ARTIGO ARTICLE

 

Violência contra crianças na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil: a prevalência dos maus-tratos calculada com base em informações do setor educacional

 

Violence against children in the city of Ribeirão Preto, São Paulo State, Brazil: child abuse prevalence estimated from school system data

 

 

Juliana Martins Faleiros; Alessandra da Silva Araújo Matias; Marina Rezende Bazon

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Os números oficiais dos maus-tratos infantis não correspondem à realidade, pois muitos casos não são notificados. No presente estudo, buscou-se estimar a prevalência em crianças de 0 a 10 anos matriculadas em estabelecimentos educacionais da rede pública e particular da cidade, com base em informações obtidas junto aos educadores/professores, partindo do pressuposto de que eles estão bem posicionados para identificá-los, e comparar essa prevalência com a oficial. O instrumento utilizado foi a Cartilha Epidemiológica e a amostra, aleatória e representativa, composta por 305 professores, responsáveis por 6.907 crianças. A prevalência obtida, de 5,7%, contra 0,3% calculada com os dados dos Conselhos Tutelares, corroborou a hipótese de que a oficial representa tão somente a ponta do iceberg. As modalidades mais freqüentemente identificadas, tanto nos estabelecimentos públicos quanto nos particulares, foram as negligências e os abusos psicológicos, às quais geralmente se dá menor importância, por serem consideradas menos graves. Denotou-se, contudo, um agravamento das problemáticas ao longo das idades, indicando a importância de um trabalho em rede, para a detecção, notificação e intervenção precoce nessas situações, na lógica da prevenção secundária.

Violência Doméstica; Maus-Tratos Infantis; Prevalência


ABSTRACT

The official statistics on child abuse fail to reflect reality, since many cases are not reported. The current study aimed to estimate the real prevalence of child abuse in children 0 to 10 years of age enrolled in public and private daycare centers and schools in the city, using information obtained from teachers and staff, based on the premise that they are well-positioned to identify cases, and then to compare this estimated prevalence to the official rate. The instrument used was the Epidemiological Manual, and the random, representative sample consisted of 305 teachers, responsible for 6,907 children. The resulting prevalence was 5.7%, compared to 0.3% as calculated by data from the Tutorial Councils, thus corroborating the hypothesis that the official rate merely represents the tip of the iceberg. The most frequent forms of abuse identified by both the public and private schools were neglect and psychological abuse, generally considered less important, since they are viewed as less serious. The problems were also shown to become worse as the children grew older, indicating the importance of network collaboration for detection, notification, and early intervention in such situations, under the logic of secondary prevention.

Domestic Violence; Child Abuse; Prevalence


 

 

Introdução

A violência doméstica contra crianças é um importante problema social e de saúde pública, em virtude das graves conseqüências e de sua magnitude, que estima-se significativa 1,2.

O dimensionamento fidedigno dela é um desafio a ser enfrentado, pois se constitui em etapa inicial para o desenvolvimento de programas para o seu enfrentamento 3. Nesse campo, colocam-se questões relativas à identificação e à notificação dos casos.

Acredita-se que uma parte das violências contra a infância/adolescência nem seja reconhecida como tal 4,5, e outra, mesmo que identificada, não é notificada 1,6,7,8,9.

As possibilidades de acesso aos casos de maus-tratos de crianças, de acordo com Lavergne & Tourigny 4, podem ser concebidas segundo um modelo cuja representação é uma pirâmide, composta por três níveis de acesso a informações. No topo da pirâmide, ou primeiro nível, situam-se os casos conhecidos dos serviços oficiais de proteção (casos notificados), bem como os registros realizados em outras instituições com papel de controle social como a polícia.

De acordo com os autores, a maioria das pesquisas lida com informações disponíveis nesse nível, reportando uma taxa que tende a retratar mais o funcionamento dos órgãos oficiais, que o fenômeno em si, circunscrevendo especialmente os casos de maus-tratos mais visíveis e/ou graves 1,4.

