DEBATE DEBATE
Do enfrentamento à "harmonização"
Celia Almeida
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. calmeida@ensp.fiocruz.br
O artigo é interessante e registra informações que ajudam a entender o papel da OPAS/OMS no processo de institucionalização de políticas afirmativas a favor de grupos historicamente excluídos ou discriminados nas sociedades, aqui especificamente, os negros. Ao propor analisar a gênese desse processo, no âmbito da organização, nos remete a outras discussões pertinentes e que se articulam com a temática em questão. E, corretamente, situa as organizações internacionais em geral, e a OPAS em particular, "como atores sociais e como arenas", que embora orientadas para um domínio específico - no caso saúde - estão referidas a um "ambiente institucional e normativo" mais amplo, que configuram "marcos e referências institucionais globais".
Para estimular o debate, é sobre a caracterização desse "ambiente" mais amplo, que prefiro chamar conjuntura mundial, que faço as primeiras observações.
A síntese apresentada no texto reúne elementos dessa conjuntura, mas, a meu ver, coloca no mesmo período histórico - "desde o início dos anos 1980" - processos que já vinham de antes e que se sobrepõem e potencializam neste momento. Como menciona o artigo, é certo que se observa, a partir dos anos 1980, grandes alterações na dinâmica de estruturação mundial, discutidas por diversos autores, balizadas por diferentes variáveis, assim como a emergência de novos global players, que crescem muito na década seguinte, alguns especialmente poderosos. Entretanto, a variável política é particularmente importante nesse processo, e não pode ser eludida, pois essa é a década da mais avassaladora hegemonia neoliberal, jamais vista na história do mundo 1. Esse fato foi determinante na formulação das agendas que pautaram as escolhas do mais variado elenco de atores que conduziram essa dinâmica global, seja no plano econômico, político ou cultural, com sérias implicações e impactos na área social e na constituição dos valores da sociedade. E isso repercutiu de várias maneiras também nas instituições.
Constata-se uma perda de autonomia dos Estados nacionais para tomar suas próprias decisões, causada pelas induções políticas e condicionalidades externas, impostas, num primeiro momento, pelos ajustes estruturais macroeconômicos (promovidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional) e, posteriormente e de forma cumulativa, pela dependência dos "doadores externos". Entretanto, a redução do protagonismo do Estado na "organização da vida social e do processo de desenvolvimento" (p. 1274), principalmente no âmbito nacional, tem de ser melhor qualificada. Primeiro, porque a autonomia do Estado no processo de decisão é sempre relativa 2 e, segundo, porque embora o leque de opções fosse bastante restrito, a decisão de aderir a essas opções sempre foi do próprio Estado nacional, que necessitou para tanto de apoio e suporte internos, isto é, de correlação de forças políticas a favor da adesão.
O que é grave nessa opção é que os recursos públicos diminuíram, mas as responsabilidades nacionais dos Estados sobre suas populações permaneceram. E o resultado dessa dinâmica foi uma absurda piora nas condições de vida de importantes parcelas da população mundial, com aumento exponencial da fome, da pobreza e dos riscos, principalmente no Sul, produto de ajustes estruturais que negligenciaram a questão social e potencializaram desestruturações, guerras e desmandos políticos de toda ordem. Essa situação global foi alvo de muitas críticas, colocando a questão da pobreza e da exclusão social no centro dos debates políticos e acadêmicos, que remeteram à revisão de políticas e à busca de alternativas de superação dos problemas acumulados. E a discussão da eqüidade ganha proeminência - eqüidade na distribuição dos recursos e no acesso à rede de proteção social, incluídos os serviços de saúde.
Concomitantemente assiste-se a transições políticas na América Latina (pós-ditaduras militares); a construções de novas nações na África (pós-independência, nos anos 60 e 70, de longo passado colonial, ou pelo fim do apartheid, na África do Sul, em 1991); à queda do Muro de Berlim; à consolidação da União Européia; ao "surgimento" de novos países na Ásia, apenas para citar alguns dos eventos mais marcantes da segunda metade da "era dos extremos", como chamou Hobsbawm 3 o "breve século XX", também considerado "longo" por outros autores 4, dependendo da perspectiva com que se olha!
E todos esses processos foram acompanhados da maior visibilidade de novos atores sociais - índios, negros, mulheres, gays, entre outros - que passaram a vocalizar demandas de forma cada vez mais organizada, em níveis nacional e internacional. Foi assim, portanto, que os "excluídos" em geral entraram para a agenda política.
Trata-se, portanto, da confluência de dinâmicas históricas que se articulam oportunamente em dado momento. E isso remete à minha segunda observação, também de caráter contextual.
Refere-se à questão do "enfraquecimento relativo da OMS" na condução setorial. De fato, também ocorreu, como bem refere o artigo. Mas, na minha opinião, e concordando com Melo & Costa 5, entre outros autores, isso não se dá como resultado dessa conjuntura dos anos 1980 em diante, mas é um processo que vem de antes. A perda relativa de poder da organização já era visível no final da década de 1970, mas se concretizou posteriormente, possibilitando ao Banco Mundial, mais claramente a partir da segunda metade dos 80, exercer grande protagonismo na área social, incluída a de saúde, e ter liberdade de ação para propor agendas de reforma setorial e mecanismos que foram difundidos e aplicados globalmente. De novo, a hegemonia política aqui também foi fundamental, permitindo o questionamento de valores e princípios considerados consolidados no setor saúde e subvertendo perspectivas seculares (tais como a dos princípios de universalidade do direito à saúde e de eqüidade no acesso aos serviços de saúde), a serem substituídas pela "focalização nos mais pobres e necessitados".
