RESENHAS BOOK REVIEWS
Claudio Bertolli Filho
Programa de Pós-graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista, Bauru, Brasil. cbertolli@uol.com.br
A GRIPE ESPANHOLA NA BAHIA: SAÚDE, POLÍTICA E MEDICINA EM TEMPOS DE EPIDEMIA. Souza CMC. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Salvador: EdUFBA; 2009. 372 pp. (Coleção História e Saúde).
ISBN: 978.85-7541-169-8
O atual estado da saúde coletiva mundial coloca em tela os fatores que permitem a ocorrência e a disseminação das doenças em escala planetária, muitas vezes relegando a um opaco segundo plano as condicionantes regionais. Nesse aspecto, os historiadores, dentre outros especialistas das Ciências Humanas, têm oferecido uma preciosa contribuição para os questionamentos elaborados sobre os enigmas das enfermidades, colocando em destaque exatamente as "faces" locais dos eventos epidêmicos. Insiste-se, assim, na composição de uma equação que leva em conta tanto as dimensões biológicas quanto sociais das doenças grupais, conferindo maior consistência à afirmação Camusiana de que as epidemias revelam seu poderio em sociedades doentes devido a disfunções em série.
A historiadora Christiane Maria Cruz de Souza seguiu à risca essa tendência que já se tornou regra entre os historiadores nos últimos trinta anos, inclusive com a utilização de uma multiplicidade de fontes documentais, as quais abrangem desde os relatórios administrativos e médicos e os registros cemiteriais até a intensa cobertura que a imprensa forneceu sobre a doença enigmática. Ao analisar a experiência baiana com a gripe espanhola, ocorrida no Brasil no segundo semestre de 1918 e nos primeiros meses do ano seguinte, ela não se limitou - como fazia a historiografia mais tradicional - em apenas descrever os fatos mais espetaculares instruídos pelo contato social com uma doença letal. Em vez disso, buscou estabelecer o contexto que tornou a Bahia um território propício para a disseminação da doença que, se fez mortes entre as elites daquele estado, cobrou proporcionalmente muito mais vidas dentre as classes menos privilegiadas.
Sob essa orientação, a primeira preocupação da autora foi focar as condições sanitárias e políticas da Bahia nas primeiras décadas do século XX. Mesmo que situado na periferia do poder, o estado baiano vivia naquele período um processo modernizador, inclusive em sua estrutura sanitária, o que não implicava a existência de um serviço sanitário que favorecia a proteção da saúde de toda a população. O que se observa é que a modernidade proposta visava mais garantir a fluidez das atividades econômicas do que garantir as condições mínimas que fossem para a proteção da saúde popular, colocando em declarado confronto não só os excluídos frente aos donos do poder, mas também os vários segmentos da elite política.
A vulnerabilidade da cidade de Salvador e especialmente do seu porto favoreceu que a epidemia gripal chegasse à capital do estado e se disseminasse em tempo curto. Em um primeiro momento, a administração pública mostrou-se quase que totalmente apática ao fenômeno sanitário, como se ele não existisse, apesar da ocorrência de mortes nos setores sociais menos afortunados que, por sua vez, reclamavam a pronta tomada de decisões por parte das autoridades. Em vez de responder aos apelos populares, os grupos políticos preferiram inicialmente lançar acusações recíprocas, atribuindo aos seus opositores a presença gripal e os estragos que já estavam impondo ao povo baiano.
A falta de ação do estamento político-administrativo rimava com os desencontros do setor médico em definir a identidade da nova enfermidade. Os diagnósticos variavam, deixando a população órfã de socorro imediato. Para uma parte dos médicos, a doença nada mais era do que uma gripe comum à qual estava se dando um destaque descomedido; para outros, a inesperada virulência da enfermidade correspondia à ação de uma nova patologia sobre a qual a ciência ainda dispunha de poucas informações e pouca ou nenhuma forma de intervenção. Um outro grupo de médicos, não sem reticências, assumiu que o evento sanitário era o mesmo que já se abatia sobre a Europa, causado pelo bacilo de Pfeiffer, não deixando de declinar seu nome: influenza epidêmica ou, mais comumente, gripe espanhola. Essa última linha tornou-se a posição assumida oficialmente pela administração pública, especialmente a partir do momento em que representantes da elite, inclusive políticos, passaram a ser vitimados pela nova enfermidade.