No segundo nível estariam os casos conhecidos dos profissionais de diferentes serviços/instituições que lidam com o segmento infanto-juvenil, sobretudo dos setores saúde e educação. No terceiro nível, ou na base da pirâmide, estariam os casos conhecidos dos membros de uma comunidade, incluindo as próprias crianças.

Nesses dois níveis, a busca por informações referentes aos maus-tratos deve ser ativa, incluindo-se na produção das cifras os casos identificados como suspeitos ou confirmados, sejam eles notificados ou não.

O número estimado para o terceiro nível seria, provavelmente, o mais próximo da realidade. Considerando-se a natureza privada da violência doméstica e os aspectos socioculturais que a perpassam, o desafio metodológico e ético para a implementação de investigações é relevante. O desafio tem sido contornado com a proposição de pesquisas de vitimização, envolvendo as próprias crianças como informantes ou se adotando uma abordagem retrospectiva 10.

No entanto, quando são as crianças os informantes - normalmente maiores de 10 anos, fato que implica deixar de investigar o segmento mais vulnerável: o de crianças menores 11,12,13 - e o estudo retrospectivo, fia-se na percepção e memória que o adulto tem do fenômeno 14.

Assim, apesar dos limites, as investigações envolvendo as informações disponíveis no segundo nível, levantando dados junto aos profissionais dos serviços de atenção direta à infância, parece constituir-se até o momento na forma mais confiável para estimar a problemática, particularmente no que concerne a idades inferiores a 10 anos 4.

No Brasil, a importância dos setores da saúde e da educação no tocante à proteção infantil tem sido sublinhada 15. Todavia, as notificações oriundas desses setores continuam inexpressivas, em contraposição às feitas por não-profissionais (familiares, amigos e/ou vizinhos) 3,15,16,17.

No setor da saúde, especificamente, verificam-se avanços 18,19,20. Considerando o papel de destaque que ocupa frente à problemática, visto que a maior parte da demanda por ajuda ali desemboca, com toda a sua complexidade 21, os profissionais desse setor parecem mais sensíveis, verificando-se motivação crescente para criar estruturas adequadas à detecção, notificação e acompanhamento dos casos de maustratos 3,15.

No setor da educação, não se observam muitos avanços. Embora as investigações constatem que seus profissionais têm capacidade para identificar casos de maus-tratos, omitem-se da responsabilidade de lidar com o problema por diferentes razões 22,23,24,25,26.

O setor educacional é o de maior acesso e mais freqüente contato com o universo infantil; logo deve buscar identificar e conhecer os maus-tratos contra a criança em nossa sociedade.

O presente estudo, apoiando-se nessa premissa, teve por objetivo estimar a prevalência dos maus-tratos domésticos contra crianças, com idade variando de 0 a 10 anos, freqüentando estabelecimentos educacionais públicos e privados da cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, mediante informações coletadas junto a educadores/professores, caracterizando-o em modalidades como sexo, idade e tipo de estabelecimento.

Adicionalmente, visou-se confrontar a taxa assim calculada com a estimada pelos dados dos Conselhos Tutelares do município, de modo a caracterizar o comportamento do setor educacional em termos de notificação. A hipótese era de que a prevalência calculada a partir das informações obtidas no setor educacional seria bem superior à oficial, denotando a subnotificação nesse contexto.

 

Métodos

Composição da amostra

Devido ao tamanho da população, trabalhou-se com uma amostra aleatória, na razão de 0,10 da população total de crianças de 0 a 10 anos de Ribeirão Preto.

Para ter uma distribuição eqüitativa da amostra, por tipo de escola (pública e particular) e por região do município, para garantir sua representatividade, optou-se pela estratificação. Como não se tinha a informação do total de crianças por região da cidade, para compor a amostra, as escolas foram sorteadas também numa razão de 10%, distribuindo-as por tipo de escola (pública e particular) e por região da cidade.

Assim, foram sorteadas 40 escolas públicas e particulares que tinham séries de educação infantil até a quarta série, de um universo de 282.

