DEBATE DEBATE
Conflitos, interesses e alegorias: o caso SB Brasil 2003
Luis David Castiel
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. luis.castiel@ensp.fiocruz.br
Muitos dos artigos publicados nos periódicos de saúde pública brasileira (como os Cadernos de Saúde Pública) estão referidos a desenhos instrumentais moldados na forja racional e objetivante que define os atuais dispositivos empiricistas de pesquisa científica. Por sua vez, há críticas epistemológicas que consideram tais modalidades investigativas sem capacidade de captar diversas dimensões do que de fato possa existir na "realidade". Dessa forma, aquilo que é inapreensível pelo referido dispositivo não teria o mesmo estatuto de verdade para comprovar sua existência como objeto.
Mesmo correndo o risco de simplificar em demasia, parece ser esta, em síntese, a essência da crítica feita pelos autores do artigo Validade Científica de Conhecimento Epidemiológico Gerado com Base no Estudo Saúde Bucal Brasil 2003, em debate diante do texto de Queiroz et al. 1.
Antes de tudo, vale reiterar que autores do artigo também operam no interior deste mesmo dispositivo empiricista ao produzirem seus artigos - inclusive aqueles baseados no banco de dados em questão. Isto traz a explicitação apropriada e justificada quanto ao conflito de interesses.
Aparentemente, as críticas contidas no artigo de Queiroz et al. quanto à validade/representatividade dos dados do banco em foco, além de potencialmente trazer sérios problemas a novas pesquisas nele baseadas, fragiliza a legitimidade científica de artigos já publicados. Como se algo indesejável aos rituais do reino da academia houvesse ocorrido ao haver-se levantado certos tapetes e descoberto indícios de impurezas e desordem onde supostamente deveriam imperar rigorosos controles responsáveis por pureza e ordem. Ou seja, teriam aparecido anomalias profundamente inconvenientes que podem veicular, no limite, a suposta invalidação de partes importantes de um banco de dados.
Este, a nosso ver, parece ser um aspecto crucial: questionou-se, dentro das regras do jogo do empiricismo das estimativas populacionais, ao estatuto de uso dos dados do SB Brasil 2003, a partir dos conceitos de validade/representatividade. Como argumentam os autores, o fato de que "desde 2003 até o início de 2009, foram publicados 27 artigos em periódicos científicos bem qualificados nacional e internacionalmente, os quais utilizaram a base de dados do SB Brasil para estudar diferentes questões de saúde bucal e produzir conhecimento relevante para o planejamento em saúde" (p. 652) não é suficiente para invalidar a crítica de Queiroz et al., e, per se, legitimar tais artigos.
Há intentos de indicar que para o planejamento de ações de saúde bucal, não são necessários rigores acadêmicos relativos à validade (nas acepções mais usuais em epidemiologia) ao se buscarem descrições de prevalência de agravos em saúde bucal (não estamos aqui abordando controvérsias causais). E, portanto, prescinde-se de cuidados técnicos em relação à coleta de dados passíveis de serem considerados meticulosos em demasia. Mas, importa aqui ter em conta que é possível criar e sustentar controvérsias entre pesquisadores - com suas formulações técnicas - e planejadores - com suas decisões que envolvem variáveis extracientíficas relativas a viabilidades de suas ações em diversas ordens 2.
Porém, que fazer se os achados da pesquisa de prevalências que originaram os dados não estariam autorizados a serem instituídos como dados legítimos, detentores de validade não enviesável, mesmo com a possibilidade redentora da indicação de sua correção, estampada quase como manchete já no título do artigo de Queiroz et al.? Caso houvesse a propalada correção, talvez os efeitos indesejáveis fossem reduzidos e não necessariamente levassem à "implosão" do banco de dados. Perdas permaneceriam, especialmente sob o ponto de vista de danos aos trabalhos já publicados, em particular. No entanto, tal correção não parece ser, salvo engano, tão garantidamente viável e/ou factível e/ou possível.
