ARTIGO ARTICLE
Condições particulares de produção e reprodução da dengue em nível local: estudo de Itaipu, Região Oceânica de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
Specific dengue transmission conditions at the local level: a study in Itaipu, Niterói, Rio de Janeiro State, Brazil
Alexandre San Pedro; Reinaldo Souza-Santos; Paulo Chagastelles Sabroza; Rosely Magalhães de Oliveira
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz,Rio de Janeiro, Brasil.
RESUMO
Analisar as condições particulares de produção da dengue em localidades de Itaipu, cidade de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, com enfoque para os determinantes e condicionantes sócio-ambientais. Foram escolhidas quatro localidades com incidências semelhantes de dengue e padrões urbanísticos/sócio-econômicos diferentes. As características sócio-espaciais de cada localidade foram obtidas por meio de entrevistas com informantes-chave e observação sistemática. Identificou-se a existência de dois fatores distintos que podem condicionar o risco de transmissão da doença. O primeiro se refere à limitação da oferta do serviço de abastecimento de água e escassez de recursos financeiros, associado a uma população de menor renda. O segundo associa-se ao grupo de maior poder aquisitivo e relaciona-se ao risco decorrente da abundância de recursos, permitindo práticas de estocagem em reservatórios de maior capacidade de acúmulo de água. A implantação de uma infra-estrutura habitacional gerada pelo capital especulativo foi determinante para a criação de segregação sócio-espacial, resultando em formas diferenciadas de receptividade e vulnerabilidade à dengue. Nesse sentido, a instalação incompleta e desigual de uma infra-estrutura habitacional é determinante para geração diferenciada de criadouros do vetor e conseqüente difusão da doença.
Dengue; Estudo Local; Condições de Vida
ABSTRACT
This study analyzes the specific conditions involved in dengue transmission in various areas in Itaipu, a coastal neighborhood in the city of Niterói, Rio de Janeiro State, Brazil, with a focus on socio-environmental determinants and conditioning factors. Four areas were selected with similar dengue incidence rates but different urban planning and socioeconomic patterns. The socio-spatial characteristics of each area were obtained through interviews with key informants and systematic observation. Two distinct factors were identified that may potentially condition the risk of dengue transmission. The first related to the limited water supply and scarce financial resources in a lower-income population. The second was associated with a group having better socioeconomic status, which allowed them to store water in larger tanks. The implementation of a housing infrastructure generated by real estate speculation was a determining factor for the creation of socio-spatial segregation, resulting in different forms of receptiveness and vulnerability to dengue. In this sense, the incomplete and unequal installation of housing infrastructure is a determining factor for the differentiated generation of vector breeding sites and thus for dengue transmission.
Dengue; Locality Study; Living Conditions
Introdução
A dengue é considerada uma das doenças de maior incidência nas regiões intertropicais ao redor do planeta, constituindo um importante problema de saúde pública. Além dos fatores biológicos envolvidos em seu ciclo de transmissão, a reprodução da doença está intimamente relacionada a determinantes de ordem sócio-econômica, podendo ainda, ser considerada como um subproduto da urbanização acelerada e sem planejamento, característica dos centros urbanos de países em desenvolvimento 1,2,3.
Nesses centros urbanos, exercem grande influência na produção de ambientes favoráveis à proliferação do vetor e disseminação do vírus, o modelo de reprodução social, pautado no estimulante consumo de produtos industrializados descartáveis 4. Esse fator aliado a não disponibilidade de serviços de saneamento ambiental em quantidade e qualidade adequadas (quanto ao acesso e freqüência no abastecimento de água e coleta de lixo) tornam-se propícios à dinâmica de transmissão da doença. A precariedade na oferta desses serviços, principalmente quanto ao abastecimento de água, pode levar à adoção de práticas de estocagem em recipientes, que por sua vez podem figurar como potenciais locais de reprodução do vetor 5,6,7,8. Somado a isso, o grande fluxo populacional entre localidades, bem como a pouca eficácia dos programas governamentais de controle da doença, contribuem para o agravamento da situação 4,9,10.
O crescimento acelerado dos centros urbanos ocorre por meio de formas variadas de organização do espaço, que por sua vez são instáveis em relação ao tempo e impossíveis de serem generalizadas. No entendimento dos processos relacionados à reprodução da dengue a localidade deve ter papel de destaque, pois, é neste nível de análise que o problema de saúde se expressa. Portanto, é necessário que a metodologia de análise utilizada assuma a localidade como um processo histórico dinâmico de transformação, no qual estão envolvidos os projetos individuais e sociais que acabam por determinar sua singularidade própria, fato que certamente contribuiria para o controle mais eficaz da doença 11.
