RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Claudia Abbês Baêta Neves

Programa de Pós-graduação em Estudos da Subjetividade, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. abbes@luma.ind.br

 

 

MANUAL DE PRÁTICAS DA ATENÇÃO BÁSICA. SAÚDE AMPLIADA E COMPARTILHADA. Campos GWS, Guerrero AVP, organizadores. 2ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2010. 411 pp.

ISBN: 978-85-60438-78-5

De quando trabalhar na atenção básica implica afirmar a complexidade e os desafios como matéria-força do trabalho em saúde

"Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem 'faça comigo' e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo" 1 (p. 54).

O livro Manual de Práticas da Atenção Básica. Saúde Ampliada e Compartilhada, organizado por Campos & Guerrero, na segunda edição, expressa e dá visibilidade à "alta complexidade" que envolve a construção efetiva de políticas públicas de gestão e de trabalho em saúde na Atenção Básica. Alta complexidade que não se traduz pelo uso de tecnologias (maquinárias e saberes hiperespecializados) de alto custo financeiro. Mas, pela "lida" cotidiana com uma miríade de interferências e processos paradoxais que atravessam as ações cujo foco de cuidado é "o território (...) e a vida que o anima" 2 (p. 26). Nessa lida, nos vemos convocados ao cultivo de um modo de fazer os processos de produção de saúde que desestabilize os limites identitários das disciplinas/saberes, produzindo um atravessamento dos mesmos. Pois, não se trata de uma dimensão apenas técnica, mas acima de tudo ético-política.

O trabalho em saúde no/com/sobre o território e suas redes existenciais/políticas/locais, formais e/ou informais, requer uma atenção inclusiva ao que nele, através dele e por ele, pulsa na heterogeneidade de seus movimentos. Nessa compreensão, o território é, ao mesmo tempo, campo de formalizações de políticas extensivas que se querem universalizantes, científicas, programáticas, protocolares, normativas, redutoras de danos e riscos para o corpo orgânico, os sujeitos e seus modos de vida, indissociado de um plano intensivo que lhe é constituinte. O plano da vida como forças em constante processo de mutação, produção imanente nas surpresas das relações heterogêneas em meio as quais, nos diferentes encontros, a vida flui e "cava saídas em meio à proliferação de intoleráveis" 3 (p. 508). Pois, a vida não se compõe apenas de biologia, fisiologia, natureza e subjetividade como campos que se relacionam guardando suas delimitações, mas num plano de proliferação, de relações de forças que, em suas criações e recriações, traçam na molecularização de formas, funções e organizações, outras composições que podem reforçar estas formas e organizações ou recriá-las 4.

Assim, tomarmos a vida e o território como "objeto" de cuidado a partir de "...um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos (...) responsabilidade sanitária de técnicos que têm como função primordial o tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável" 5 implica perceber que a complexidade e o desafio de nossas interferências se fazem em meio aos tensionamentos/efeitos do jogo de forças que se produzem entre formas e forças. Ou seja, interferimos num complexo jogo de poderes, entendendo que poder implica sempre correlações plurais de forças 6.

Sabemos que as transformações esperadas com a reforma sanitária, a institucionalização do SUS, a criação de equipes de saúde da família e outros arranjos/dispositivos, não pressupõem uma mudança automática nas práticas de cuidado em saúde. A experimentação da Estratégia Saúde da Família no Brasil, em mais de vinte anos, tem possibilitado importantes avanços do ponto de vista da ampliação do acesso, qualificação do cuidado, reconfiguração das demandas por serviços, dos modos de produzir cuidado em saúde no território, dos tensionamentos produzidos nos processos de formação em saúde calcados numa lógica biomédica e centrada nas especialidades. Entretanto, nos vemos ainda muito distantes de termos a atenção básica como ethos na estratégia de (re)organização da rede de cuidados, funções e ações no sistema de saúde 7. A baixa cobertura e eficácia da rede de atenção básica, o baixo grau de articulação entre os diferentes níveis de atenção, a insuficiência dos financiamentos, a ausência de investimentos numa política de pessoal que diminua a rotatividade de proûssionais nas equipes e atue na desprecarização vigente das formas de contratação e dos regimes de trabalho, persistem e compõem os desafios do trabalho na atenção básica 7,8.

Na prática, a implementação de novas políticas de saúde se produz, paradoxalmente, de forma contínua e desviante nos processos cotidianos de gestão/trabalho/cuidado em saúde, e requer o uso de uma tecnologia bastante complexa e "porosa" aos tensionamentos advindos da variedade e singularidade de situações com as quais que se depara. A produção do próprio território sanitário, em sua complexa variedade de determinantes e funcionamentos híbridos, pré e/ou pós-SUS, envolvem, produzem e tensionam os processos de gestão, produção e promoção em saúde instituídos, demandando dos diferentes sujeitos envolvidos nestes processos o exercício de uma prática inventiva que implica abertura e atenção aos modos singulares de vida/trabalho que movimentam e se forjam no território.