Essas contingências podem ser encaradas sob o ângulo da sociologia do conhecimento científico, que de certa forma inspiraram estes comentários. Em primeiro lugar, é preciso situar nossos pontos de afinidade teórica com os argumentos dos autores que se localizam na crítica à idéia de que "algo é científico" veiculado pela ciência empiricista de tal modo que pode dar a impressão que aquilo produzido sob a chancela desta cientificidade não permita mais nada que não seja submeter-se à ciência como geradora das melhores "verdades" possíveis para orientar nossas decisões, inclusive na gestão de nossas vidas.
Seguindo Fourez 3, acreditar que a observação científica do mundo possui objetividade pura e absoluta só é possível escondendo as particularidades de nossa sociedade e da nossa situação, o que levaria a uma sociedade "evidenciocrática" na qual procuramos legitimar decisões políticas/éticas sobre raciocínios científicos supostamente objetivos. A objetividade "pura" e "universal" aparece no que sobra quando se retira do que constitui o mundo aquilo que é singular.
A ciência empiricista se constitui indiscutivelmente numa tecnologia intelectual capaz de fornecer excelentes interpretações de mundo e produzir objetos técnicos de modo a corresponder a projetos humanos. As dificuldades surgem com a ideologia da cientificidade quando a considera como o "melhor" modelo para "representar" o mundo. A força da ciência provém do fato de que seus protocolos e dispositivos de análise simplificam suficientemente a "realidade" a fim de estudá-la e agir sobre ela.
Todavia, a ciência pode cometer abusos de saber, por exemplo, quando se pretende deduzir normas de conduta com base em unívocas evidências científicas. Ou reduzir problemas somente à sua tradução em termos técnicos 3.
Pode-se pensar a atividade científica em dois aspectos: uma perspectiva intrínseca, relativa ao aspecto técnico/procedimental - que envolve essencialmente o levantamento fidedigno de dados e correspondente aplicação correta de protocolos e desenhos de pesquisa e um ponto de vista extrínseco - próprio ao aspecto epistemológico/contextual - as várias atividades para além do rigor científico: estratégias de busca de financiamento, gestão das relações entre grupos acadêmicos, comunicação entre pares, formas de publicar artigos em revistas consagradas.
Para se defenderem de uma crítica procedimental estatística, os autores do artigo tentam reduzir seu teor, procurando relativizá-lo e, até certo ponto, tentando neutralizar sua ênfase. Mas também lançam uma carga contra tais argumentos - ainda no interior da ciência - mediante outro desenho de pesquisa qualitativa - técnicas de análise temática dos termos utilizados na crítica de Queiroz et al. (como validade e representatividade). Além disso, fazem uso de argumentos epistemológicos e encaram o "conhecimento científico" do lado de fora. Daí a crítica passa pela postulação de um "conhecimento artístico".
Em outras palavras, utilizam uma retórica que estrategicamente sai do campo do "adversário" e o convoca a jogar outro jogo - agora com elementos estéticos, regras diferentes e em outro campo -, o das alegorias metafóricas.
Isto aparece ao desdobrar-se engenhosamente a conhecida metáfora de ensino da prevalência como uma fotografia do que sucede em termos de saúde em um determinado momento e lugar para imagens de obras artísticas de Picasso, Monet, Siron Franco. Ora, estas são experiências de ordens e registros diferentes, com manifestações e repercussões diversas da e na subjetividade humana. Estamos no mundo das sensações e emoções, no qual parece não se aplicar com a efetividade desejada a noção racional de "inferências válidas" para este nível de organização não racional e eventualmente não consciente.
Por sua vez, o processo metafórico possui uma característica marcante: a de que, ao propor uma determinada comparação ou analogia, ao fazê-lo, destacam-se certos traços do objeto metaforizado e, simultaneamente, atenuam-se ou mesmo escamoteiam-se outros, conforme os movimentos persuasivos do enunciador ao configurar seu enunciado metafórico 4.