Nesse sentido, a dengue representa um grave problema de Saúde Pública, no qual exercem influência as transformações históricas do espaço urbano. Considerando os aspectos anteriormente mencionados, o objetivo do presente trabalho consiste em analisar os determinantes particulares de produção e reprodução da dengue em Itaipu, Região Oceânica do Município de Niterói, buscando avaliar a influência dos determinantes sócio-ambientais e comportamentais, levando em consideração a singularidade e historicidade do lugar no entendimento da complexa relação de reprodução da doença. Tal abordagem como proposta de uma vigilância de base territorial, poderá futuramente constituir um importante instrumento para melhoria de políticas de controle da doença adaptadas à realidade local.
Este estudo assume como pressuposto que a dengue é uma doença extremamente relacionada à dinâmica de reprodução social de determinados grupos populacionais, envolvendo questões referentes à qualidade das habitações e disponibilidade de serviços de saneamento em quantidade e qualidades adequadas, tendo sua expressão no nível local.
Materiais e métodos
Desenho do estudo
Este trabalho se caracteriza por ser um estudo de situação de saúde voltado para o entendimento das condições particulares de produção e reprodução da dengue. Partindo de uma descrição quantitativa da ocorrência da dengue, busca-se analisar qualitativamente os determinantes sócio-ambientais e comportamentais envolvidos na produção da doença segundo uma construção compartilhada do conhecimento 5, abrangendo, portanto, as diferentes perspectivas do problema. Nesse sentido foram trabalhadas informações produzidas por atores sociais de diversas áreas da sociedade, assim como no campo científico, serviços de saúde, lideranças comunitárias e moradores locais que possuem relação intensa com o lugar e que apresentam um bom conhecimento sobre os processos de reprodução social da região e das localidades estudadas. O presente trabalho foi analisado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, sendo considerado aprovado pelo parecer nº. 38/07.
Determinação da área de estudo
O Município de Niterói está localizado na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, ocupando uma área de 131,5km² e apresentando uma população de cerca de 500 mil habitantes. Encontra-se ligado à cidade do Rio de Janeiro pela Ponte Rio-Niterói e por um serviço de barcas e lanchas rápidas. O município faz divisa com os visinhos São Gonçalo (ao Norte), Maricá (ao Leste), sendo banhado ao Sul pelo Oceano Atlântico e a Oeste pela Baía de Guanabara. A cidade de Niterói é composta por 48 bairros, localizados em cinco regiões de planejamento: Praias da Baía, Norte, Pendotiba, Oceânica e Leste.
A partir da análise prévia da série histórica dos casos notificados de dengue para o Município de Niterói (1998-2006), originados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), observou-se que no seu interior a região de Itaipu apresentou as maiores incidências, assim como alto número de casos, justificando sua escolha para realização deste estudo. A delimitação geográfica da região de Itaipu adotada pela Secretaria Municipal de Saúde e que serve de base para o SINAN, corresponde à nova divisão de bairros criada pela Lei Municipal nº. 1.968 12, de 4 de abril de 2002, que instituiu o Plano Urbanístico da Região Oceânica de Niterói. Segundo essa lei foram criados os bairros de Maravista, Soter, Serra Grande e Santo Antônio dentro da antiga região de Itaipu.
Critérios para seleção das localidades de estudoComo critério de seleção das localidades de estudo, determinou-se que as mesmas deveriam apresentar semelhança quanto à incidência de dengue, porém, padrões sócio-econômicos diferentes. Neste trabalho, assumiu-se como localidade a área composta por um ou mais setores censitários que compõem a região de Itaipu.