Nas escolas trabalhavam 305 educadores/professores, que representaram 6.907 crianças, o que corresponde a 11% do montante matriculado em estabelecimentos de educação infantil e no fundamental (1ª a 4ª série), considerando-se uma população de 58.267 crianças 27, e a aproximadamente 8,7% do total de 0-10 anos residentes no município, considerando-se uma população de 79.101 na mesma faixa etária 28.

A Tabela 1 sintetiza os dados referentes ao universo amostral e à amostra selecionada.

Instrumento

Foi empregada uma versão da Cartilha Epidemiológica proposta por Bringiotti 29, traduzida e adequada semanticamente à utilização em contexto brasileiro 30,31, composta pela descrição dos objetivos, instruções para o preenchimento, as definições dos maus-tratos e os quadros em que se assinalam as respostas.

As definições empregadas formam um sistema abrangente, com categorias representativas de situações recorrentes que compõem os quatro principais tipos de maus-tratos: físicos, sexuais, psicológicos e a negligência 29:

• Mau-trato físico: ação não acidental por parte dos pais/cuidadores que provoque dano físico ou enfermidade ou coloque a criança em risco de vida por meio de golpes, queimaduras, mordidas humanas, cortes ou asfixia, implicando, por vezes, fraturas, inclusive de crânio, feridas, machucados ou hematomas, ou em lesões internas;

• Abandono físico: situações em que as necessidades físicas básicas da criança (alimentação, higiene, vestimenta, proteção e vigilância em situações potencialmente perigosas ou em que há demanda de cuidados médicos) não são atendidas temporal ou permanentemente por nenhum membro do grupo com quem a criança vive;

• Mau-trato emocional: hostilidade verbal crônica, insultos, depreciação/desvalorização ou críticas excessivas, intimidação ou ameaças de abandono, condutas ambivalentes e imprevisíveis ou situações ambíguas na comunicação, isolamento (impedindo a criança de participar de atividades com os pares), bloqueio das iniciativas infantis de contato (rechaço das iniciativas de apego e/ou exclusão das atividades familiares) ou de autonomia, por parte de qualquer membro adulto do grupo familiar;

• Abandono emocional: falta persistente de respostas às expressões emocionais e condutas de proximidade/interação iniciadas pela criança, ausência de iniciativa de interação e contato por parte de alguma figura adulta estável, renúncia por parte dos adultos em assumir as responsabilidades parentais em todos os aspectos.

• Abuso sexual: todo ato, jogo ou relação sexual, hétero ou homossexual, com ou sem contato físico, envolvendo uma ou mais crianças/adolescentes e um ou mais adultos - familiar ou tutor -, com a finalidade de estimular prazer no(s) adulto(s);

• Trabalho infantil: obrigação imposta às crianças para realizarem continuamente trabalhos, domésticos ou não, com o objetivo de obter um benefício econômico para os adultos/pais ou para a estrutura familiar, que poderiam/deveriam ser realizados pelos adultos, que, sobretudo, excedem o limite do habitual por interferirem diretamente nas atividades/necessidades sociais e escolares das crianças (brincadeiras e desempenho acadêmico);

• Mendicidade: utilização esporádica ou habitual da criança para mendigar com o objetivo de contribuir com a economia familiar ou casos em que, sem ser utilizada, a criança exerce a mendicidade por iniciativa própria, não havendo supervisão/coibição desse comportamento;

• Corrupção: facilitação ou reforço de condutas anti-sociais como, por exemplo, premiando a criança por furtar/roubar, facilitando o seu consumo de drogas e/ou álcool, iniciando a criança em contatos sexuais com outras crianças e/ou adultos, ou na prostituição, impedindo uma integração social convencional;

• Participação da criança em ações delituosas: utilização da criança para ajudar e/ou efetuar ações delituosas, como o transportar objetos roubados ou drogas ou realizar pequenos furtos;

• Falta de controle parental: demonstração de incapacidade dos responsáveis, sem solicitação de ajuda, para controlar/manejar o comportamento da criança, não estabelecendo (ou não conseguindo estabelecer) regras, ou não reagindo diante do desrespeito delas, passando a ignorar, com o passar do tempo, o lugar onde a criança está, com quem está e o que faz, considerando "não poder mais com o filho... tão difícil!".

