ARTIGO ARTICLE
Análise espacial da ocorrência de dengue e condições de vida na cidade de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Spatial analysis of dengue occurrence and living conditions in Nova Iguaçu, Rio de Janeiro State, Brazil
Juliana Pires MachadoI; Rosely Magalhães de OliveiraII; Reinaldo Souza-SantosII
IGerência de Produção e Análise de Informações, Agência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
A reemergência da dengue, sua disseminação e manutenção vêm desafiando o sistema de saúde brasileiro. Fatores relacionados às condições de vida da população têm sido abordados na compreensão de diferentes desfechos em saúde. Este trabalho analisa a ocorrência da dengue e sua relação com as condições de vida no Município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, de 1996 a 2004. Os dados sobre ocorrência de dengue foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Para caracterização das condições de vida, foi construído um indicador composto com variáveis sócio-econômicas e de infra-estrutura urbana coletadas no Censo Demográfico de 2000. Operações entre camadas foram utilizadas para identificar associações espaciais entre o indicador composto e a incidência de dengue por bairros. Apesar de não se evidenciar uma relação linear entre condições de vida ruins e ocorrência da doença, os padrões espaciais observados indicaram maior suscetibilidade de áreas com desigualdades nas condições de vida e localizadas próximas às vias de acesso. Os achados sugerem ainda que, além de outros fatores relacionados à ocorrência da doença, as desigualdades observadas podem interferir na tendência temporal da dengue. Assim, modelos que considerem a interação entre variáveis sócio-econômicas e não apenas a quantificação de indicadores sociais isolados podem ser úteis para a vigilância da dengue.
Dengue; Condições Sociais; Análise Espacia
ABSTRACT
The reemergence, spread, and persistence of dengue are currently challenging the Brazilian health system. Factors related to living conditions have been addressed to understand different health outcomes. This study examines the occurrence of dengue and its relationship to living conditions in the city of Nova Iguaçu, Rio de Janeiro State, from 1996 to 2004. Data on dengue occurrence were obtained from the Brazilian National Disease Notification System (SINAN). A composite indicator of socioeconomic and urban infrastructure variables was created to characterize the prevailing living conditions, using 2000 census data. Operations between layers were used to identify spatial associations between the composite indicator and dengue incidence by neighborhood. The results do not show a linear relationship between poor living conditions and disease occurrence, but the spatial patterns indicated greater susceptibility of areas with inequalities in living conditions and behind highway access routes. The results also suggest that such inequalities can influence the dengue time trend. Thus, models that consider the interaction between socioeconomic variables (and not only the quantification of social indicators) can be useful for dengue surveillance.
Dengue; Social Conditions; Spatial Analysis
Introdução
A dengue é a principal doença reemergente da atualidade e quase 40% da população mundial vivem sob o risco de adquiri-la. O aumento do número de casos e a disseminação para novas áreas geográficas, especialmente as regiões tropicais, fazem da doença um importante problema de saúde pública 1,2,3,4. Reconhece-se que, assim como em outras viroses reemergentes, seu desencadeamento se relaciona às atividades humanas que modificam o ambiente 3,5,6.
A influência das desigualdades sociais sobre a situação de saúde de populações vem sendo discutida em diversos estudos de forma ampla 7,8 ou sob análises de eventos específicos 9,10,11,12. Alguns autores abordam a relação entre variáveis relacionadas às condições de vida da população e a ocorrência da dengue; entretanto os resultados encontrados são divergentes 13,14,15,16,17. A maioria destes estudos utilizou metodologia em que as variáveis relativas às condições de vida foram abordadas num mesmo nível, não contemplando o contexto social enquanto unidade complexa, no qual fatores sócio-culturais e estruturais urbanos geram uma realidade única em cada local, favorecendo ou não a disseminação da dengue.
O georreferenciamento dos eventos de saúde tem sido descrito como uma ferramenta importante na análise e avaliação de riscos à saúde coletiva, particularmente os relacionados ao meio ambiente e ao perfil sócio-econômico da população 15,18. Tal recurso participa na investigação em que se verificam fatores determinantes de agravos à saúde, auxiliando na identificação da interdependência de processos espaciais, que se refletem na sua configuração social, ambiental e epidemiológica 19.