De forma a identificar localidades com semelhança na incidência de dengue foram utilizadas informações sobre os casos da doença, obtidas a partir do banco de dados de casos notificados no SINAN, referente aos períodos de 2005 a 2006 para a região de Itaipu. Inicialmente, os casos de dengue foram plotados por meio de seus endereços em um mapa de arruamentos referente à nova divisão de bairros da região de Itaipu. Para tanto, foi utilizado como instrumento de localização aproximada dos endereços a ferramenta de busca Telelista (http://www.telelista.net/buscalocal.aspx), bem como a ajuda de profissionais da Policlínica de Itaipu no detalhamento dos endereços com preenchimento insuficiente. Para a visualização das localidades com semelhança em termos de incidência de dengue, os casos plotados em mapa de arruamento foram agrupados por setor censitário segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE). Em seguida, utilizou-se o estimador de intensidade kernel, o qual permite estimar a quantidade de eventos por unidade de área em cada célula de uma grade regular que recobre a região de estudo. Tal técnica promove uma suavização estatística, o que possibilita filtrar a variabilidade de um conjunto de dados, retendo as características essenciais dos locais. O grau de suavização pode ser definido mediante a escolha da largura de banda a ser empregada, indicando a área a ser considerada no cálculo 13,14. Nesta análise, para o cálculo do kernel da incidência de dengue foi definida uma grade sobre a região com 150 colunas, a função algorítmica utilizada foi a quártico com uma largura de banda de 700 metros (Figura 1). Toda a análise espacial foi realizada no soft-ware de geoprocessamento TerraView (versão 3.14 - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; http://www.dpi.inpe.br/terraview).
Em um segundo momento, de forma a contemplar o segundo critério para seleção das localidades de estudo (diferentes padrões sócio-econômicos) foi estabelecido um indicador composto de condições de vida para os setores censitários, de forma que os dados sócio-econômicos de renda, escolaridade, abastecimento de água e densidade populacional provenientes do Censo Demográfico 2000 do IBGE (http://www.ibge.gov.br) fossem melhor sintetizados.
As variáveis selecionadas para construção do indicador composto foram enquadradas em duas categorias referentes à inserção na dinâmica social da área em estudo. A primeira categoria expressa a estrutura social da população com variáveis referentes à educação, renda e aglomeração urbana. A segunda expressa as características das instalações urbanas locais com variáveis relacionadas à distribuição de água 15. Ao final desse procedimento foi construído um mapa temático utilizando-se o programa de geoprocessamento TerraView (versão 3.14), contendo a classificação dos setores censitários como de alta, média, média baixa e baixa condições de vida (Figura 2). Para a classificação dos setores censitários foi adotado como ponto de corte a estratificação dos valores do Indicador Composto de Condições de Vida em quartil.
Por fim, a escolha das localidades de estudo foi baseada na comparação tanto do mapa temático de condições de vida (diferenças sócio-econômicas) quanto do mapa de kernel da incidência de dengue (incidências semelhantes) (Figuras 1 e 2). Considerando os critérios anteriormente estabelecidos para seleção dessas localidades (padrões sócio-econômicos diferentes, porém, semelhança quanto à incidência da doença) foram escolhidas quatro localidades para investigação das características sócio-ambientais e comportamentais dos grupos sociais relacionadas à reprodução da doença, sendo estas: Soter, Maravista, Engenho do Mato e Campo Belo.
Descrição das características sócio-ambientais e comportamentais que possibilitam a produção e reprodução da doença nas localidades de estudoCom o objetivo de levantar informações sobre os processos mais gerais relacionados à produção/reprodução da doença, assim como a obter um melhor entendimento da atual configuração sócio-espacial da área estudada, foram pesquisadas informações sobre o processo de ocupação espacial de Itaipu.
Para levantar informações sobre as condições particulares de produção e reprodução da dengue em cada localidade foram realizadas entrevistas nas quais se utilizou um roteiro guia, abordando temas referentes à ocupação e uso do solo; infra-estrutura urbana e habitacional de cada localidade; possíveis criadouros; assim como características comportamentais relacionadas ao aumento ou diminuição do risco de transmissão da doença.
Para realização das entrevistas foram escolhidos informantes que pela posição, ação ou responsabilidade possuíssem um bom conhecimento do problema 16. As entrevistas foram realizadas em dois grupos distintos de informantes, no intuito de buscar informações que abrangessem as diversas perspectivas do problema. O primeiro grupo foi composto por um conjunto de nove informantes pertencentes ao Programa Médico de Família, Policlínica de Itaipu, Centro de Controle de Zoonoses e associação de moradores. O segundo foi composto por 33 informantes dos domicílios classificados segundo tipologia de habitação em alto, médio, médio baixo e baixo padrão habitacional. A classificação das habitações selecionadas para entrevistas foi realizada por meio de observação em campo dos diferentes tipos de moradias existentes nas localidades. Durante as entrevistas procurou-se sempre que possível entrevistar dois informantes representativos de cada tipo de habitação.