Para o preenchimento, solicita-se ao respondente que pense nas crianças com as quais trabalha no ano corrente e assinale cada caso de mau-trato que observa, conforme as categorias apresentadas, discriminando se tem certeza ou somente suspeita, se já recebe atenção de algum órgão de proteção, além de apontar o sexo e a idade, entre outras características da criança.

Procedimentos

A coleta dos dados junto aos educadores/professores se deu entre os meses de maio e outubro de 2005.

Primeiramente, oferecia-se um treinamento para esclarecer os objetivos da pesquisa, as categorias de maus-tratos e a forma de preenchimento da Cartilha.

O treinamento e o preenchimento da Cartilha em 64% das vezes ocorreram num contexto de grupo, trabalhando com, em média 8 respondentes, geralmente no horário destinado à reunião pedagógica dos professores. Em 31% das vezes, o procedimento ocorreu num contexto individual (com um respondente de cada vez), geralmente nos períodos destinados à recreação. Em 5%, o procedimento não pôde ser realizado diretamente pelos pesquisadores devido a restrições colocadas pelo estabelecimento educacional (especificamente, escolas privadas); nesses casos a coleta, embora também tenha se dado num contexto grupal, no âmbito da própria instituição, foi realizada pela coordenadora pedagógica da escola, após ter sido treinada pelos pesquisadores.

Para a análise dos dados foram utilizados métodos quantitativo-descritivos e testes estatísticos (qui-quadrado e teste exato de Fisher), empregando-se o grau de significância de p < 0,05).

A prevalência global dos maus-tratos foi obtida pelo cálculo de proporções.

Em relação à prevalência oficial, procedeu-se ao levantamento, nos três Conselhos Tutelares da cidade, nos livros de registros e prontuários, dos números de casos de maus-tratos de crianças entre 0 e 10 anos, para o mesmo ano de referência da pesquisa (2005). Os dados foram submetidos ao cálculo de proporções em relação à população na mesma faixa etária.

Os parâmetros éticos para investigações envolvendo seres humanos, especialmente a Resolução nº.196/96, do Conselho Nacional de Saúde, foram rigorosamente respeitados.

 

Resultados

Foram assinalados 391 casos sobre 6.907 crianças, resultando numa prevalência de 5,7%. Esta, quando projetada para a população matriculada em estabelecimentos educacionais, num intervalo de 95% de confiança, variou de 5,1% a 6,2%. A prevalência para as creches e pré-escolas (0-6 anos) foi de 8% (IC95%: 7-9) e para a educação fundamental (7-10 anos) foi de 3,9% (IC95%: 3,3-4,6).

No que diz respeito às prevalências oficiais, a taxa para as crianças de 0-6 anos foi de 0,2%, e para as de 7-10 anos de 0,36%, sendo a geral de 0,3%. Estas são significantemente menores que as prevalências calculadas com base no setor educacional (p < 0,001).

Dos 391 casos assinalados pelos educadores/professores, 86% não recebiam atenção por parte de qualquer órgão, enquanto para outros 7% os educadores/professores não tinham conhecimento se eram ou não acompanhados. Somente 7% dos 391 casos recebiam atenção.

Quanto à distribuição por categorias, as mais freqüentes foram "falta de controle parental" (32,7%), "abandono emocional" (31%) e "abandono físico" (24,8%), que, juntas, compõem a "negligência".

Vale notar que havia a possibilidade dos respondentes incluírem situações outras que julgassem ser expressões de maus-tratos. Assim, surgiu a categoria "outros", referente, na maioria das vezes, para o grupo de 0-6 anos, à exposição à violência conjugal e, para o de 7-10 anos, à apresentação de um comportamento social preocupante, como atos de depredação da escola e de evasão, em que o aluno deixa de freqüentar a escola e passa a ficar na rua o dia todo. A Figura 1 ilustra essa distribuição.