Este estudo analisa a relação entre as condições de vida e a ocorrência da dengue, e investiga a possível relação entre as desigualdades sócio-econômicas e variações temporais da incidência da doença por bairros do Município de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, no período de 1996 a 2004.
Metodologia
O Município de Nova Iguaçu situa-se na Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, Sudeste do Brasil, e abriga atualmente mais de 800 mil habitantes. A cidade é dividida administrativamente em 68 bairros e possui duas áreas de preservação ambiental. Sua ocupação remonta a expansão da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e ocorreu a partir das vias de acesso que ligam o município à cidade do Rio de Janeiro.
Nova Iguaçu vem apresentando grande receptividade e vulnerabilidade à dengue, tendo reportado subseqüentes epidemias desde 1986. Destaca-se pelo isolamento pioneiro do vírus no país (DEN-1 em 1986, DEN-2 em 1990 e DEN-3 em 2001) e pela co-circulação dos três diferentes sorotipos 20,21,22.
Os casos de dengue notificados à Secretaria Municipal de Saúde de Nova Iguaçu e registrados no SINAN (Sistema Nacional de Agravos de Notificação), referentes ao período de 1996 a 2004 foram utilizados neste estudo. As informações sobre condições sócio-econômicas são provenientes do Censo Demográfico de 2000. Dados de população coletados e estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram consultados na página do Departamento de Informática do SUS (DATASUS; http://www.datasus.gov.br).
Neste estudo ecológico de base censitária, utilizaram-se os bairros como unidade mínima de análise, uma vez que não foi possível agrupar os registros por setores censitários com base na recuperação dos endereços dos pacientes notificados sobre o eixo de ruas do município. Os anos estudados foram agrupados em períodos epidêmicos e interepidêmicos para a análise espaço-temporal, utilizando-se a incidência acumulada como medida de análise da ocorrência de dengue.
A fim de caracterizar as condições de vida (CV) por bairros, selecionaram-se seis indicadores após a exclusão por colinearidade: razão de dependência (RD), proporção de chefes de domicílio sem instrução (PCSI), índice de pobreza (IP), densidade populacional (DP), abastecimento de água (AA) e coleta de lixo (CL). Com base nessas variáveis, foi construído o indicador composto das condições de vida (ICV), que associou características sócio-econômicas e de moradia, conforme metodologia desenvolvida por Machado 23.
Cada bairro de Nova Iguaçu recebeu um fator de classificação (FC) que variou entre -1 (CV baixa), +0 (CV média baixa), +1 (CV média alta) e +2 (CV alta), segundo a interação dos resultados observados para as variáveis selecionadas, destacando-se o abastecimento de água e a proporção de chefes de domicílio sem instrução como de maior peso 23.
As variáveis relacionadas à estrutura social (RD, PCSI, IP e DP) receberam sinal negativo em razão da relação inversa com as melhores condições de vida e peso 2 por expressarem a inserção social, vinculada à possibilidade de melhores condições de habitação e acesso aos serviços públicos. Já as variáveis relacionadas à disponibilidade dos serviços urbanos (AA e CL) receberam sinal positivo por serem diretamente relacionadas às melhores condições de vida e peso 1. O indicador composto final foi calculado multiplicando-se cada variável pelo respectivo peso e somando-se o fator de classificação multiplicado por 3, em seguida dividindo-se o valor encontrado por 7, a fim de se obter um indicador final que variasse entre -1 e +1 de acordo com a fórmula abaixo. O ICV buscou caracterizar os bairros de forma que quanto maior seu valor melhores as condições de vida.
* Maior valor de DP/adaptado para variar de 0 a 1.
A investigação das relações entre as condições de vida e a ocorrência de dengue se deu sob a perspectiva da análise espacial. A distribuição geográfica dos dados segundo os polígonos de bairros foi realizada com auxílio do programa TerraView versão 3.1.4 (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; http://www.dpi.inpe.br/terraview). A malha de bairros utilizada foi fornecida pelo Laboratório de Geoprocessamento do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/FIOCRUZ).
Operações entre camadas foram utilizadas para identificar sobreposições que indicassem associação local entre dengue e condições de vida, delimitando padrões de espalhamento e regiões relevantes mediante a distribuição da incidência da doença e das condições de vida no município, medidas por meio do indicador composto construído.