Resultados
A síntese dos dados sócio-econômicos provenientes do IBGE em um Indicador Composto de Condições de Vida possibilitou a observação de que os setores censitários com melhores condições de vida estão localizados próximos à praia e ao redor da lagoa de Itaipu. Por outro lado, os setores com piores condições de vida encontram-se mais no interior da região, nas áreas de menor valor imobiliário (Figura 2). As localidades situadas mais no interior da região (Maravista, Soter e Engenho do Mato) apresentam maior heterogeneidade sócio-espacial, caracterizada pela coexistência de habitações classificadas em observação sistemática como de alto e baixo padrão de infra-estrutura habitacional.
As entrevistas realizadas com o primeiro grupo de informantes com o objetivo de levantar informações sobre as características sócio-ambientais relacionadas à produção e reprodução da dengue, apontam algumas características comuns e outras próprias de cada lugar (Tabela 1). Em relação às características comuns, foi apontado pelos entrevistados, em especial pela Coordenação de Controle de Zoonoses, o elevado número de pendência, não somente nas localidades estudadas, mas na Região Oceânica como um todo. Tal pendência foi atribuída principalmente ao grande número de casas de veraneio fechadas no momento da visita ou ainda pela recusa da população.
Quanto às características de ocupação e uso do solo, as quatro localidades apresentaram terrenos baldios com acúmulo de lixo domiciliar, em especial a presença de recipientes de pequeno volume como copos plásticos, potes e garrafas. A existência de casas de veraneio com piscinas não tratadas, assim como a precariedade no sistema de drenagem das águas pluviais também foram características comuns a essas localidades mencionadas pelos entrevistados e confirmadas por observação sistemática. Quando comparada às outras três localidades estudadas, Soter foi a que apresentou um crescimento no número de galpões de material de construção e ferros-velhos, constituindo uma grande preocupação da Associação de Moradores local. No Engenho do Mato e Campo Belo foi relato um processo de desmatamento da encosta do Parque Estadual da Serra da Tiririca.
Quanto à infra-estrutura urbana foi relatado nas quatro localidades que em períodos de chuva, devido à precariedade no sistema de drenagem urbana, os terrenos baldios com acúmulo de lixo domiciliar costumam ficar alagados. Nas localidades de Maravista, Soter e em áreas mais elevadas do Engenho do Mato os moradores apontaram para precariedade no serviço de distribuição de água, principalmente em épocas de verão. Em Campo Belo e nas habitações situadas em áreas mais baixas do Engenho do Mato, o abastecimento de água foi classificado como regular não ocorrendo falta d'água por mais de um dia consecutivo.
Quanto às características dos grupos sociais, as entrevistas realizadas com os informantes domiciliares segundo padrões habitacionais, permitiram identificar que nas quatro localidades estudadas, aqueles moradores classificados em moradias de alto padrão de infra-estrutura habitacional possuem conexão com a rede geral de distribuição de água. Em propriedades onde há disponibilidade de poço, os moradores utilizam sua água apenas para lavar quintais, não sendo observada relação de dependência para resolução de problemas de infra-estrutura. Nenhuma forma de estocagem de água em recipientes como tonéis, galões ou baldes foi relatada, ocorrendo um elevado acúmulo de água devido à disponibilidade de cisterna e caixas d'água de mil litros em número de pelo menos três por habitação.
Nas quatro localidades, as informações das moradias de médio padrão habitacional indicam que os moradores possuem conexão com a rede geral de distribuição de água. Nas localidades de Maravista e Soter esse grupo de informantes utiliza a água de poço como forma alternativa de abastecimento em períodos de precariedade no fornecimento. O mesmo não foi relatado nas localidades de Engenho do Mato e Campo Belo, onde o fornecimento de água foi classificado como regular. Em todas as localidades, nenhuma forma de estocagem de água em recipientes como tonéis, galões ou baldes foi relatada, ocorrendo um elevado acúmulo de água devido à disponibilidade caixas d'água de mil litros em número de pelo menos três por habitação.