Para o segmento 0-6 anos, em 18% dos casos, assinalou-se a ocorrência de mais de uma forma de mau-trato, em média 2 tipos, sendo a associação mais freqüente a de "abandono físico" e "emocional".

Para os 7-10 anos, a co-ocorrência foi de 48%; em 28%, as crianças sofreriam duas formas; em 29%, três. A associação mais freqüente no caso da dupla ocorrência foi "maus-tratos físico e emocional" e, no de tripla, "abandono físico e emocional" e "maus-tratos emocionais".

Quanto à distribuição por sexo, do total, 62% são do sexo masculino.

Em relação às formas por sexo, os meninos sofreriam significantemente mais a "falta de controle parental" (p < 0,001), ao passo que as meninas sofreriam mais o "abandono físico" (p = 0,018) e o "emocional" (p = 0,001). A Figura 2 ilustra essa distribuição.

Em relação à modalidade por grupos etários, as crianças mais velhas (acima de 7 anos) sofreriam significativamente mais "maus-tratos físico" (p = 0,04) e "emocional" (p < 0,001) que as crianças de 0 a 6 anos. Seriam também as mais velhas a vivenciar mais situações de "trabalho infantil" (p = 0,045), a se envolver em "ações delituosas" (p = 0,045) e serem submetidas a "outras" formas (p = 0,023).

A Figura 3 apresenta as proporções dos maus-tratos por faixa-etária.

Considerando o tipo de estabelecimento, do total de casos assinalados, 61% pertencem às escolas públicas. Entretanto, procedendo-se ao cálculo da prevalência, a taxa nas escolas públicas foi 5,5% (IC95%: 4,9-6,3) e, nas particulares foi 5,8% (IC95%: 5,0-6,9), não sendo significativa a diferença (p = 0,63).

Quanto às modalidades por tipos de estabelecimento, as públicas teriam significantemente mais casos de "abandono físico" (p < 0,001) e "outros" (p = 0,036), havendo tendência à associação com "mau-trato físico" (p = 0,058) e "trabalho infantil" (p = 0,054).

Já nas particulares haveria significantemente mais "falta de controle parental" (p < 0,001). Dados descritivos são apresentados na Figura 4.

 

Discussão

A prevalência de 5,7%, calculada no setor educacional, confirma a hipótese de que a prevalência oficial (0,3%) é bem menor, tendendo a representar tão somente a "ponta do iceberg", e a diferença parece tanto maior quanto mais jovens são as crianças, reforçando os indicativos sobre sua maior vulnerabilidade 22,29,32. Isso permite dizer que há um número significativo de crianças vivendo situações adversas, ante as quais se tem certeza ou suspeita de maus-tratos, que não é conhecido oficialmente, deixando de receber atenção, inclusive no sentido de ser mais bem investigado para o devido acompanhamento.

Essa constatação é preocupante, justificando ações para compreender esse panorama no setor educacional, que remete à omissão de profissionais que legalmente não poderiam deixar de notificar 24,33,34,35. Fato é que os novos marcos sociais e legais relativos à proteção infantil não estão totalmente integrados à prática dos profissionais que atuam diretamente com as crianças 36.

Dentre os casos assinalados, as situações mais freqüentes foram "falta de controle parental", "abandono emocional" e "abandono físico", nessa ordem. Essas categorias compõem a "negligência" 29,37,38,39, que se configura, portanto, na modalidade mais recorrentemente identificada no setor educacional.

Um levantamento de estudos nacionais reportando distribuição dos maus-tratos por modalidade indica que somente seis vão na mesma direção 40. A maioria afirma ser a violência física a mais recorrente, que em nosso levantamento aparece em terceiro lugar (depois da negligência - seus subtipos - e do mau-trato emocional).