A indefinição sobre o que estava acontecendo permitiu a multiplicação de receitas que apontavam para um grande número de drogas que, mesmo voltadas para o tratamento dos sintomas gripais, passaram a ser vistas como preservadoras da saúde e, ao mesmo tempo, como remédio potencialmente salvador dos infectados. Vale ainda lembrar que, apesar das desconfianças populares em relação aos pronunciamentos médicos, tais substâncias passaram de imediato a ser disputadas pela população que contava com alguns recursos econômicos, tornando-se inacessíveis para os mais pobres. Frente a isso, o Serviço Sanitário Estadual buscou amainar os medos dos baianos enfatizando a urgência de observância de medidas higiênicas básicas, como a desinfecção da boca e do nariz, e também sugerindo que a vacina jenneriana poderia oferecer alguma proteção contra a gripe. A constatação da existência de um "germe" causador da gripe permitiu também supor a existência de um hospedeiro transmissor, formulando-se inclusive a hipótese de ser ele o mosquito, o que favoreceu o aconselhamento de desinfecção dos prédios e dos navios.
Diante disso, o número de "espanholados" e de mortos ampliava-se diariamente, como permitia constatar as inspeções realizadas pelas autoridades sanitárias nos distritos de Salvador. Propagava-se então que a doença era "democrática", já que supostamente se abatia sobre todas as classes sociais, mas Cruz de Souza deixa claro que a gripe epidêmica fez mais vítimas entre os baianos residentes nas áreas mais pobres do município, mesmo sendo a intensidade da epidemia bem inferior à de outras metrópoles, inclusive Rio de Janeiro e São Paulo, levando a óbito, oficialmente, menos de quatro centenas de infectados.
As indecisões administrativas e as reticências da medicina em identificar a moléstia tinham prosseguimento, para o desespero da população, nas dificuldades de obtenção de assistência médica. Os poucos e precários hospitais da cidade, sobretudo a Santa Casa, abriram espaços para o atendimento dos infectados, mas os leitos sempre foram em número insuficiente, condenando boa parte dos gripados à própria sorte. Não só devido a isso, mas também à tradição cultural, os baianos buscaram socorro nos sistemas mágico-religiosos que, unissonamente, atestavam que a epidemia era um castigo imposto pela divindade. Missas e orações específicas para o tempo de peste foram celebradas, e estátuas de santos foram deslocadas de seus altares para permitir a realização de procissões e romarias, as quais se tornaram novos focos de disseminação da gripe. Da mesma forma, mesmo que desqualificados e ridicularizados nas páginas dos jornais, os pais-de-santo, os espíritas e os curandeiros aumentaram sua clientela devido ao mal reinante, sendo consultados por pessoas dos mais diversos extratos da sociedade.
Outra forma de obtenção de alguma proteção contra a infecção constituía-se em uma série de drogas e bebidas que já vinham sendo consumidas pela população bem antes da ocorrência da epidemia; tais drogas, como xaropes, tônicos, emulsões, pastilhas e conhaques tiveram suas propagandas alteradas para mostrarem-se como propícias para a proteção, cura ou recuperação das forças das vítimas da influenza. Formava-se assim um arsenal medicamentoso, que inclusive abrangia a medicina popular, que, se não oferecia a esperada proteção contra a influenza, pelo menos dava alguma sensação de proteção para os assustados baianos.
A autora ainda brinda o leitor com um capítulo que se afasta da capital da Bahia para se enfronhar pelo interior do estado. Baseando-se em um hábil trabalho com as fontes disponíveis, que se mostram sempre fragmentárias, a historiadora buscou retraçar a rota da epidemia em direção aos sertões, surpreendendo cidades e vilas que contavam com menos recursos ainda que Salvador. Nessas áreas, os baianos se defrontaram com mais privações e desamparos, não havendo dados quantitativos seguros que permitam o estabelecimento preciso do número de contaminados e mortos pela infecção. Ainda com esse capítulo fica o convite - e a dívida - dos historiadores da gripe que, de regra, têm focado sobretudo os espaços das capitais ou as cidades de maior destaque de cada estado, pouco ou nada se preocupando com os municípios menores, talvez devido ao reduzido número de habitantes destas áreas.
Como se afirmou no início desta resenha, a pesquisadora seguiu pormenorizadamente o caminho de análise sobre a gripe seguido por outros historiadores. Isso não quer sugerir que, em conseqüência, seu estudo seja menos importante. Pelo contrário, a grandeza do livro reside exatamente no fato de Cruz de Souza ter contribuído para o conhecimento de evento sanitário que pouco se estudou fora do eixo Rio-São Paulo. Somente com estudos bem estruturados como este será possível conhecer a verdadeira especificidade da experiência gripal de 1918 no contexto brasileiro, assim como da história da saúde pública nacional. Se há alguma ressalva que se pode fazer em relação ao seu livro constitui-se na qualidade da reprodução do material jornalístico que nem sempre permite ao leitor a consulta clara dos textos.