Construir política pública de saúde envolve experimentar como campo problemático os modos nos quais, em suas formas e intensividades, a integralidade da vida humana se dá. Tudo isso impõe níveis de tensionamentos constantes nas práticas e políticas instituídas (formas) entre trabalhadores/gestores/usuários/rede social que experimentam em ato, nos diferentes encontros, o plano instituinte (forças) que também compõe e atravessa os processos de produção da realidade. Há que se pensar, sobretudo, na produção de uma outra territorialidade construída nas relações, nos indagando sobre o modo como habitamos o território e como, de fato, o produzimos.

Destaco, entre os muitos desafios, a produção de processos de gestão do cuidado num contexto contemporâneo que se caracteriza por uma nova relação de (des)regulamentação entre o poder e a vida 9. O biopoder, em suas estratégias de expansão e acumulação do capital, otimiza estados de vida que ele submete, se pluga nos processos de cuidado e gestão incitando, conjugando, modulando equilíbrios e médias que visam a abstrair a vida, extraindo dela sua heterogeneidade e singularização, para torná-la matéria integral de regulamentação. Como em nossas ações e dispositivos inventivos em saúde não tornarmos a vida uma "funcionária-submissa" e refém de prescrições, subjetivismos psicológicos, programas de saúde, médias e padrões de conduta instituídos? Que estratégias/resistências os profissionais e usuários do SUS têm inventado no cotidiano de suas ações?

Poderíamos afirmar que nossas interferências em saúde se dão como experiência-limite neste misto, em meio aos condicionantes que reconhecemos e objetivamos como modos-sujeito, sintomas, danos, risco, vulnerabilidade, doença, saúde etc e as surpresas das composições variáveis e relações heterogêneas nas quais a vida flui e afirma as múltiplas conexões que nos envolvem 10.

É nessa direção que a complexidade é, aqui, afirmada, como matéria constituinte das práticas que se voltam para o enfrentamento dos desafios e tensionamentos cotidianos em meio aos quais se tecem as políticas de formação, gestão, produção e promoção em saúde no território. Assim pensada, a complexidade dos desafios a serem enfrentados não é signo de impedimentos, mas a matéria viva em meio a qual se produz/promove o trabalho em saúde na Atenção Básica.

É nesse fio da navalha, por entre formas e forças, que os autores desta importante produção bibliográfica dedicada ao trabalho na Atenção Básica ousam inventar e assumir em suas experimentações o caráter propositivo de (re)arranjos sistêmicos, de gestão e dispositivos clínico-institucionais para ativação do caráter instituinte do sistema único de saúde. Assim, dispositivos de gestão compartilhada, estratégias de cogestão na clínica, confecção de agendas, ações de planejamento e trabalho grupal com as equipes, contratos de gestão na Atenção Básica são propostos visando a interferir na produção e promoção de outra realidade político-sanitária para as ações em saúde na atenção básica brasileira.

Os 17 capítulos que compõem o livro têm sua emergência e proveniência nas experiências e problematizações construídas por professores-pesquisadores e trabalhadores-gestores de serviços de saúde, que participaram do Curso de Especialização em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde com ênfase na Atenção Básica, oferecido pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) a diversos municípios brasileiros nos anos 2007 e 2008.

Utilizando os dispositivos do Método da Roda (Apoio Paidéia), desenvolvido por Campos 11, o curso teve como aposta político-metodológica a indissociabilidade entre processos de formação e intervenção nos movimentos do real. Por meio da disseminação-oferta-experimentação, em ato, dos dispositivos de Apoio Paidéia na formação de gestores, trabalhadores e apoiadores em saúde, visou-se ao exercício da cogestão no cotidiano das práticas de coordenação, planejamento, supervisão e avaliação.

Os diferentes textos, construídos em parcerias e reflexões-solo entre os participantes do curso, foram compostos com base em três grandes linhas de discussão-intervenção, quais sejam: Formação em Saúde, Modos de Gestão como dispositivos produtores de Cuidado em Saúde, e as Implicações entre produção de sujeitos e a ampliação da Clínica. Essas linhas se atravessam, se cortam e produzem nos diferentes textos desenhos interventivos-reflexivos singulares oriundos da experimentação de dispositivos cogestivos nos trabalhos de Apoio Institucional, com Equipes de Referência, Apoio Matricial, Projeto Terapêutico Singular, Processos cogestivos na Prática Clínica, Trabalho em equipe na Estratégia Saúde da Família, Arranjos organizativos sistêmicos, assistenciais e de planejamento no cotidiano de trabalho em saúde na Atenção Básica. Contudo, os textos, em suas heterogeneidades, compartilham de uma aposta comum, qual seja: a de que o cotidiano é o lócus em potência de transformação das práticas, pois que é sobre ele, e com ele, que os diferentes sujeitos (re)inventam e afirmam processos de autonomia em seus modos de vida-trabalho.