Isso talvez possa ser explicado pelo fato de o abuso físico de menor intensidade, com impacto imediato pouco visível, não ser concebido como violência, raciocínio que encontrou algum suporte na metodologia de coleta de dados, no presente trabalho, pela qual se enfatiza eventos de maior gravidade.

Nessa linha, deve-se também considerar que a punição corporal, mesmo causando pequenos agravos, é muito difundida e aceita pela população em geral, incluindo aí os próprios profissionais da infância; por essa razão, situações que a envolve nem sempre são vistas como abusivas 1,2,22.

Em contrapartida, os maus-tratos físicos tenderiam a ocupar o primeiro posto entre as modalidades de violência perpetradas quando a fonte de informações é da saúde ou pertence a serviços de encaminhamento de vítimas; nesses contextos normalmente convergem os casos que produzem seqüelas físicas aparentes, considerados mais graves e, por isso, mais prontamente associadas à violência, conforme o apontamento feito por Bazon 40.

As negligências, em seu turno, seriam mais perceptíveis/valorizadas em contextos como os da educação dada à atenção diferenciada dos educadores aos indicadores emocionais/comportamentais, que sobressaem na convivência com as crianças 41.

Verdade é que tanto os abusos físicos quanto à negligência parecem constituir-se em situações muito recorrentes na comunidade e estão atrelados a conseqüências muito sérias. No que se refere aos abusos físicos, essas já são mais bem conhecidas 1. Quanto à negligência, há menos dados. Investigações internacionais sublinham a necessidade de intensificar investigações específicas considerando esse objeto 42,43, pois tudo indica que o seu impacto é particularmente prejudicial ao desenvolvimento e que muitos casos de óbitos de crianças, explicados como "acidentes domésticos", a têm por detrás 44.

Dentro disso, chama atenção a alta freqüência de "falta de controle parental", referindo-se aos casos em que os responsáveis não conseguem exercer controle sobre as condutas dos filhos e reclamam que "não podem mais...tão difícil". Segundo Bringiotti 29, esse tipo de atitude parental é cada vez mais comum, em todos os setores sociais, associando-se, freqüentemente, ao aparecimento de comportamento de excessiva independência, agressões, fugas de casa e procura por pares conflitivos nas crianças.

Essa categoria foi significantemente mais freqüente nas escolas particulares, remetendo a um padrão de regulação do comportamento infantil, nas camadas médias, muito permissivo, que pode gerar muitas dificuldades para os educadores, no sentido de colocar limites, num contexto relacional em que tais alunos/famílias são, muitas vezes, concebidos como clientes. Como implica conseqüências que têm repercussão direta para o trabalho do educador, é possível que a sensibilidade para reconhecer tal categoria seja maior.

Ademais, assinalar essa forma de mau-trato também pode ser mais fácil porque, na concepção dos professores, essa não seria fruto de uma intenção negativa dos pais, aspecto que caracterizaria mais facilmente outros tipos, como o abuso físico ou sexual: durante a coleta de dados, muitos expressavam a opinião de que a "falta de controle parental" estaria relacionada à falta de tempo para estar com os filhos, que concorreria para interações marcadas pela indulgência, permissividade e incoerência na aplicação de regras.

De todo modo, é preciso tomar, seriamente, a "falta de controle parental" em conta. Não se constatou diferenças significativas entre as faixas etárias, o que denota que a "perda" de controle sobre a conduta dos filhos perpassaria toda a infância, impondo uma indagação sobre a evolução desta na adolescência.

Nessa direção, a categoria "outros", referente a situações em que as crianças apresentam sérios problemas de comportamento, associando evasão escolar e permanência na rua, sem supervisão dos responsáveis, é significantemente mais freqüente nas mais velhas, como também o é a modalidade "ações delituosas", dando indícios de que para um subgrupo haveria um agravamento das conseqüências à medida que crescem.

"Falta de controle parental" foi também significantemente mais freqüente em meninos, talvez, em razão de sua propensão em apresentar sintomas externalizados 45, que geralmente concorrem para desestruturar a prática educativa dos cuidadores, gerando um ciclo de dificuldades na socialização, para esse sexo 46,47.