Os padrões de dependência espacial que geram áreas homogêneas para a ocorrência da dengue ou para condições de vida foram investigados por intermédio do cálculo do índice de Moran Local ou "LISA" 24, que indica um valor referente à correlação dos bairros com seus vizinhos adjacentes, apontando regiões onde a autocorrelação espacial tem significância estatística. O índice de Moran Local foi calculado com base na normalização do valor do indicador original em cada bairro, utilizando-se a diferença entre a média global e o valor do bairro dividida pelo desvio padrão, de modo que a unidade do indicador passasse a ser unidades de desvio-padrão de afastamento da média 25.
Essa técnica permite a visualização do indicador graficamente, pelo diagrama de espalhamento de Moran: no eixo X é representado o valor do indicador normalizado (índice de Moran Local); no eixo Y, o valor da estatística de Moran (ou Moran Global), calculado pela autocorrelação espacial entre os vizinhos do bairro 25. A análise dos quadrantes do diagrama indica áreas de associação espacial positiva Q1 (valores positivos, médias positivas) e Q2 (valores negativos, médias negativas) e áreas de associação espacial negativa Q3 (valores positivos, médias negativas) e Q4 (valores negativos, médias positivas). Para a representação espacial do diagrama de espalhamento de Moran, foi utilizado o Moran Map, que considera no mapeamento dos bairros apenas os valores estatisticamente significantes.
A estimativa de kernel também foi utilizada na análise de distribuição espacial da incidência acumulada de dengue. Com o objetivo de identificar áreas de maior concentração de casos no município, utilizou-se como parâmetros para gerar o mapa de kernel grade de 100 colunas sobre os eventos, com algoritmo de função quártica e raio adaptativo 25,26.
Aos padrões espaciais de condições de vida observados, foram relacionados aqueles ligados à ocorrência do dengue, indicando a existência ou não de associação no espaço. Para identificar tendências espaço-temporais de ocorrência da doença, foram utilizadas análises de correlação entre os períodos estudados.
Resultados
Nos anos estudados, caracterizam-se quatro períodos distintos segundo a incidência da dengue. De 1996 a 2000, as taxas encontradas foram menores que as de outros períodos. Em 2001, observou-se uma epidemia no município, que em 2002 tomou magnitude ainda maior e alcançou incidência de mais de mil casos a cada 100 mil habitantes. No período de 2003 a 2004, há uma queda das incidências observadas, caracterizando-o como interepidêmico. A população foi atingida de forma semelhante quando comparados os sexos, com predominância de maiores incidências em adultos de 20 a 49 anos.
Em períodos epidêmicos e interepidêmicos, destacam-se com as maiores incidências os mesmos bairros de Nova Iguaçu, contíguos às vias de acesso do município, destacando-se Centro e Posse. Na correlação dos períodos, verificou-se que bairros com histórico de alta incidência de dengue em períodos anteriores detêm maior possibilidade de ocorrência da doença no período subseqüente, o que é mais intenso nos anos epidêmicos (Figuras 1 e 2).
Os bairros de Nova Iguaçu mais acometidos pela dengue no período analisado caracterizam-se pela contigüidade à Rodovia Presidente Dutra (como os bairros do Centro, Posse, Comendador Soares) ou a outras vias de acesso como a Estrada de Madureira (Rodovia Estadual RJ 105 - Danon, Alvorada, Nova Era - e RJ 111 - Posse, Três Corações, Bairro Botafogo e Vila de Cava) e como a linha ferroviária (Austin, Centro) (Figuras 1 e 3). Dos 68 bairros de Nova Iguaçu, apenas nove apresentaram autocorrelação espacial para a dengue estatisticamente significativa. Como esses nove bairros não estão agrupados em áreas determinadas do município, não há como afirmar que a ocorrência da dengue em Nova Iguaçu tenha sido influenciada pela situação de vizinhança dos bairros (Figura 3b).