No caso, a metáfora fotografia se torna imagem, que se torna obra de arte pictórica. E o que antes tinha um caráter descritivo vai assumindo feições de experiência estética responsável por gerar efeitos subjetivos para além da idéia carreada por fotografia-prevalência. Em outras palavras, acontece um efeito retórico que transforma o que antes dizia respeito à capacidade de se descrever o que acontece em termos de saúde em determinado grupo populacional em certo momento e em local definido - a fotografia-prevalência que se constitui em conhecimento científico.
Acontece, então, uma metamorfose e surge outra categoria: o conhecimento artístico. Ora, este "conhecimento" se estrutura de forma distinta ao anterior e não apresenta pretensões inferenciais populacionais, pois lida com experiências com elementos interpretativos/subjetivos com forte caráter de singularidade.
Não estamos com isto afirmando que é preciso separar o subjetivo do objetivo, dogma central da ciência empiricista. Apenas procuramos mostrar como a operação desse dispositivo não inclui aspectos dessa ordem. Trazê-los à discussão, nestas circunstâncias argumentativas, continua não resolvendo a questão procedimental da validade que está em foco, ao sinalizar para uma desconstrução de feição epistemológica. Como se diz popularmente, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
O argumento, também pertinente, de que viver a vida é impreciso, não traz aceitabilidade incondicional diante dos imputados aspectos de imprecisão dos dados em cheque. Algo que, aliás, os autores assumem, mas tentando salvaguardar sua utilidade. O problema é que se estamos no campo da ciência empiricista, âmbito dos regimes de precisão, cabe determinar o grau de precisão, evitando a imprecisão não estimável se não se atenta para os requisitos amostrais dos dados do SB Brasil 2003.
Mas, também, parece que não cabe discordar do fato que, diante dessa situação, não se deve menosprezar in totum os dados disponíveis, e sim verificar o que pode ou não ser aproveitado para o planejamento e gestão em saúde bucal. Agora, há que estar de acordo com o seguinte: se não for possível a correção do SB Brasil 2003 e for realizado um novo SB Brasil, decerto todos esses aspectos amostrais deverão ser merecedores de cuidadosa atenção.
Nesse sentido, talvez se mostre algo sofística a estratégia retórica dos autores, mesmo sustentando com pertinência "a reconhecida limitação da ciência em, sendo um discurso sobre a realidade, reproduzi-la, apreendê-la, capturá-la" (p. 654), mas que não parece ser exatamente o que está em questão no caso SB Brasil 2003. Quando se aceita a predominância do discurso técnico-procedimental e se opera no seu interior, a definição do estatuto de qualidade dos dados para essas pesquisas é primordial, e a indicação de que tais dados são problemáticos para satisfazer aos critérios inferenciais traz desdobramentos que demandam correções.
Em suma, se algo afeta os pressupostos que sustentam este modo de produção de saber haverá prejuízos aos estudos empiricistas baseados em tais dados. Se Queiroz et al. estão corretos, buscar alhures argumentos, fora do âmbito procedimental estatístico para manter o status de banco de dados satisfatórios para o SB Brasil 2003, por mais que os autores do artigo tentem sustentá-lo, faz-nos voltar a outro aforismo popular (muitas vezes citado de forma incorreta) talvez forçando a barra, ao apontar para uma bem humorada postura de conformismo diante das imperfeições com que temos de lidar na vida em relação ao SB Brasil 2003: "se só tem tu, vai tu mesmo..." Será?
1. Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade de correção. Cad Saúde Pública 2009; 25:47-58.
2. Tesh SN. Hidden arguments. Political ideology and disease prevention policy. New Brunswick: Rutgers; 1990.
3. Fourez G. A construção das ciências. Introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Edusp; 1997.
4. Lakoff G, Johnson M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press; 1980.