As moradias classificadas como de médio baixo padrão de infra-estrutura habitacional encontram-se presentes apenas nas localidades de Maravista, Soter e Engenho do Mato, sendo que todos os entrevistados relataram possuir conexão com a rede geral de distribuição de água. Em Maravista e Soter há uma relação de dependência transitória entre os moradores que possuem alguma forma alternativa de abastecimento (poço na propriedade) e aqueles que não possuem. Nesses casos a água do poço é armazenada diretamente em caixas d'água, tendo sido relatadas práticas de estocagem em tonéis e galões por alguns dos moradores mais novos. Apesar do serviço de abastecimento de água na localidade Engenho do Mato ter sido classificado com regular, alguns moradores realizam práticas de estocagem em tonéis devido ao receio de que em algum momento o fornecimento seja interrompido.
Quanto às moradias classificadas como de baixo padrão de infra-estrutura habitacional, pode ser observada a presença destas nas localidades de Maravista e Soter e em áreas mais elevadas de Engenho do Mato. Nesse padrão de habitação, não há conexão com a rede geral de distribuição de água, sendo a água de poço a principal forma de abastecimento. Com base no relato dos informantes foi possível observar uma relação de dependência obrigatória e permanente entre os moradores que possuem poço em sua propriedade e aqueles que não possuem nenhuma forma de abastecimento de água. De forma geral, aqueles que possuem poço ou eventualmente conexão com a rede geral em sua propriedade, acabam distribuindo água aos que estão em seu entorno, ocorrendo práticas de estocagem de forma permanente em galões, baldes e tonéis.
Discussão
Estudos realizados em diferentes países das Américas relacionando ocorrência de dengue e condições sócio-ambientais têm buscado identificar fatores envolvidos na produção/reprodução da doença, principalmente quanto a questões referentes ao acesso/freqüência no abastecimento de água, coleta de lixo urbano e disponibilidade de potenciais criadouros do mosquito transmissor 6,7,17,18.
Tais estudos ao se preocuparem em analisar as variáveis particulares relacionadas à reprodução da doença deixam considerar o problema em seu nível de maior complexidade. Nesse contexto, a recuperação dos processos históricos responsáveis pela atual configuração sócio-espacial das regiões ou localidades estudadas constitui importante ferramenta para uma melhor compreensão dos determinantes particulares envolvidos na disseminação, não só da dengue como de outras doenças.
Ao se recuperar a historicidade do processo de ocupação e estruturação interna da Região de Itaipu, pôde-se observar que nesta região a implantação de infra-estrutura habitacional foi gerada quase que exclusivamente pelo capital especulativo privado, fato este determinante para criação de uma segregação espacial, que por sua vez é reflexo da segregação social 19. A geração dessa segregação socioespacial no interior das localidades estudadas resulta em formas diferenciadas de receptividade e vulnerabilidade à dengue, vivenciadas pelos diferentes grupos populacionais.
A construção de uma rede de informantes-chave possibilitou a identificação de características sócio-ambientais particulares a cada localidade estudada. A existência de uma heterogeneidade sócio-espacial principalmente nas localidades de Maravista e Soter relatada pelos entrevistados, e constatada posteriormente por observação sistemática de campo, pode ser responsável pelo compartilhamento do risco de infecção pelo vírus. Esse compartilhamento do risco poderia ser atribuído à proximidade espacial dos diferentes tipos de habitações, práticas diversificadas de estocagem de água, raio de dispersão do vetor, além da possível circulação de indivíduos infectados.
O grande número de piscinas não tratadas e ainda a presença de terrenos baldios em todas as localidades estudadas, somado à prática de jogar lixo nestes terrenos, foram fatores mencionados por todos os entrevistados como sendo o maior problema das localidades estudadas. Tal fato, aliado à precariedade dos serviços de drenagem urbana, podem propiciar a produção de potenciais locais de proliferação do vetor em períodos chuvosos.
Esse achado deve ser analisado com cautela, pois, segundo estudo sobre recipientes "chaves" no controle do Aedes aegypti 20, os criadouros com volume situado na faixa de 50 a 100mL e aqueles com volume acima de 5.000L mostraram-se pouco produtivos. Os primeiros em virtude de sua instabilidade no meio ambiente, enquanto os segundos devido à grande profundidade, dificultando o acesso das larvas aos seus alimentos. Ainda segundo o autor, embora os recipientes de pequeno volume apresentassem médias de produção de espécimes imaturos e potenciais de emergência de vetores adultos muito baixas, quando em conjunto foram responsáveis por 15% da população adulta nos quarteirões monitorados no estudo. Concluiu-se, portanto, que mediante a eliminação dos macrocriadouros, os pequenos reservatórios assumam uma maior importância, mantendo a presença do vetor em algumas áreas.