Já quanto às condições de vida no município, constatou-se autocorrelação espacial estatisticamente significativa em duas áreas: na primeira, com as melhores condições de vida, estão o bairro do Centro e outros no seu entorno; na segunda, um bloco de bairros situado ao norte do município, estão as piores condições de vida. Entre estes dois agrupamentos e nas linhas limítrofes entre eles e bairros vizinhos, encontrou-se a formação de um corredor de bairros com condições de vida intermediárias, sem autocorrelação espacial estatisticamente significativa, localizados em regiões onde bairros adjacentes possuem diferentes condições de vida, indicando uma heterogeneidade local de condições de vida (Figura 4).
A correlação estatística entre a condição de vida (medida pelo ICV) e a incidência de dengue apresentou associações positivas baixas, com r de Pearson menor que 0,3, indicando associação fraca entre a exposição e o desfecho no nível de bairros, com possibilidade de ocorrência da doença levemente maior em bairros de melhores condições de vida.
A análise por sobreposição de camadas aliada à observação da variação da incidência entre períodos indica que as maiores taxas mantiveram-se predominantemente em bairros com condição de vida alta ou média alta, adjacentes a outros bairros com piores condições de vida e com localização contígua às principais vias de acesso da cidade (Figuras 1, 2, 3a e 4a). Este resultado indica a heterogeneidade nas condições de vida e a proximidade às vias de acesso como fatores para a predição de tendências espaciais de ocorrência da dengue em Nova Iguaçu.
Discussão
Alguns autores como Mondini & Chiaravalloti Neto 17 e Donalísio 26 apontam a controvérsia na relação entre incidência de dengue e níveis sócio-econômicos. Neste trabalho, encontrou-se baixa correlação estatística entre dengue e condições de vida medida com o uso de indicador composto. Outros autores também investigaram a relação entre a doença e variáveis relacionadas às condições de vida da população, sem encontrar associações estatísticas que expliquem o risco de ocorrência da dengue 7,15,17,26.
Em oposição, Medronho 27 associa a doença às áreas favelizadas; Chiaravalloti Neto et al. 28 descrevem o maior risco de dengue em áreas de maior densidade demográfica e menor renda; Costa & Natal 13 supõem a relação positiva entre incidência e densidade populacional, coleta de lixo e esgotamento sanitário, mas não encontram relação estatisticamente significativa entre dengue e abastecimento de água; e Vasconcelos et al. 29 constatam o risco em áreas de maior renda.
O padrão de ocorrência encontrado neste estudo aponta para o maior risco de dengue em áreas heterogêneas quanto às condições de vida e localizadas nas proximidades das vias de acesso. Este achado pode auxiliar na busca de novos métodos para estudar as relações entre a exposição e o desfecho, já que a correlação estatística direta freqüentemente encontrou associações fracas entre níveis sócio-econômicos e incidência de dengue 13,17, não sendo sensível para captar desigualdades em espaços geográficos limitados.
Vários autores levantam a questão do espaço geográfico como área em transformação, cuja dinâmica influencia na ocorrência e manutenção de doenças, assim como nas diferenciações sociais existentes 7,11,30,31. Ao tomar o espaço como meio de construção e organização da sociedade humana e de produção da doença, fundem-se noções deterministas da medicina e da geografia, que podem apontar novos elos a serem rompidos na cadeia de transmissão 32. Essa perspectiva integradora pode ser um instrumental útil para se discutir o contexto social como uma unidade complexa onde fatores sócio-econômicos e estruturais urbanos, em conjunto, geram uma realidade única em cada local, favorecendo ou desfavorecendo a disseminação da dengue.
O maior risco de ocorrência observado em locais próximos às vias de acesso indica a importância da dinâmica das populações na formação de um grande conglomerado de risco para a dengue. Tal associação entre vias de acesso e ocorrência de dengue remete o processo de ocupação histórica das áreas mais próximas às vias de acesso abordadas por Figueiredo et al. 33 e Oliveira 34, tendo sido descrita por alguns autores como fator de risco para a proliferação de criadouros e para a ocorrência da dengue 27,35,36. Soma-se ainda, no caso da cidade de Nova Iguaçu, a presença de postos de gasolina, borracharias e ferros-velhos ao longo das principais vias de acesso, fato que vem sendo associado à presença de criadouros para o vetor Aedes aegypti 36.