Por outro lado, as meninas vivenciariam mais as duas outras formas de negligência: o "abandono físico" e o "emocional". Enquanto o Físico estaria significantemente associado às escolas públicas, o "emocional" aconteceria em proporção semelhante entre as meninas de ambos os tipos de estabelecimentos.

A segunda modalidade de maus-tratos mais freqüente, no presente levantamento, depois das Negligências, é o "mau-trato emocional", representando o abuso psicológico, denotando novamente que, no âmbito da educação, destaca-se numericamente uma modalidade que recebe pouca atenção, sendo essa normalmente subdetectada e subnotificada na comunidade em geral, até porque, com base no senso comum, é considerada "leve" ou não tão grave, embora cientificamente disponha-se de indicações sobre seus efeitos deletérios 1,48.

Concernindo essa forma de abuso, não houve diferença significativa entre meninos e meninas e tipos de estabelecimento, na mesma direção de outros estudos 15,49. Com isso, pode-se afirmar que as formas "emocionais" ("mau-trato emocional" e "abandono emocional") incidem igualmente em escolas públicas e particulares, sugerindo que variáveis sócio-econômicas parecem não proteger as crianças de experimentar a falta de interações de qualidade com os cuidadores e terem suas necessidades emocionais não atendidas.

Considerando que o tipo de estabelecimento seja uma aproximação do nível econômico das famílias, as formas que parecem ter maior relação com a desvantagem sócio-econômica são o "mau-trato físico" e o "trabalho infantil", verificada a tendência à associação de suas ocorrências às escolas públicas. Quanto ao "mau-trato físico", ainda que a punição corporal seja generalizada conforme mencionado acima, sendo as práticas educativas implementadas pelas classes mais abastadas mais protegidas pelo "muro de silêncio", estando as agressões físicas menos visíveis nesse contexto, o resultado encontrado corrobora estudos que demonstram uma associação mais forte entre baixo status sócio-econômico e maior recorrência a métodos disciplinares baseados em punição corporal 50,51.

O "trabalho infantil", aparecendo com maior freqüência nas escolas públicas, refere-se particularmente às crianças mais velhas, o que pode indicar que a imposição desse à criança, além visar à contribuição material, muitas vezes imprescindível, denunciando a precariedade em que vivem 52, pode estar sendo concebido como uma forma legítima de educação em algumas famílias.

O "mau-trato físico" e o "emocional" são também tanto mais freqüentes quanto mais velhas são as crianças. Pensa-se que as aquisições desenvolvimentistas das crianças, somadas às dificuldades comportamentais/emocionais, decorrentes da própria vivência de maus-tratos, aumentam consideravelmente o desafio posto aos cuidadores de manejarem adequadamente o comportamento dos filhos, incrementando sua propensão ao abuso da força física e/ou emocional 29,49,53,54.

Assim, verifica-se uma dupla dinâmica: com o crescimento/desenvolvimento da criança, e o incremento dos desafios colocados pelo seu comportamento, os responsáveis passariam a exercer um controle mais coercitivo sobre sua conduta, caracterizado por ameaças e/ou pela punição corporal, e/ou "abrindo mão" disso, desengajando-se ainda mais da tarefa de cuidar/educar (quando, então, verifica-se a "falta de controle parental") 55. É certo que tanto a primeira quanto a segunda dinâmica, ou ambas, acontecendo concomitantemente, têm conseqüências negativas para o desenvolvimento físico e sócio-emocional da criança.

Ressalta-se que também são as crianças mais velhas que sofrem mais tipos de maus-tratos simultaneamente, lembrando que algumas investigações científicas apontam que experienciar vários tipos tem suas próprias conseqüências 56.