Produções de diferentes campos teórico-político-metodológicos são convocados, urdindo um plano interdisciplinar que dá consistência às reflexões-intervenções em estreito diálogo com as análises macro e micropolíticas da reforma sanitária e seu processo de construção e consolidação no Brasil. Assim, produções dos campos da Saúde Coletiva afins à leitura marxista da reforma sanitária (Merhy, Campos, Ceccin, Starfield, Rosen, Cohn, Paim, Cecílio, entre outros) da Psicologia dos grupos afins à Psicanálise - mais notadamente do movimento da Psicoterapia Institucional e Psicologia Institucional Argentina (Pichon-Rivière, Bleger, Rodrigué, Onocko, Balint, Bion) -, do campo do trabalho gerencial-organizacional (Matus, Tancredi, Cecílio, Testa) e do campo da geografia política (Milton Santos) são convocados para intervir/pensar a complexidade e os desafios dos processos de trabalho em saúde junto aos trabalhadores/usuários/gestores/equipes de saúde da família/rede assistencial e agentes comunitários de saúde.

Esta importante e necessária produção bibliográfica dedicada ao trabalho na Atenção Básica é a expressão "do que pode" uma efetiva, criativa e potente parceria entre universidade e serviços de saúde quando construída em consonância com os desafios cotidianos do trabalho em saúde, oriundos dos territórios-vivos nos quais se constroem e se produzem as políticas e seus modos de vida/trabalho.

O convite que se tece por entre os diferentes textos dos autores é a construção de uma prática de gestão indissociada da prática sanitária e de uma clínica "reflexiva, compartilhada com os usuários e com base em uma concepção ampliada do processo saúde/doença" (p. 16).

Acolher esse convite implica cartografar o "território" de intervenção em meio ao qual nos movimentamos na produção de nossas ações em saúde, o que exige de nós um outro olhar e inflexão sobre os conceitos/dispositivos que produzimos e os usos que deles fazemos. O que temos cogerido por meio de nossos dispositivos? Que alianças com os dispositivos gerenciais de parceria público-privada temos feito "em nome" de viabilizar economicamente e gerencialmente a universalização do SUS? Quais têm sido os seus efeitos no cotidiano de produção do trabalho em saúde e de seus trabalhadores? O que envolve fazer clínica por entre ações de cuidado e controle da população e seus modos de vida? Que tipo de vida potencializamos em nossos modos de cuidar?

É em meio a esse plano de indagações que construímos nossas práticas e apostas. Pois, ao nos fazermos atentos para as multiplicidades dos problemas em pauta, temos o desassossego necessário para uma desaceleração dos imediatismos de resposta, dos decretos fatalísticos e da busca de universais.

É nessa compreensão que a complexidade e os desafios constitutivos da realidade do trabalho na atenção básica são afirmados como matéria-força de reinvenção e ativação de modos de vida/trabalho comprometidos com a produção de vidas potentes e autônomas.

 

1. Deleuze G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1988.         

2. Santos M. Metamorfose do espaço habitado. São Paulo: Editora Hucitec; 1996.         

3. Neves CAB, Massaro A. Biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Interface Comun Saúde Educ 2009; 13 Suppl 1:503-14.         

4. Neves CAB. Que vida queremos afirmar na construção de uma política de humanização nas práticas do SUS? Interface Comun Saúde Educ 2009; 13 Suppl 1:781-4.         

5. Ministério da Saúde. Portaria nº. 648/GM, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0648_28_03_2006.html (acessado em 13/Fev/2010).         

6. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979.         

7. Pasche DF. Contribuições da política de humanização da saúde para o fortalecimento da atenção básica. In: Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. p. 11-28. (Série B. Textos Básicos de Saúde) (Cadernos HumanizaSUS, 2).         

8. Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desaûo para o público. São Paulo: Editora Hucitec; 1997. p. 229-66.         

9. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora Martins Fontes; 1999.         

10. Orlandi LBL. A respeito de confiança e desconfiança. In: Franco TB, Ramos VC, organizadores. Semiótica afecção & cuidado em saúde. v. 1. São Paulo: Editora Hucitec; 2010. p. 17-34.         

11. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Editora Hucitec; 2000.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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