Pela sobreposição entre os locais de maior ocorrência de dengue e os locais com alta infestação predial em Nova Iguaçu descritos por Lagrotta et al. 36 em 2008, admite-se a influência das desigualdades de condições de vida e da proximidade às vias de acesso não só sobre a ocorrência da doença, mas também sobre a proliferação de criadouros, corroborando a necessidade de incluir a análise das desigualdades locais no planejamento de ações de controle da dengue.
Considerando a importância de se discutir a associação entre desigualdades locais e dengue, a utilização de bairros como unidade mínima de estudo não permite a análise de heterogeneidades internas a eles, cenário que poderia ser diferente com o uso de setores censitários como unidades de análise. Entretanto, há limitações para localizar espacialmente dados populacionais de doença obtidos por intermédio do banco de dados do SINAN, que envolvem, sobretudo, falhas no preenchimento de campos, conforme descrito por Skaba et al. 18.
Outra limitação deste estudo diz respeito à utilização de casos sem confirmação laboratorial que estão registrados no SINAN, situação que pode ter gerado uma superestimação na incidência de dengue. Este critério, todavia, foi utilizado em todo o período de estudo, reduzindo a possibilidade de falsas tendências temporais e viés de classificação diferencial. Além disso, não se sabe em que medida a inclusão de falsos positivos no banco de dados pode ser compensada pela não-inclusão dos doentes assintomáticos ou oligossintomáticos.
Considerações finais
Apesar de não se evidenciar uma relação linear entre condições de vida e ocorrência da dengue apontada pela fraca correlação estatística observada, os padrões espaciais indicam a maior concentração em áreas próximas às vias de acesso e onde há desigualdades nas condições de vida, com contigüidade de bairros de distintos estratos sociais. Tais desigualdades também tiveram influência sobre a tendência temporal de ocorrência da dengue, mantendo-se certa estabilidade dos bairros com maior risco.
A observação das desigualdades sociais como marcadoras de risco para dengue, assim como a observação do maior risco em áreas contíguas às vias de acesso apontam a transformação do espaço e a dinâmica social como fatores fundamentais na produção de lugares para a manutenção da dengue, visto que influenciam a pressão demográfica sobre certas regiões fortemente ligadas aos processos histórico-sociais. Tais movimentos sociais no espaço geográfico se relacionam intimamente às condições de habitação, infra-estrutura urbana, perfil sócio-cultural da população, entre outros que determinam as condições de vida em um local.
Embora haja observação de relação espacial entre incidência de dengue, proximidade às vias de acesso e desigualdades nas condições de vida em Nova Iguaçu, são inúmeros os fatores relacionados à ocorrência da dengue e ao seu padrão espaço-temporal que devem ser considerados na análise da doença. Destacam-se, entre estes fatores, o papel do número de sorotipos circulantes, do grau de imunidade da população aos distintos sorotipos, da sensibilidade do sistema de captação e notificação de casos, da correção nos dados de endereço preenchidos na notificação, das condições ambientais, da distribuição do vetor e das pessoas.
A metodologia de espacialização e as associações locais da incidência utilizadas para esta análise revelaram-se de grande importância para a formulação de ações diferenciadas no âmbito local, ao indicar áreas de maior acometimento, relações de vizinhança e focos onde se observou a persistência da dengue em todos os períodos. Os procedimentos aplicados para a análise espacial das condições de vida retrataram as desigualdades no território estudado, que mantiveram relações coerentes com a ocorrência da dengue segundo bairros de Nova Iguaçu.
O indicador composto, que considerou infra-estrutura urbana e estrutura social, mostrou-se mais representativo das tendências de associação com a dengue que a análise de variáveis simples, apontando para a complexidade inerente ao conceito de condição de vida, que está intimamente relacionado ao processo de morbi-mortalidade em populações. Neste sentido, a utilização de categorias de análise e variáveis que juntas representem a organização social do espaço de ocorrência da dengue parecem essenciais para a definição de investimentos locais em infra-estrutura e de ações de combate ao vetor e controle da doença.
O combate à dengue parece tarefa bastante difícil, já que a sua manutenção como endemia envolve fatores sociais e de infra-estrutura urbana, produzidos historicamente e relacionados à dinâmica de movimentação diária da população e das riquezas. Contudo, mediante a análise contextualizada da doença e do modo de vida local, são reconhecidos mais claramente fatores associados à sua ocorrência, o que permite o direcionamento de esforços e o desenvolvimento de estratégias efetivas que gerem impacto positivo no controle da doença.
