RESENHAS BOOK REVIEWS
Luiza Garnelo
Centro de Pesquisas Leônidas & Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz, Manaus, Brasil. Centro Universitário Nilton Lins, Manaus, Brasil. luiza.garnelo@amazonia.fiocruz.br
CORTE A MORTALHA: O CÁLCULO HUMANO DA MORTE INFANTIL NO CEARÁ. Nations M. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. 192p.
ISBN: 978-85-7541-181-0
O lançamento do livro de Marilyn Nations é um evento a ser comemorado, já que expõe ao público brasileiro um conjunto de artigos, publicados em importantes periódicos internacionais no final da década de 1980, que deixaram sua marca no campo da antropologia médica. Vinte anos depois, a publicação em língua portuguesa pelo selo da Editora Fiocruz, mostra que os escritos de Nations guardam o frescor e o fascínio que garantem uma boa leitura e mantêm a capacidade de prender o interesse do leitor.
Os quatro artigos que compõem o livro expressam formas diferentes de acercar o sofrimento de mães que perderam seus filhos e a brutal miséria obscurecida pelas estatísticas de mortalidade infantil. Além disso, traduzem o firme compromisso da autora e seus colaboradores em amenizar os efeitos da iniquidade social que ano após ano se perpetua em nosso país.
Para fazer a devida justiça a esta obra é preciso olhá-la numa perspectiva histórica, a fim de recuperar, para os leitores mais jovens, ou menos entrosados com o campo da antropologia médica, a magnitude de duas grandes polêmicas que envolveram a publicação dos artigos que deram origem ao livro que ora resenhamos, que recebeu, nesta edição, o título de Corte a Mortalha: O Cálculo Humano da Morte Infantil no Ceará.
A primeira dessas polêmicas remete à metade da década de 1980, quando Nancy Scheper-Hughes, então professora da Universidade da Califórnia, empreendeu uma pesquisa no nordeste brasileiro, a qual resultou no livro Death Without Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil 1, secundado por um conjunto de artigos de teor similar. O trabalho de Scheper-Hughes, que obteve bastante notoriedade no campo da antropologia médica americana, sustentava como tese principal a existência de uma atitude de "negligência seletiva" por parte de mães pernambucanas, interpretada por Scheper-Hughes como uma resposta sociocultural de indiferença, frente à elevada mortalidade de crianças naquela região. Os artigos originais de Nations, particularmente os que despontam como os capítulos um e dois do livro aqui resenhado, trazem a marca dessa polêmica, pois foram, em grande medida, produzidos com o fito de desvendar os sentimentos dolorosos das mães cearenses pela perda de seus bebês e de refutar a imagem de descuido e de insensibilidade que brotava das páginas de Scheper-Hughes. Bem canalizada, a indignação de Nations com as conclusões de Scheper-Hughes logrou desvendar os significados profundos subjacentes aos comportamentos e atitudes frente à morte, em ambientes de extrema pobreza no Ceará e demonstrar, de forma irrefutável, o rico universo de simbolismo, de dor e de consolação que cercavam as mortes de crianças entre suas informantes, contestando, por meio da contundência dos dados, as teses de Scheper-Hughes.
Se ao leitor de hoje o recorrente contraponto da apresentação dos dados de Nations e colaboradores às teses de Scheper-Hughes pode parecer um tanto cansativo, é preciso fazer justiça histórica e perceber adequadamente o contexto em que a obra foi produzida, valorizando devidamente a insurgência das autoras contra o status quo da antropologia médica da época e a refutação de uma imagem etnocêntrica e preconceituosa sobre as mães pobres do nordeste brasileiro. Olhada em retrospectiva, a polêmica travada por Nations, a qual marcou indelevelmente a formulação de seus artigos, também expressa uma corajosa opção política, ao questionar o saber científico e valorizar a coerência dos saberes populares sobre a diarréia e a morte infantil.
A segunda polêmica, que envolve parte dos artigos originais, remete a um embate com o aparato biomédico, que é, tanto quanto nos foi possível perceber na leitura prévia de outros artigos de Nations, uma questão sempre presente no cenário de preocupações da autora. Essa temática em particular, que surge de modo mais evidente nos capítulos três e quatro da obra, está ligada à busca de legitimar o conhecimento popular, mediante a demonstração de sua coerência interna e de sua sensibilidade para apreender eventos vitais que ocorrem entre os excluídos, em contraponto ao aparato oficial, incapaz de perscrutar a vida que pulsa sob os procedimentos burocráticos do sistema de saúde. No capítulo três, o mote da autora é a validação das concepções populares sobre a diarréia crônica em crianças, que geram explicações totalizantes, em contraste com os limites da explicação unicausal da biomedicina. O tema ganha maior ressonância no capítulo quatro, que problematiza o poder médico exercido sobre mães pobres e analfabetas atendidas nos serviços de saúde, potencializado pela ritualização desnecessária do uso da Terapia de Rehidratação Oral (TRO), quando seu uso se iniciava no Brasil.
O uso rotineiro e inconteste da TRO nos serviços de saúde nos dias de hoje, não nos permite entrever o passado de dúvida e de ceticismo médico sobre a eficácia de um recurso tão simples e barato, no combate a um dos agravos mais relevantes no perfil mórbido da infância. Tal como ocorreu com outras técnicas de Atenção Primária à Saúde, a TRO somente recebeu credibilidade após exaustivas comprovações estatísticas de seu impacto positivo na redução da mortalidade infantil.
Em nosso país, o trabalho pioneiro de Nations, conduzido através de uma articulação inovadora entre pesquisa, ação social e sensibilidade cultural, foi um elemento chave para questionar os paradigmas biomédicos então vigentes e para demonstrar as potencialidades da disseminação desse recurso entre mães e terapeutas populares. Dessa forma, a atuação decisiva de seu grupo contribuiu significativamente para a redução das taxas de mortalidade infantil no Ceará.