Assim, a disputa entre essas duas instituições - Banco Mundial e OPAS - pela hegemonia na condução setorial é mais antiga, remonta à presidência de Robert MacNamara no Banco (1968-1981) e tem marcos históricos, como as querelas relativas ao controle populacional (nos anos 70), as brigas com a Nestlé na questão do aleitamento materno (também no meado dos 70), a reação ao programa de medicamentos essenciais (1978) 6, entre outros. Saúde para Todos no Ano 2000 (1975) e Alma Ata (1978), foram tentativas memoráveis e corajosas de ampliar os estreitos limites biomédicos e da saúde pública tradicional nos quais se movia historicamente a OMS, além de tentar projetar a pesada organização setorial para além de seus muros - durante a direção de Halfdan Mahler, que esteve 15 anos à frente da OMS (1973-1988). Mas aí os ventos já sopravam em outra direção!
Na realidade, o debate entre "atenção primária integral" e "seletiva", que é parte desse processo de enfrentamento em nível internacional, só se efetiva como parte da agenda de focalização, formulada pelo Banco, nos anos 90, quando é difundida e implementada globalmente. Essa discussão será de novo retomada na 'recuperação' da atenção primária a partir do início do novo século.
Pela própria característica da OPAS/OMS, a composição do seu orçamento sempre esteve submetida às contribuições dos seus membros, leiam-se os países, e sujeita a retaliações políticas veladas ou explícitas, dependendo da conjuntura. Também pela sua característica funcional, de assistência técnica, seu poder de fogo é restrito, até hoje, frente a instituições financeiras poderosas como são os bancos em geral 6. Essas características desfavoráveis se exacerbam com a crise nos anos 80, mas não são a causa da crise.
A "recomposição" vai se dar do final dos anos 90 em diante, quando a realidade objetiva já havia mudado radicalmente e, na arena internacional, a palavra de ordem era "harmonização", por orientação explícita da direção geral da Organização das Nações Unidas: se por um lado, o Banco Mundial e outras organizações privadas eram (e continuam sendo) os principais financiadores de muitas instituições e organizações internacionais, incluídas a OPAS/OMS, a nova realidade exigia "trabalho conjunto, colaboração e não enfrentamento", pois as "bandeiras comuns" justificavam as associações. A da eqüidade era uma delas: mal definida conceitualmente e de difícil operacionalização, a sua adoção, como princípio, era completamente inócua ou vazia de significado, pois possibilitava a construção de consenso entre distintas correntes político-ideológicas e, como recurso de retórica, servia a distintos espectros ideológicos. Mesmo assim, a discussão da eqüidade em saúde e nos serviços de saúde teve um desenvolvimento sem precedentes, com desdobramentos até hoje.
Não é por acaso que a década de 90 é uma época de grandes conferências mundiais (meio ambiente, população, mulheres); e tampouco é por acaso que Durban, África do Sul, sedia em 2001, dez anos depois do fim do apartheid, a III Conferência Mundial contra "a intolerância" de qualquer tipo. Não é por acaso também que, no meado dos anos 90, a OPAS se engaja juntamente com outras organizações regionais na discussão do "desenvolvimento com eqüidade" e abraça a "luta contra a pobreza e a exclusão", associadas à raça, etnia etc. Era por aí que caminhavam "os termos do debate" naquele momento, e continuam até hoje (mas isto é outra discussão!).
A associação entre "saúde comunitária e populações indígenas" é histórica na OPAS, mas tinha uma perspectiva muito particular, e embora se tenha tentado colocá-la como background institucional relevante para a nova conjuntura, na realidade era uma visão que não dava conta da questão da pobreza e exclusão tal como colocadas naquele momento. Não é etnia, mas sim raça, gênero, entre outras, as variáveis que vão ser introduzidas nas discussões sobre eqüidade em saúde e nos serviços de saúde, para além das tradicionais - renda, idade, escolaridade etc. - e que vão constituir desafio teórico e operacional importante, até hoje não completamente superado.
Enfim, o tema é importante e é muito bem-vinda a publicação desse texto, mas senti falta de um mergulho mais profundo nessa discussão, embasado por um levantamento bibliográfico mais amplo e de maior vigor histórico e explicativo. As "evidências" apresentadas soam frágeis frente à magnitude da mudança que repercute até hoje no trabalho da organização.
1. Anderson P. Balanço do neoliberalismo. In: Sader E, Gentili P, organizadores. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1995. p. 9-23.
2. Skocpol T. Strategies of analysis in current research. In: Evans P, Rueschemeyer D, Skocpol T, editors. Bringing the state back in. Cambridge: Cambridge University Press; 1985. p. 3-37.
3. Hobsbawm EJ. A era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras; 1996.
4. Arrighi G. O longo século XX. São Paulo: Editora Unesp; 2006.
5. Melo MA, Costa NR. Desenvolvimento sustentável, ajuste estrutural e política social: as estratégias da OMS/OPS e do Banco Mundial para a atenção à saúde. Planej Polít Públicas 1994; 11:50-108.
6. Walt G. Health policy. An introduction to process and power. Johannesburg/New Jersey/London: Witwatersrand University Press; 1994.