ARTIGO ARTICLE

 

Compulsão alimentar e fatores associados em adolescentes de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil

 

Binge eating and associated factors among teenagers in Cuiabá, Mato Grosso State, Brazil

 

 

Loreni Augusta PivettaI, II; Regina M. V. Gonçalves-SilvaIII, IV, V

ICentro Estadual de Referência de Média e Alta Complexidade, Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil
IIFaculdade de Nutrição, Universidade de Cuiabá, Cuiabá, Brasil
IIIFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil
IVPrograma de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil
VPrograma de Pós-graduação em Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O episódio de compulsão alimentar é caracterizado pela ingestão de grande quantidade de alimentos em tempo delimitado acompanhada de perda de controle sobre o que/quanto se come. O estudo objetivou estimar a prevalência e os fatores associados aos episódios de compulsão alimentar. Estudo transversal com 1.209 adolescentes de 14 a 19 anos. Para o diagnóstico dos episódios de compulsão alimentar utilizou-se o Questionário sobre Padrões de Alimentação e Peso - Revisado (QEWP-R). Foi realizada análise através da regressão de Poisson com abordagem hierárquica. A prevalência de episódios de compulsão alimentar foi 24,6% (IC95%: 22,3-27,2) e os fatores que permaneceram associados foram: sexo feminino (RP = 1,93; IC95%: 1,47-2,53), idade de 15 a 18 anos (RP = 1,54; IC95%: 1,01-2,37) e 19 anos (RP = 2,60; IC95%: 1,15-5,86), uso de bebidas alcoólicas mais de três vezes por mês (RP = 1,54; IC95%: 1,03-2,33) e flutuações de peso (RP = 1,76; IC95%: 1,33-2,31). Conclui-se que a prevalência de episódios de compulsão alimentar foi alta e associada ao sexo feminino, idade, uso de bebidas alcoólicas e flutuação de peso.

Comportamento Alimentar; Consumo de Alimentos; Adolescente


ABSTRACT

Binge eating means ingesting a large amount of food during a certain period of time, followed by a sensation of lack of control over what and how much has been eaten. The study aimed to estimate the prevalence of binge eating episodes and associated factors in teenagers. The cross-sectional study included 1,209 teenagers (14 to 19 years old). Diagnosis of binge eating was based on the revised Questionnaire on Eating and Weight Patterns. The analysis used Poisson regression with a hierarchical approach. Prevalence of binge eating episodes was 24.6% (95%CI: 22.3-27.2), and factors that remained associated were: female gender (HR = 1.93; 95%CI: 1.47-2.53); age 15 to 18 (HR = 1.54; 95%CI: 1.01-2.37) and age 19 (HR = 2.60; 95%CI: 1.15-5.86); alcohol consumption more than 3 times a month (HR = 1.54; 95%CI: 1.03-2.33); and current weight oscillation (HR = 1.76; 95%CI: 1.33-2.31). In conclusion, prevalence of binge eating episodes was high and associated with female gender, age, alcohol consumption, and weight oscillation.

Feeding Behavior; Food Consumption; Adolescent


 

 

Introdução

O episódio de compulsão alimentar é caracterizado pela ingestão de uma grande quantidade de alimentos em um período de tempo delimitado (até duas horas), acompanhada da sensação de perda de controle sobre o que ou o quanto se come 1,2.

Quando os episódios de compulsão alimentar ocorrerem em pelo menos dois dias por semana, nos últimos seis meses, associados a algumas características de perda de controle e não acompanhados de comportamentos compensatórios inadequados para evitar ganho de peso 1,3, é então caracterizado o diagnóstico de transtorno da compulsão alimentar periódica 1,2. Neste transtorno os episódios de compulsão alimentar são acompanhados por sentimentos de angústia subjetiva, incluindo vergonha, nojo e/ou culpa 2,4,5.

O transtorno da compulsão alimentar periódica ou binge eating disorder é um fenômeno clínico, descrito pela primeira vez, em indivíduos obesos, por Stunkard 6. Atualmente sabe-se que este distúrbio não se encontra limitado a este grupo, podendo ocorrer em pessoas com peso normal 7. Das pessoas que declaram apresentar episódios de compulsão alimentar, aproximadamente 20% possuem transtorno da compulsão alimentar periódica 4.