Os resultados obtidos em entrevistas com moradores de Maravista e Soter, assim como aqueles residentes em ruas situadas em áreas mais elevadas do Engenho do Mato, sugerem que a oferta precária do serviço de distribuição de água estimula a adoção de práticas de estocagem, que por sua vez podem favorecer a criação de condições propícias à reprodução do vetor. Essa observação corrobora com resultados encontrados por outros autores 5,6,7,21,22, ratificando a importância da inclusão desse indicador em estudos locais que incorporem em sua análise correlações entre incidência de dengue e cobertura de rede de abastecimento de água 1,3,18,23.
Cabe mencionar que o risco de transmissão da dengue está associado à relação desigual entre grupos de maior poder econômico e aqueles de menor poder em termos de apropriação de recursos de infra-estrutura habitacional e qualidade do serviço de abastecimento de água. Nesse sentido, ao se buscar uma associação que leve em consideração indicadores que não refletem essa desigualdade de relações, a exemplo do porcentual de domicílios conectados à rede geral de distribuição de água, há uma maior tendência em não se encontrar correlação entre dengue e condições de vida. Ao mesmo tempo, uma tendência de correlação inversa pode ser conseqüência, entre outros fatores, da possibilidade apresentada por grupos sociais de maior poder econômico em acumular água em excesso e de forma mais permanente em localidades que apresentam precariedade no abastecimento. Conseqüentemente, uma infra-estrutura habitacional instalada de forma incompleta e desigual pode ser determinante para geração diferenciada de criadouros do vetor, apontando para necessidade de se desenvolver estudos que busquem entender de forma mais aprofundada a produção da dengue e as condições reais de abastecimento de água.
Por fim, pôde ser observado nas localidades estudadas a existência de dois fatores distintos que podem condicionar o risco de transmissão da doença. O primeiro refere-se a um risco relacionado à limitação da oferta do serviço de abastecimento de água, ao lado de uma escassez de recursos financeiros das famílias, associado a uma população de menor renda. Tal situação acaba por obrigar esses indivíduos a adotar formas de estocagem de água em recipientes (tonéis, latões e caixas d'água de pequeno volume) que podem figurar como potenciais locais de reprodução do vetor. O segundo fator se encontra associado ao grupo de maior poder aquisitivo e refere-se a um risco relacionado à abundância de recursos que permite práticas de estocagem em reservatórios de maior capacidade de acúmulo de água. Nesse contexto, o risco de ocorrência de criadouros não se limita a grupos de menor poder aquisitivo, mas também a grupos de maior disponibilidade financeira devido à presença de reservatórios permanentes de maior capacidade volumétrica 24,25.
Nesse sentido, é importante destacar aqui a importância de investigações mais aprofundadas sobre as práticas populacionais relacionadas à reprodução do vetor, de forma que entendamos melhor seus motivos e, conseqüentemente, os fatores envolvidos na dinâmica de transmissão da doença. Nesse contexto, o desenvolvimento de estudos que resgatem os processos históricos e os determinantes sócio-ambientais específicos de cada localidade se mostra essencial para o melhor entendimento da complexa cadeia de reprodução da doença, proporcionando subsídios para o gerenciamento de políticas e estratégias de controle mais eficientes em nível local.
Colaboradores
A. San Pedro participou de todas as etapas do estudo desenvolvendo revisão bibliográfica, coleta, processamento e análise dos dados, elaboração do artigo e redação final. R. M. Oliveira e P. C. Sabroza foram responsáveis pela orientação geral do estudo, participando na definição do desenho metodológico, análise dos dados, discussão e revisão final da redação do artigo. R. Souza-Santos participou da análise espacial dos dados, além da revisão final da redação do artigo.
Agradecimentos
Aos profissionais de saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói, em especial, à Policlínica de Itaipu, Centro de Controle de Zoonoses, Programa Saúde da Família. Aos integrantes do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz que de forma direta ou indireta contribuíram para realização deste trabalho.
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Correspondência:
A. San Pedro
Departamento de Endemias Samuel Pessoa
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Fundação Oswaldo Cruz
Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ
21041-210, Brasil.
alexsan@ensp.fiocruz.br
Recebido em 03/Out/2008
Versão final reapresentada em 05/Mai/2009
Aprovado em 09/Jun/2009