DEBATE DEBATE

 

A incorporação de agendas pelas organizações internacionais de saúde

 

 

Moisés Goldbaum

Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. moises.goldbaum@gmail.com

 

 

A proposta elaborada por Maio et al. tem um objetivo bastante interessante e instigante, qual seja explorar a gênese e o processo de emergência de uma política de ação afirmativa no terreno da saúde da população negra na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Ao tempo que agradeço o convite para ser um dos debatedores desse texto, informo que o farei dispensando a utilização de referências bibliográficas e fazendo-me valer de minha experiência vivida nestes últimos anos, em particular da minha vivência como consultor nacional da OPAS.

O artigo traz informações e assertivas importantes para entender, de modo geral, o papel exercido e a influência desempenhada pelas organizações intergovernamentais (OI) nas mudanças conjunturais observadas no mundo. O enfraquecimento das OIs é destacado em várias passagens do texto, especialmente no item de análise a elas dedicado. A explicação oferecida para tanto pode estar a merecer um maior aprofundamento. A forma de exercício dos votos em cada uma das instâncias trabalhadas (pelos países-membros nas OIs e pelos países mantenedores no caso dos bancos) ou a dependência dos chamados fundos extra-orçamentários são, evidentemente, algumas das razões significativas para justificar esse "enfraquecimento relativo". Entretanto, sua legitimidade e capacidade técnica não poderia ser "abalada" por razões orçamentárias exclusivamente. A pergunta que se apresenta refere-se a indagar se o papel "reitor" (no caso de alguns países menos fortalecidos tecnicamente) ou influenciador (na medida de sua vocação mobilizadora e integradora) na definição e condução de políticas de saúde junto aos países sofreu modificações nesses tempos e quais razões, além dessas apontadas no texto, as explicam. Entendo ser essa uma questão chave, na medida em que ela poderá aprimorar o entendimento sobre a análise feita da incorporação da etnicidade como fio condutor do estabelecimento de prioridades em saúde. Assim, uma reflexão que se impõe poderia fazer referência à capacitação e avanços técnicos, políticos e sociais que os países experimentaram no equacionamento de seus problemas e na definição de suas políticas de saúde. Isso implicaria a busca de alternativas outras para o apoio à formulação e implementação de políticas, para as quais os novos atores, é possível supor (e nesse caso os bancos), buscaram organizar-se para tanto.

Na seqüência, o vínculo que os autores procuram estabelecer entre a experiência institucional com a saúde das populações indígenas e a atual compreensão da relação da etnicidade e saúde não fica suficientemente evidenciado, lembrando que, como se afirma, o tema "já era freqüentado pela associação entre saúde comunitária e populações indígenas, em especial no contexto andino e centro-americano" (p. 1274-5). Além de um necessário detalhamento para entender essa relação de experiências, que não necessariamente se interpolam, há que ressaltar que este tema (a saúde das populações indígenas) se impõe pela própria realidade dos países (observe-se que ele estava voltado para o contexto andino e centro-americano). Movimentos, entre outros, poderiam ser mais significativos para expressar essa preocupação com a etnicidade, que são, ao lado da bem citada e primorosa contribuição de Cristina Torres, as considerações trabalhadas sob o título de "Análise de Situação de Saúde segundo Condições de Vida", desenvolvidas contemporaneamente às idéias expostas (final da década de 80 e anos 90 do século passado). Esse movimento nascido internamente à OPAS oferece elementos para situar a questão da etnicidade (e, no caso em tela, da população negra) em sua mais holística expressão.

Ao iniciar a análise do combate ao racismo e pobreza, os autores, com muita propriedade apontam para a emergência dessa agenda no processo de "democratização das sociedades latino-americanas nos anos 1980/1990" (p. 1275). Ou seja, o florescimento e eclosão dos organizados movimentos sociais passaram a constituir-se em atores destacados e decisivos no estabelecimento e controle social das políticas públicas. O que chama a atenção nesse capítulo é que, em geral, as iniciativas nas conferências partem dos Bancos ou Fundações. Ao final desse capítulo, registra-se o reconhecimento de que "políticas antipobreza poderiam ser mais efetivas se conjugadas com estratégias antidiscriminação" (p. 1276). A incorporação dessa questão nas OIs se dá com base nessas iniciativas e evidências, o que faz supor sua participação a posteriori. Apesar da "porosidade" da OPAS, registrada por Cesar Vieira, que se explica pelo fato de que as OIs devem ser "caixa de ressonância" dos problemas nacionais, a impressão que o texto sugere é de que a OPAS absorve e registra as demandas nos seus documentos, como essa da população negra, mais tardiamente do que as demais agências. A experiência com a saúde indígena de certa forma corrobora esse fato; se, como está expresso no texto, em 1992 o Subcomitê de Planejamento e Programa do Comitê Executivo da OPAS "propôs que se considerasse mais cuidadosamente a saúde e bem-estar das populações indígenas das Américas" (p. 1276), a elaboração do Plano de Ação só se concretizou em 2004, ou seja, 12 anos após. Seria interessante aprofundar uma análise que permitisse identificar, dentro do processo de democratização identificado e diante da "porosidade" das OIs, a sua capacidade e sua agilidade na absorção das demandas dos movimentos sociais e populares que desempenham um importante papel na definição das políticas públicas. Faço referência aqui, por exemplo, ao caso brasileiro, no qual a saúde da população negra e sua representatividade de há muito está incorporada na agenda das órgãos nacionais, com destaque para o Conselho Nacional de Saúde.

Não obstante as observações que faço aqui, o texto apresenta e exalta no duplo papel reconhecido das OIs (atores e arena), de modo correto, o papel exercido por elas, enquanto atores, na indução de políticas para a saúde da população negra. Para um leitor não conhecedor da estrutura e burocracia (no bom sentido da palavra) da OPAS fica pouco explícito a arena na qual ela se constitui. As considerações sobre as intervenções dos subcomitês ou comitês da OPAS não permitem entender o processo burocrático de tomada de decisões, sugerindo até (entendo que não é esta a intenção) que ações de natureza pessoal podem estar a determinar o sentido de atuação institucional. Creio que a análise dessa estrutura permite fazer compreender melhor como essa burocracia molda ou constrange as novas agendas que a realidade impõe. Estando eu correto nessa observação, para desfazê-la é imprescindível alguma apreciação sobre os condicionantes desse processo que envolve a participação dos governos nela representados, ao lado de estimar o impacto dessas ações.

Faço estas singelas observações com o intuito de contribuir para entender este instigante e complexo tema da incorporação de agendas pelas nossas instituições. O tratamento dado é interessante e as questões que apresento não devem ser vistas como objeções, mas como chaves para aprofundar o bom debate proposto.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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