Em indivíduos obesos, comportamentos de compulsão alimentar são mais freqüentes e parecem ser em parte, responsáveis pelos fracassos observados no tratamento da obesidade 8. Os obesos, geralmente, apresentam sofrimento psicológico devido à depreciação de sua imagem física e preocupação excessiva com o peso, e, esta condição emocional, muitas vezes leva estes indivíduos a práticas alimentares anormais, consumindo alimentos compulsivamente, como um mecanismo compensatório 8.

Segundo Spitzer et al. 1 e Appolinário 6, na população geral a prevalência de transtorno da compulsão alimentar periódica pode variar de 1,5% a 5% e freqüentemente está associada com a obesidade e com perturbações da imagem corporal. Entre indivíduos obesos que procuram tratamento clínico para perda de peso a prevalência varia de 5% a 30%.

Estudos realizados no exterior encontraram prevalência de episódios de compulsão alimentar em adolescentes que variaram entre 18,5% 9 e 24% 10.

No Brasil, pesquisas com indivíduos adultos em tratamento para perda de peso mostraram uma prevalência de episódios de compulsão alimentar entre 15% e 22% 11,12,13. Em amostras não clínicas com maiores de 18 anos, Siqueira et al. 14 encontraram prevalência de episódios de compulsão alimentar de aproximadamente 13%, enquanto, Vitolo et al. 15, encontraram prevalência de 18,1% entre universitárias de 17 a 55 anos.

Considerando que são poucas as pesquisas no Brasil, de base escolar, que tenham investigado a prevalência de episódios de compulsão alimentar em adolescentes, este estudo teve como objetivo estimar a prevalência e identificar os principais fatores associados aos episódios de compulsão alimentar em adolescentes de Cuiabá, Mato Grosso.

 

Material e métodos

Trata-se de um estudo analítico de corte transversal com adolescentes de ambos os sexos, na faixa etária de 14 a 19 anos, regularmente matriculados no ano de 2008, na rede estadual de Ensino Médio público e privado, da área urbana do Município de Cuiabá.

Embora os episódios de compulsão alimentar sejam mais freqüentes entre os obesos e entre os indivíduos na infância e adolescência, optou-se por estudar uma amostra aleatória de adolescentes de 14 a 19 anos por considerar-se que esta faixa etária é mais vulnerável aos modelos e representações sociais vigentes 15.

O cálculo da amostra foi realizado considerando o nível de 95% de confiança, margem de erro de 3%, e proporção estimada de 0,50. Adotou-se uma margem de segurança de 20% devido ao efeito do desenho e a possibilidade de ocorrer perdas, totalizando 1.280 adolescentes. Cada uma das 62 escolas cadastradas na rede de Ensino Médio de Cuiabá foi considerada um conglomerado. Foram sorteadas, de forma sistemática, dez escolas para participarem do estudo (sete escolas públicas estaduais, uma escola pública federal e duas escolas privadas). Foi feito o sorteio das turmas de cada escola, de forma aleatória simples, até alcançar no mínimo 128 alunos por escola. Foram excluídas do estudo as adolescentes gestantes e lactantes e os adolescentes que apresentassem alguma condição física ou mental que os tornassem inaptos a participar da pesquisa. Foram elegíveis 1.296 estudantes, e destes, 1.209 participaram do estudo, sendo 87 eliminados por preenchimento inadequado do questionário, totalizando 6,7% de perdas.

Os dados foram coletados através da aplicação de um questionário de auto-preenchimento pré-testado, contendo questões sócio-econômicas e demográficas, sobre estilo de vida, auto-imagem corporal, medidas antropométricas informadas e padrões de alimentação e peso.

Para o levantamento dos dados sobre episódios de compulsão alimentar foi utilizado o Questionário sobre Padrões de Alimentação e Peso - Revisado (QEWP-R), que possui questões baseadas no critério Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fourth Edition (DSM-IV) 2 sobre compulsão alimentar. É um instrumento criado para o diagnóstico de transtorno da compulsão alimentar periódica e de quadros subclínicos de compulsão alimentar, sendo a versão em português validada por Borges et al. 16.

Os episódios de compulsão alimentar foram diagnosticados com base no comportamento alimentar caracterizado pela ingestão de grande quantidade de alimentos em um curto período de tempo (até duas horas), nos últimos seis meses, acompanhado pela sensação de perda de controle sobre o que ou o quanto se come.