Colaboradores
J. P. Machado participou da revisão bibliográfica, coleta, processamento e análise dos dados, elaboração do artigo e sua redação final. R. Souza-Santos e R. M. Oliveira participaram na definição do desenho metodológico, análise dos dados, discussão, revisão dos resultados e revisão da redação final.
Agradecimentos
À pós-graduação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ), onde as idéias se tornaram saber científico durante o curso de mestrado. Ao grupo de Pesquisa Determinação e Controle de Endemias, do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (DENSP/ENSP/FIOCRUZ), imprescindível para que alguns nós se desfizessem. Ao Mario V. Vettore, que contribuiu na formatação final deste artigo.
Referências
1. Gubler DJ. The changing epidemiology of yellow fever and dengue, 1900 to 2003: full circle? Comp Immunol Microbiol Infect Dis 2004; 27:319-30.
2. Tauil PL. Perspectivas de controle de doenças transmitidas por vetores no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2006; 39:275-7.
3. Farrar J, Focks D, Gubler D, Barrera R, Guzman MG, Simmons C, et al. Towards a global dengue research agenda. Trop Med Int Health 2007; 12:695-9.
4. Halstead SB. Dengue. Lancet 2007; 370:1644-52.
5. Schatzmayr HG. Viroses emergentes e reemergentes. Cad Saúde Pública 2001; 17 Suppl:209-13.
6. Teixeira MG, Barreto ML, Costa MCN, Ferreira LDA, Vasconcelos PFC, Cairncross S. Dynamics of dengue virus circulation: a silent epidemic in a complex urban area. Trop Med Int Health 2002; 7:757-62.
7. Paim JS. Abordagens teórico-conceituais em estudos de condições de vida e saúde: notas para reflexão e ação. In: Barata RB, organizador. Condições de vida e situação de saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 1997. p. 7-30.
8. Teixeira JC, Pungirum MEMC. Análise da associação entre saneamento e saúde nos países da América Latina e do Caribe, empregando dados secundários do banco de dados da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS. Rev Bras Epidemiol 2005; 8:365-76.
9. Gerolomo M, Penna MLF. Cólera e condições de vida da população. Rev Saúde Pública 2000; 34: 342-7.
10. Santos SM, Noronha CP. Padrões espaciais de mortalidade e diferenciais sócio-econômicos na cidade do Rio de Janeiro. Cad Saúde Pública 2001; 17:1099-110.
11. Chiesa AM, Westphal MF, Kashiwagi NM. Geoprocessamento e a promoção da saúde: desigualdades sociais e ambientais em São Paulo. Rev Saúde Pública 2002; 36:559-67.
12. Ishitani LH, Franco GC, Perpétuo IHO, França E. Desigualdade social e mortalidade precoce por doenças cardiovasculares no Brasil. Rev Saúde Pública 2006; 40:684-91.
13. Costa AIP, Natal D. Distribuição espacial da dengue e determinantes socioeconômicos em localidade urbana no Sudeste do Brasil. Rev Saúde Pública 1998; 32:232-6.
14. Marzochi KBF. Dengue endêmico: o desafio das estratégias de vigilância. Rev Soc Bras Med Trop 2004; 37:413-5.
15. Barcellos C, Pustai AK, Weber MA, Brito MRV. Identificação de locais com potencial de transmissão de dengue em Porto Alegre através de técnicas de geoprocessamento. Rev Soc Bras Med Trop 2005; 38:246-50.
16. Ferreira AC, Chiaravalloti Neto F. Infestação de área urbana por Aedes aegypti e relação com níveis socioeconômicos. Rev Saúde Pública 2007; 41: 915-22.
17. Mondini A, Chiaravalloti Neto F. Variáveis socioeconômicas e a transmissão de dengue. Rev Saúde Pública 2007; 41:923-30.
18. Skaba DA, Carvalho MS, Barcellos C, Martins PC, Terron SL. Geoprocessamento dos dados da saúde: o tratamento dos endereços. Cad Saúde Pública 2004; 20:1753-6.
