é que, diante da ausência de propostas e projetos mais consistentes para a área da saúde e diante da complexidade daqueles grandes temas, o que se verifica é a proliferação de estudos e análises com traço acentuadamente empírico e de caráter micro, no geral, com a tônica na dimensão operacional do sistema de saúde e da própria atenção básica e, no outro extremo, de propostas que lançam mão de reflexões altamente abstratas e de cunho filosófico, quando não fortemente inspiradas no exoterismo, concorrendo, com isso, para o esvaziamento da discussão substantiva sobre os rumos e os novos significados que as políticas e programas de saúde vêm assumindo na atualidade. Mas é exatamente por esse "vazio programático", por mim entendido como a ausência de formulação de uma proposta substantiva para o setor, que atualize e avance nas propostas do ideário sanitário formulado no último quartel do século passado, que a oportunidade do texto se reafirma.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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