O transtorno da compulsão alimentar periódica foi diagnosticado quando os adolescentes referiram episódios de compulsão alimentar em pelo menos dois dias por semana, associados à perda de controle e acentuada angústia relativa ao comportamento de compulsão alimentar, não sendo seguidos de comportamentos compensatórios inadequados para evitar ganho de peso. Além disso, o adolescente deveria responder afirmativamente pelo menos três questões relacionadas aos seguintes comportamentos: comer rapidamente; comer até sentir-se cheio; comer grandes quantidades de comida mesmo sem estar com fome; comer sozinho por embaraço pela quantidade de comida; sentir repulsa por si mesmo, depressão ou demasiada culpa após a compulsão.

A idade dos adolescentes foi obtida através do cálculo da diferença existente entre a data da aplicação do questionário e a data de nascimento dos mesmos, sendo o resultado expresso em anos completos de vida. Para definição da cor ou raça foi utilizada a classificação racial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 17, que considera cinco categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena. O nível sócio-econômico foi avaliado pelo instrumento da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP. http://www.abep.org), tendo como base os bens existentes no domicílio (eletrodomésticos e carros), presença de empregada doméstica e escolaridade do chefe da família. O escore obtido por cada família foi tratado como variável contínua e categórica. De acordo com a pontuação obtida, as categorias variaram de A (nível mais elevado) até E (nível mais baixo).

Para classificar o adolescente como "fumante" foi utilizado o critério de classificação definido pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) 18 e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 19 que considera como fumante de cigarro os adolescentes que tenham usado cigarros em um ou mais dias nos últimos trinta dias.

O consumo de bebidas alcoólicas foi classificado conforme a freqüência de uso em: menos de 1 vez por mês, uso de 1 a 3 vezes por mês, todo final de semana e mais que todo final de semana.

A prática de atividade física (incluindo a atividade física praticada na escola) foi avaliada por meio da informação referente à sua realização: não realiza, realiza até 2 vezes por semana e realiza 3 ou mais vezes por semana 20.

Os dados antropométricos foram informados pelos próprios adolescentes. A avaliação do estado nutricional foi realizada utilizando o índice de massa corporal (IMC = peso em kg/estatura em m2) e como referência, as curvas e as tabelas de percentis do IMC do National Center for Health Statistics (NCHS) 21. Foram considerados com baixo peso aqueles adolescentes que apresentaram IMC menor que o percentil 5, eutróficos aqueles que apresentaram IMC entre o percentil igual ou maior que 5 e menor que 85, com sobrepeso os que apresentaram IMC igual ou superior ao percentil 85 e inferior ao percentil 95 e com obesidade aqueles com IMC igual ou superior ao percentil 95.

A imagem corporal dos adolescentes foi obtida por auto-avaliação através de uma escala de silhuetas corporais, segundo o sexo, padronizadas de 1 a 9 (sendo 1 o indivíduo mais magro e 9 o mais gordo), onde o adolescente selecionou a figura que, segundo sua percepção, era a que mais se aproximava de sua imagem atual. Para a classificação foram estabelecidas quatro categorias: baixo peso (silhueta 1), eutrofia (silhuetas 2 a 5), sobrepeso (silhuetas 6 e 7) e obesidade (silhuetas 8 e 9), conforme a classificação de Madrigal-Fritsch et al. 22.

Para análise dos dados foram calculadas as prevalências e as razões de prevalências (RP) de compulsão alimentar, com os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%), para verificar o efeito das variáveis explicativas na ocorrência do desfecho. Para avaliar a linearidade das associações, utilizou-se o teste do qui-quadrado para tendência linear. As variáveis que se mostraram estatisticamente significantes na análise bivariada (p < 0,05) foram selecionadas para a análise multivariada. Nesta etapa, através de regressão de Poisson, as variáveis foram incluídas em blocos, utilizando a modelagem hierárquica 23. No primeiro nível, foram incluídas as variáveis sócio-demográficas, no segundo nível foram introduzidas as variáveis relacionadas ao estilo de vida e no terceiro nível as variáveis associadas ao estado nutricional e auto-imagem corporal dos adolescentes.

Os dados foram duplamente digitados e, posteriormente comparados e corrigidos por meio do programa Epi Info (CDC, Atlanta, Estados Unidos). As análises foram realizadas através dos programas Epi Info, SPSS versão 15.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) e Stata 10.0 for Windows (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Muller (HUJM) sob o parecer nº. 459/CEP-HUJM/07 de 13 de fevereiro de 2008. Os adolescentes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e aqueles que aceitaram participar do estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e os com idade inferior a 18 anos levaram o documento para casa para ser assinado pelos pais ou responsáveis.