19. Barcellos CC, Bastos FI. Geoprocessamento, ambiente e saúde: uma união possível? Cad Saúde Pública 1996; 12:389-97.
20. Schatzmayr HG, Nogueira RMR, Travassos-da-Rosa APA. An outbreak of dengue virus at Rio de Janeiro. Mem Inst Oswaldo Cruz 1986; 81:245-6.
21. Nogueira RMR, Miagostovich MP, Filippis AMB, Pereira MAS, Schatzmayr HG. Dengue virus type 3 in Rio de Janeiro, Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2001; 96:925-6.
22. Lourenço-de-Oliveira R, Honório NA, Castro MG, Schatzmayr HG, Miagostovich MP, Alves JCR, et al. Dengue virus type 3 isolation from Aedes aegypti in the municipality of Nova Iguaçu, state of Rio de Janeiro. Mem Inst Oswaldo Cruz 2002; 97:799-800.
23. Machado JP. Dengue e condições de vida no Município de Nova Iguaçu: uma abordagem espacial [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007.
24. Câmara G, Monteiro AM, Fucks SD, Carvalho MS. Análise espacial e geoprocessamento. In: Druck S, Câmara G, Carvalho MS, Monteiro AMV, organizadores. Análise espacial de dados geográficos. Brasília: EMBRAPA Cerrados; 2002. http://www.dpi.inpe.br/gilberto/livro/analise/.
25. Ministério da Saúde. Introdução à estatística espacial para a saúde pública. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. (Série B. Textos Básicos de Saúde. Série Capacitação e Atualização em Geoprocessamento em Saúde, 3).
26. Donalisio MR. O dengue no espaço habitado. São Paulo: Editora Hucitec/FUNCRAF; 1999.
27. Medronho RA. Geoprocessamento e saúde: uma nova abordagem do espaço no processo saúde doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1995.
28. Chiaravalloti Neto FC, Moraes MS, Fernandes MA. Avaliação dos resultados de atividades de incentivo à participação da comunidade no controle da dengue em um bairro periférico do município de São José do Rio Preto, São Paulo, e da relação entre conhecimentos e práticas desta população. Cad Saúde Pública 1998; 14 Suppl 2:101-9.
29. Vasconcelos PF, Lima JW, Raposo ML, Rodrigues SG, Rosa JFST, Amorim SMC, et al. Inquérito sorológico na Ilha de São Luiz durante uma epidemia de dengue no Maranhão. Rev Soc Bras Med Trop 1999; 32:171-9.
30. Sabroza PC, Toledo LM, Osanai CH. A organização do espaço e os processos endêmico-epidêmicos. In: Leal MC, Sabroza PC, Rodriguez RH, Buss PM, organizadores. Saúde, ambiente e desenvolvimento: processos e conseqüências sobre as condições de vida. v. II. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO; 1992. p. 57-77.
31. Monken M, Barcellos C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad Saúde Pública 2005; 21:898-906.
32. Bousquat A, Cohn A. A dimensão espacial nos estudos sobre saúde: uma trajetória histórica. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2004; 11:549-68.
33. Figueiredo LTM, Cavalcante SMB, Simões MC. Dengue serologic survey of school children in Rio de Janeiro, Brazil, 1986 and 1987. Bull Pan Am Health Organ 1990; 24:217-25.
34. Oliveira FJGO. Reestruturação produtiva e regionalização da economia no território fluminense [Tese de Doutorado] São Paulo: Universidade de São Paulo; 2003.
35. Tauil PL. Urbanização e ecologia do dengue. Cad Saúde Pública 2001; 17 Suppl:99-102.
36. Lagrotta MTF, Silva WC, Souza-Santos R. Identification of key areas for Aedes aegypti control through geoprocessing in Nova Iguaçu, Rio de Janeiro State, Brazil. Cad Saúde Pública 2008; 24:70-80.
Correspondência:
J. P. Machado
Gerência de Produção e Análise de Informações
Agência Nacional de Saúde Suplementar
Av. Augusto Severo 84, 10º andar
Rio de Janeiro, RJ 20021-040, Brasil
juliana.pm@gmail.com, juliana.machado@ans.gov.br
Recebido em 11/Jun/2008
Versão final reapresentada em 19/Nov/2008
Aprovado em 29/Dez/2008