No conjunto, as informações concernentes aos maus-tratos mais freqüentemente identificados no contexto educacional, segundo as observações de seus profissionais - as Negligências, o Abuso Psicológico e o Físico -, permitem vislumbrar uma dinâmica desenvolvimentista do problema, pela qual se vai das formas mais sutis às mais contundentes, fazendo-se acompanhar, inicialmente, de conseqüências pouco evidentes ou pouco valorizadas - em termos de gravidade - até o aparecimento de outras mais exuberantes que indicam pela sua natureza uma maior estruturação do problema 57. Embora mereça investigações específicas, tal proposição corrobora os apontamentos de Peres et al. 58 quanto à existência de uma trajetória de incremento do problema da violência envolvendo jovens em nosso contexto.

Para finalizar, cumpre considerar que as formas com menores freqüências de identificação no contexto educacional - o "abuso sexual", "corrupção", "mendicidade", "trabalho infantil" e "ações delituosas" - talvez sejam de fato menos prevalentes, mesmo que se deva cogitar a possibilidade de as suas identificações dependerem de um conhecimento mais apurado de indicadores pertinentes e do cotidiano das famílias 59. Especificamente em relação ao "abuso sexual", o forte tabu que o envolve pode propiciar uma atitude de evitamento em relação ao tema que aumenta a dificuldade dos educadores/professores em percebê-lo/revelá-lo 22,29.

 

Conclusões

O uso de informantes secundários para estimar problemáticas humanas/sociais introduz vieses que concorrem para que elas sejam sub ou superavaliadas 14. No caso dos educadores/professores e da problemática dos maus-tratos, a informação de que dispõem sofre a influência de sua subjetividade (sensibilidade/conhecimento) e da política educacional, que promove maior ou menor abertura/resistência ao tema, havendo elementos para acreditar que em nosso contexto atual prepondere o problema da subdetecção 3,41,60,61,62, fato que torna patente a necessidade de investimento em políticas que dêem relevo à problemática nesse setor a fim de que os profissionais sejam mais bem preparados para a detecção dos casos 37.

Ainda assim, verificou-se que no setor se suspeita de um número de casos bastante superior ao oficialmente conhecido, denotando que o problema maior é o da subnotificação 60; situação que é muito grave na medida em que a notificação é ação fundamental à proteção infantil 5.

Ademais, constatou-se que nesse contexto parece-se capaz de identificar situações de maus-tratos "latentes" ou em instalação, que tendem a se agravar ao longo do tempo. Se esses se tornassem conhecidos e fossem avaliados para receber o devido acompanhamento, estar-se-ia consolidando uma importante ação relativa à prevenção secundária, baseada na identificação precoce dos problemas 5, com a minimização de oportunidades perdidas no tocante às possibilidades de intervenção em violência contra a criança 3.

Para o estabelecimento desse quadro seria fundamental que houvesse a articulação entre os setores da saúde e da educação, talvez sob o enfoque da saúde do escolar, para melhor identificar as ocorrências de maus-tratos e aprimorar diagnósticos que retratem a ocorrência do problema nesse âmbito 5.

Vale dizer que, estruturando-se para também prestar uma intervenção precoce no/em parceria com o setor educacional, numa lógica de trabalho em rede, que é certamente a mais promissora forma de trabalho frente à tão complexa problemática, o próprio setor da saúde se beneficiaria a longo prazo com a provável redução das demandas em nível terciário 1,5,22,26,63,64.

 

Colaboradores

J. M. Faleiros contribuiu com a concepção e com a redação do artigo, revisando a literatura, realizando as análises e elaborando os gráficos, bem como participando da discussão dos resultados. A. S. A. Matias contribuiu com a estruturação da metodologia empregada na pesquisa, supervisionou a coleta de dados e auxiliou na revisão da literatura. M. R. Bazon concebeu a pesquisa e o artigo apresentado, tendo realizado a revisão final.

 

Referências

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Correspondência
M. R. Bazon
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo.
Av. Bandeirantes 3900, Ribeirão Preto, SP
14040-901, Brasil.
mbazon@ffclrp.usp.br

Recebido em 14/Ago/2007
Versão final reapresentada em 18/Jul/2008
Aprovado em 24/Jul/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br