 

Resultados

Participaram do estudo 1.209 adolescentes, sendo a maioria do sexo feminino (55,4%), com idade entre 15 e 17 anos (78,6%), da raça parda (52,8%) e com famílias pertencentes às classes sociais B e C (80,4%). A maioria das mães (79,7%) e dos pais (76,9%) tinha pelo menos o Ensino Fundamental completo.

Do total de adolescentes, 3,7% se enquadraram no diagnóstico compatível com transtorno alimentar, sendo 1,8% com transtorno da compulsão alimentar periódica e 1,9% com bulimia nervosa.

A prevalência estimada de episódios de compulsão alimentar no grupo estudado foi de 24,6% (IC95%: 22,3-27,2), sendo maior no sexo feminino (31%) e no grupo com idade de 19 anos (34,8%). Detectou-se associação linear significativa e direta entre a prevalência de episódios de compulsão alimentar e a idade do adolescente, sendo que os adolescentes com 19 anos tinham probabilidade 99% maior de apresentar episódios de compulsão alimentar do que aqueles com 14 anos (RP = 1,99; IC95%: 1,03-3,82). As demais variáveis sócio-demográficas estudadas não apresentaram associação com os episódios de compulsão alimentar (Tabela 1).

 

 

Quanto às variáveis relacionadas ao estilo de vida dos adolescentes estudados (Tabela 2), observa-se que foi maior a prevalência de episódios de compulsão alimentar entre os adolescentes que relataram fazer uso de bebidas alcoólicas mais do que três vezes por mês (35,6%) e nos que não praticavam atividade física (32,9%).

 

 

Verifica-se na Tabela 3, que tanto o estado nutricional baseado no IMC como a auto-imagem corporal do estudante foram associados aos episódios de compulsão alimentar. Além disso, estas variáveis apresentaram associação linear significativa e direta com os episódios de compulsão alimentar. Desta forma, na medida em que o peso do adolescente aumenta maior é a probabilidade de apresentar episódios de compulsão alimentar. Quando questionados sobre a flutuação do peso corporal em curtos períodos de tempo, os adolescentes que responderam positivamente tinham maior probabilidade de apresentar episódios de compulsão alimentar (RP = 2,14; IC95%: 1,72-2,65) do que aqueles que declararam não flutuar o peso.

 

 

Na Tabela 4, observam-se os resultados da regressão de Poisson hierarquizada. Nota-se que ser do sexo feminino, ter idade igual ou maior do que 15 anos, fazer uso de bebidas alcoólicas mais de três vezes por mês e apresentar flutuações de peso em um curto período de tempo (seis meses) foram os fatores que permaneceram associados à presença de episódios de compulsão alimentar (p < 0,05).

 

 

Ser adolescente do sexo feminino representa uma chance 1,93 vezes maior de apresentar episódios de compulsão alimentar se comparada com os adolescentes do sexo masculino. Também foi maior a chance de desenvolver compulsão alimentar entre os estudantes de 15 a 18 anos e os de 19 anos em relação aos adolescentes de 14 anos. Os estudantes que consumiram bebidas alcoólicas mais de três vezes por mês apresentaram uma chance 1,54 vezes maior de desenvolver episódios de compulsão alimentar do que aqueles que não consumiram bebidas alcoólicas. Os que relataram flutuação de peso em curto período de tempo apresentaram uma chance 1,76 vezes maior de desenvolver episódios de compulsão alimentar se comparados aos que não apresentaram flutuação de peso.

 

Discussão

Os resultados deste estudo mostram que ser do sexo feminino, ter 15 anos ou mais, usar bebidas alcoólicas mais de três vezes por mês e apresentar flutuação de peso, foram as variáveis que permaneceram associadas aos episódios de compulsão alimentar.

As adolescentes do sexo feminino apresentaram uma chance maior de ter episódios de compulsão alimentar do que os adolescentes do sexo masculino. É provável que as meninas sejam mais predispostas a apresentar episódios de compulsão alimentar devido ao ideal de magreza imposto pela cultura ocidental que muitas vezes pressiona as adolescentes a supervalorizar aspectos relacionados ao tamanho corporal e peso condicionando atitudes e comportamentos alimentares danosos à saúde e que podem evoluir para transtornos alimentares 24.

