RESENHAS BOOK REVIEWS
Sandra Caponi
Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
O corpo e seus senhores. homem, mercado e ciência: sujeitos em disputa pela posse do corpo e mente humana. Lefevre F, Lefevre AMC. Rio de Janeiro: Vieira & Lent; 2009. 96 p.
ISBN: 978-85-88782-63-I
A mediação técnica na construção reflexiva do eu.
O livro de Fernando Lefevre e Ana Maria Cavalcanti Lefevre, O Corpo e seus Senhores. Homem, Mercado e Ciência: Sujeitos em Disputa pela Posse do Corpo e Mente Humana, aborda uma temática instigante referida ao modo como se articulam nossos sofrimentos, sejam físicos ou não, com o conhecimento técnico-científico dos especialistas e com a lógica do mercado. Trata-se, sem dúvida, de uma articulação complexa que envolve desejos, interesses, perdas e benefícios.
Os autores utilizam referências provenientes dos mais diversos espaços teóricos para discutir as alianças que, no campo da saúde, estabeleceriam esses "senhores" representados por três figuras: o homem, o mercado e a ciência.
O primeiro capítulo, dos seis que constituem o texto, está dedicado a tematizar a complexidade desse campo social hibrido que os autores denominam "saúde-doença". Esse espaço estaria constituído pela interação entre os especialistas e os leigos. Uma peculiar relação, muitas vezes mediada pelo mercado, entre o conhecimento científico e as necessidades dos usuários. Esse campo estaria percorrido, na modernidade tardia, pela lógica de consumo: "o homem foi aprendendo ao longo de sua historia a impor a si mesmo a lei de que a satisfação de todas suas necessidades só pode se dar por um comportamento clássico de consumo". A consolidação das sociedades dominadas pelo consumo teria levado não somente aos processos de medicalização denunciados por Foucault ou Illich, mas também a esses fenômenos identificados no texto como "processos de quimificação e nutrientificação". Com esses conceitos se faz referência ao uso crescente de medicamentos para sofrimentos psíquicos e à obsessão pelos regimes saudáveis.
Os autores destacam que a construção reflexiva de nossa identidade está mediada por um dilúvio de informações que invadem o cotidiano com promessas de prevenção e cura. Porém, não exploram suficientemente as conseqüências que essas referências a dietas miraculosas e medicamentos considerados balas mágicas têm em nossa sociedade do risco e do medo. Uma análise crítica à sociedade do risco 1,2,3,4 poderia limitar o impacto que o mercado e a técnica têm na construção de nossa identidade e na gestão de nossa saúde.
O segundo e terceiro capítulos referem-se às estratégias de poder que atravessam o campo assimétrico da saúde/doença. Ali se problematiza a relação médico/paciente a partir dos conflitos entre profissionais e leigos. Uma primeira questão analisada é a assimetria de poder entre especialistas e usuários. Os autores destacam que o processo saúde/doença deve permanecer como objeto científico de estudo e intervenção profissional, mas reconhecem que se trata de atributos de sujeitos humanos. O texto rejeita a lógica imperialista do conhecimento científico, que tem a tendência a reduzir todas as coisas que fazem parte dos assuntos humanos à esfera da ciência a da tecnologia. Privilegiam, pelo contrário, estratégias de promoção da saúde que permitam a interação entre a técnica e o cotidiano, possibilitando a interação entre os três pontos de vista que convergem no espaço da saúde e da doença: o ponto de vista dos indivíduos, o do sistema produtivo e o ponto de vista técnico.
Os capítulos quarto e quinto analisam de que modo seria possível criar espaços de interação com os usuários dos sistemas de saúde, denominados pelos autores "consumidores de bens de saúde". Deixando de lado as objeções a essa escolha, pode-se destacar que o texto aponta, seguindo a Giddens 5, para um novo modo de estabelecer vínculos com os sistemas de conhecimento que se fundamentam no princípio metodológico da dúvida e no abandono das idéias clássicas de autoridade inquestionável. Para isso, algumas estratégias deverão ser postas em jogo, como ocorre quando se procura a opinião de vários especialistas, ou quando se adquirem informações técnicas por outras vias, como a Internet, possibilitando um processo de "empoderamento" dos usuários. Esses fatos poderiam contribuir para reequilibrar as bases que sustentam a relação assimétrica médico/paciente.