Resultado similar foi encontrado por Ferreira & Veiga 25, que estudando adolescentes de 12 a 19 anos de escolas públicas no Rio de Janeiro, verificaram que a prevalência de episódios de compulsão alimentar foi maior no sexo feminino do que no masculino. Da mesma forma, estudo realizado na França 10 com estudantes de 12 a 19 anos encontrou prevalência de episódios de compulsão alimentar de 28,1% para o sexo feminino e de 20,5% para o sexo masculino. Ao contrário, Johnson et al. 9 estudando alunos de 10 a 19 anos de escolas do Mississípi, Estados Unidos, verificaram prevalência de 18,5%, sendo maior nos meninos do que nas meninas (26% vs. 17%). Já Siqueira et al. 14 em pesquisa realizada em cinco cidades brasileiras com uma amostra de usuários de shopping centers, maiores de 18 anos, observaram que a prevalência de episódios de compulsão alimentar foi semelhante entre mulheres e homens (13% vs. 12,8%).

A investigação do uso de bebidas alcoólicas neste estudo mostrou que 28,3% dos adolescentes relataram consumi-las uma ou mais vezes por mês. Estudo realizado por Souza & Silveira Filho 26 com estudantes de escolas estaduais de Cuiabá revelou prevalência de 37,5% de uso de bebidas alcoólicas no último mês. É provável que esta prevalência mais elevada seja porque parte dos alunos participantes da pesquisa estudava no período noturno e tinha idade superior aos estudantes da presente pesquisa.

Em relação aos episódios de compulsão alimentar observa-se que os adolescentes que faziam uso de bebidas alcoólicas, por mais de três vezes por mês, apresentaram chance quase duas vezes maior de desenvolver esses episódios se comparados com aqueles que não usavam bebidas alcoólicas. Esta associação também foi observada em estudo com mulheres americanas que estavam em tratamento clínico para transtornos alimentares 27, e em estudantes de ambos os sexos do Canadá 28, da Austrália 29 e dos Estados Unidos 30.

Os transtornos alimentares apresentam uma estreita correlação com o abuso de álcool devido a fatores como a falta de auto-controle, a necessidade de gratificação imediata, a falta de vínculos afetivos, além de co-morbidades como a ansiedade e a depressão e a própria predisposição biológica ao uso de substâncias psicoativas 31. Os indivíduos com compulsão alimentar, particularmente os que apresentam comportamentos compensatórios, são os mais propensos a usar substâncias 28. Os transtornos alimentares são freqüentemente associados com o uso de substâncias, pois os distúrbios da alimentação se devem muito à insatisfação com a imagem corporal 29. Acrescente-se a isso, as tentativas frustradas de controlar o peso que levam ao uso exagerado de alimentos e bebidas como forma de resolver os problemas emocionais 2.

A oscilação do peso corporal em curtos períodos de tempo foi também uma variável que se mostrou fortemente associada aos episódios de compulsão alimentar. Resultado semelhante foi relatado por Spitzer et al. 32 e por Borges et al. 33. É provável que o adolescente, em função da sua maior preocupação com a forma e o peso corporal, adquira o hábito da prática de dietas restritivas 25. Segundo Bernardi et al. 8, as restrições e auto-imposições das pessoas que fazem dieta parecem ter um efeito rebote, apresentando ciclos de perda e recuperação de peso, resultando em riscos à saúde como o comportamento alimentar compulsivo, que é em parte responsável pelos fracassos observados no tratamento da obesidade.

Embora na análise bivariada o estado nutricional e a imagem corporal tenham apresentado associação significativa com os episódios de compulsão alimentar, após ajustes a associação não se manteve. Semelhante ao encontrado neste estudo, Ferreira & Veiga 25 também não encontraram associação entre episódios de compulsão alimentar e estado nutricional. Contrariando estes achados, Vitolo et al. 15 observaram uma forte associação entre os episódios de compulsão alimentar e excesso de peso. Da mesma forma, Ledoux et al. 10 e Johnson et al. 9 verificaram associação significante entre auto-imagem corporal e compulsão alimentar, enquanto Siqueira et al. 14 encontraram associação entre episódios de compulsão alimentar e a percepção do peso acima do ideal, somente nas mulheres.

É importante ressaltar que as medidas de peso e estatura não foram obtidas durante a entrevista e, sim, auto-referidas. Este fato pode constituir-se em uma fonte de erro das medidas. No entanto, estudos realizados por Schmidt et al. 34 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com 659 indivíduos entre 15 e 64 anos e por Farias Júnior 35 com 867 adolescentes de 15 a 18 anos de Florianópolis, Santa Catarina, mostraram que as medidas auto-referidas de peso e estatura representam medidas válidas, como forma de aproximação dos valores mensurados, podendo ser utilizadas na avaliação do estado nutricional, a partir do IMC, em estudos epidemiológicos.

No presente estudo, a prevalência de episódios de compulsão alimentar foi maior nos adolescentes com mais de 15 anos de idade, sendo detectada associação linear significativa e direta entre a prevalência de compulsão alimentar e a idade dos adolescentes. O mesmo foi encontrado por Ledoux et al. 10, com mais significância para o sexo feminino e por Ferreira & Veiga 25 que encontraram forte associação entre os episódios de compulsão alimentar e a faixa etária dos estudantes, sendo que os adolescentes mais velhos mostraram-se mais suscetíveis à compulsão alimentar.

Observa-se que o nível sócio-econômico não apresentou associação com os episódios de compulsão alimentar. Mas, vale lembrar que os transtornos da conduta alimentar vêm aumentando em países ocidentais industrializados, principalmente em indivíduos de nível sócio-econômico médio e alto 36 e segundo Borges et al. 37 também estão ocorrendo em pessoas com nível sócio-econômico e cultural mais baixo, o que evidencia que os portadores destas patologias estão cada vez mais heterogêneos.

Neste estudo, a preferência por se trabalhar com adolescentes se deve ao fato de que é nesta etapa da vida que ocorrem as transformações afetivas, sociais e corporais e a aparência física adquire importância fundamental na construção da identidade pessoal tornando-os suscetíveis aos problemas e transtornos relacionados ao comportamento alimentar.

Embora existam métodos mais acurados para diagnosticar a compulsão alimentar, o método de escolha para este estudo foi um questionário de auto-relato, por ser menos invasivo, de baixo custo e de fácil aplicação. Porém, a avaliação de conceitos complexos, como a compulsão alimentar, através de questionários, costuma ser menos precisa do que a fornecida por entrevistas.

Uma limitação encontrada no presente estudo se relaciona ao problema da comparabilidade com outras pesquisas 9,10,14,15,25, pelo uso de diferentes métodos para diagnosticar episódios de compulsão alimentar e distintos instrumentos de investigação. Além disso, são poucos os trabalhos que investigaram episódios de compulsão alimentar utilizando uma amostra de base escolar, na faixa etária de 14 a 19 anos. A maioria dos estudos aborda comportamentos alimentares inadequados ou anormais ou possíveis transtornos da alimentação, em amostras de conveniência. Mesmo fora do Brasil, poucos estudos têm explorado comportamentos de compulsão alimentar em adolescentes. A atenção das pesquisas sobre o desenvolvimento de transtornos alimentares concentra-se quase que exclusivamente em amostras clínicas e no sexo feminino.

Vale ressaltar, ainda, que o delineamento transversal, utilizado neste estudo, tem como vantagens o custo relativamente baixo e a rapidez na obtenção dos dados, no entanto, impossibilita o estabelecimento da relação de causalidade e temporalidade entre as variáveis explicativas e o desfecho, uma vez que as observações são realizadas em uma única oportunidade.

Conclui-se pela importância de se voltarem esforços para o rastreamento precoce dos episódios de compulsão alimentar e para identificação de subgrupos de risco. Programas de intervenção e ações interdisciplinares, direcionados à prevenção e tratamento de transtornos alimentares, devem ser fomentados de modo a favorecer as condições de saúde desta população.

 

Colaboradores

L. A. Pivetta participou de todas as etapas da pesquisa como autora principal e escreveu o artigo. R. M. V. Gonçalves-Silva colaborou em todos os estágios do estudo e foi responsável pela revisão do artigo.

 

Referências

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Correspondência:
L. A. Pivetta
Centro Estadual de Referência de Média e Alta Complexidade
Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso
Rua Profª. Azélia Mamoré de Mello 318
Cuiabá, MT, 78005-700, Brasil
loreniaugusta@hotmail.com

Recebido em 29/Jan/2009
Versão final reapresentada em 25/Nov/2009
Aprovado em 01/Dez/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br