O capítulo seis analisa uma questão estratégica para observar de que modo se articulam a técnica, o mercado e a relação conosco mesmos na modernidade tardia. O problema analisado é a medicalização da beleza e o consumo excessivo de cirurgias plásticas por adolescentes. Por tratar-se de adolescentes, os autores apontam para a vulnerabilidade do grupo, ainda que considerem que eles possuem suficiente esclarecimento para tomar decisões próprias. No entanto, consideram que "essa é a face perversa da autonomia, do autogerenciamento dos corpos e mentes por seus donos". Essa afirmação parece contradizer outras idéias defendidas no texto, pois, de fato, é contraditório falar de uma face perversa da autonomia. A autonomia, isto é, governo de nós mesmos, é o que nos torna humanos, sujeitos capazes de reflexão e decisão. Quiçá, uma via mais frutífera de análises teria sido imaginar que essas adolescentes, abusando de cirurgias que podem afetar sua saúde, tomaram decisões não autônomas. Ações decorrentes das exigências heterônomas impostas pelos modos de sociabilização que as conduziram à aceitação passiva de demandas externas.
Por fim, o livro conclui com a seguinte afirmação: "cada um dos três senhores não pode, sozinho, ganhar a disputa pelo corpo. Se o vencedor fosse o homem, abandonado pela cultura, ou seja, pela ciência e a tecnologia, não sobreviveria a mais simples das enfermidades. Da mesma forma, a vitória isolada da ciência e da tecnologia conduziria à morte do corpo e mente como 'coisas' humanas em favor de algum tipo de simulacro cibernético. Finalmente a vitória do mercado significaria, além da desumanização, também a descaracterização da ciência e da tecnologia". Os autores consideram que uma vitória legítima seria a realização de um pacto entre os atores (ou senhores) envolvidos na "posse do corpo e mente humana".
No entanto, seria possível imaginar outras articulações entre esses atores. Afirmar, por exemplo, que no processo saúde/doença, cada um de nós é o ator principal. Que saúde e doença são fatos essencialmente humanos e condição para a construção reflexiva do eu, referenciada no livro. O reconhecimento de cada um de nós, como sujeito que sofre e demanda auxílio, certamente precisará da mediação dos conhecimentos científico-técnicos da biomedicina. Nesse caso, um bom médico será aquele que, como afirma Canguilhem 6, possa auxiliar-nos na tarefa de dar um sentido, que para nós não é evidente, a esse conjunto de sintomas que de modo solitário não podemos decifrar. Aquele que, fazendo uso dos conhecimentos à sua disposição, aceite ser um exegeta, um tradutor, mais que um conhecedor. Em outra leitura possível, o mercado ocupará também o lugar de um ator secundário, ou melhor, de um ator substituto. Uma figura que teremos de aceitar até que possamos criar outros vínculos, mais solidários e legítimos, capazes de deslocar a lógica do consumo do âmbito da saúde, instaurando estratégias realmente universais e eqüitativas.
1. Bauman Z. Miedo liquido. México DF: Paidós; 2006.
2. Castel R. L'insegurité sociale. Qu'est-ce qu'etre protegé? Paris: Seuil; 2003.
3. Giddens A. Risk society: the context of British politics. In: Franklin J, editor. The politics of risk society. Cambridge: Polity Press; 1998. p. 23-43.
4. Castiel LD, Álvarez-Dardet C. A saúde persecutória e os limites da responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.
5. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2002.
6. Canguilhem G. Le normal et le pathologique. Paris: PUF; 1990.