Essa retrospectiva sobre a pesquisa de Nations nos dá a justa medida do difícil cenário em que o trabalho foi conduzido, bem como sobre as consequências positivas de sua influência, tanto no âmbito acadêmico quanto no perfil de saúde da população.
Porém, a avaliação da obra exige também uma análise diacrônica de seu conteúdo, quando então nos deparamos com uma bela e sensível etnografia, que tem o poder de nos transportar no tempo e no espaço, levando-nos a partilhar a vida sofrida e heróica dessas famílias anônimas e de seus terapeutas populares. A clareza simples e objetiva da escrita a torna acessível a qualquer leitor, sem que haja qualquer prejuízo da consistência teórica que sustenta a etnografia. Nela, a autora consegue a proeza de mesclar harmoniosamente o diálogo com a literatura e o registro cuidadoso dos casos estudados, que fluem, um após outro, numa sequência de relatos bem-ordenados. Além do prazer da leitura, as características do livro o tornam bastante acessível ao uso no ensino médico, podendo, quiçá, se transformar em mais uma ferramenta que contribua para o - tão necessário - redimensionamento dos processos de trabalho na medicina e na atenção primária como um todo, na busca da desejada, e nunca alcançada, integralidade da atenção.
Um dos méritos principais de uma etnografia é sua capacidade de desvendar a lógica interna do pensamento dos sujeitos, expondo suas razões e interpretações sobre os eventos nela tratados. No primeiro capítulo do livro as autoras empreendem a tarefa de desvendar o intrincado mosaico dos conhecimentos populares estruturados em torno da diarréia, caracterizando algo que, muitos anos depois, seria conceituado por Eduardo Menéndez como um sistema de autoatenção. Elas demonstram uma capacidade ímpar de produzir diagnósticos precisos e totalizantes, não apenas das diarréias que matam as crianças, mas também daquilo que hoje chamaríamos de condições de vida, algo que já estava devidamente apontado, sob outras designações, pelos terapeutas populares mobilizados por Nations. Outro mérito do capítulo é a demonstração cabal da coerência socioafetiva que rege a expressão discreta do luto das mães, a qual recobre os sentimentos de perda e de superação, sendo esta, imprescindível à retomada da dura vida que as espera após o enterro de suas crianças.
Exercício semelhante aparece no capítulo dois, ao qual se agrega a discussão sobre os cemitérios clandestinos que esperam os filhos das famílias incapacitadas de fazer frente às pesadas despesas que a morte acarreta. É tocante a descrição das salvaguardas religiosas, dos ritos destinados a proteger o trajeto dos "anjos", mortos antes do batismo e duplamente vitimados: pela burocracia oficial, que lhes nega acesso à notificação oficial do óbito e pela burocracia eclesiástica que ao recusar-lhes um lugar no cemitério, também bloqueia um atalho através do qual os pequenos pagãos poderiam alcançar o paraíso.
No terceiro capítulo o elemento central é a caracterização da chamada "doença de criança". Ainda que presente em todos os capítulos do livro, aqui, a minuciosa exploração das nuances desse polissêmico diagnóstico popular torna-se o ponto alto da obra, evidenciando a riqueza da capacidade explicativa e totalizante das produções culturais sobre o processo saúde/doença. Além da beleza do estilo, o texto nos leva a refletir sobre os avanços da saúde coletiva no Brasil, expressos hoje em conceitos como o de vulnerabilidade, que é, exatamente, o que podemos apreender nas entrelinhas dos relatos de casos e nos trechos transcritos das entrevistas coletadas junto aos participantes da pesquisa.
Cabe lembrar também que apesar dos esforços dos sanitaristas para promover tais avanços, mesmo em tempos do Programa Saúde da Família, voltados justamente para garantir o acesso de populações como as descritas por Nations ao sistema de saúde, muito há ainda a ser feito para que os profissionais de saúde sejam capazes de compreender os pontos de vista das famílias atendidas e de relativizar o etnocentrismo de suas práticas sanitárias. A nosso ver, nesse capítulo mostra-se um pouco pesada - e desnecessária - a insistência da autora em comparar as taxonomias populares às nosologias médicas, buscando encontrar correspondências entre ambas, de modo a demonstrar a racionalidade do sistema médico popular. Isso, porém, não compromete a qualidade da etnografia ali desenvolvida e precisa ser entendida à luz da época em que a pesquisa foi realizada.
O quarto e último capítulo desnuda com crueza os limites do acesso aos serviços de saúde e a violência do atendimento médico à criança com diarréia, ao lado da objetificação da mãe cuidadora, reduzida à mudez e à imobilidade impotente por profissionais endurecidos e indiferentes ao drama das famílias que atendem cotidianamente. O contraste entre o atendimento asséptico e frio dos serviços de saúde e a calorosa cumplicidade do acolhimento feito pelo terapeuta popular tornam ainda mais gritante a inadequação das práticas biomédicas. Trata-se de uma realidade que consideramos recorrente, reproduzindo-se cotidianamente - salvo raras e honrosas exceções - pelo Brasil afora, intocada pelos esforços de humanização e de melhoria no acolhimento da população nas unidades de saúde.
A obra de Nations tem, como dissemos, o grande mérito de unir reflexão teórica e prática social; de conjugar a justa indignação frente ao despotismo técnico à capacidade de descrever realidades sociais marcadas pela dor, o sofrimento e a morte que, nós, profissionais de saúde, nos comprometemos em evitar. Deixa também imortalizadas as trajetórias daqueles seres cujas vidas são devassadas pelo nosso olhar e que exercitam nossa compaixão e empatia por pessoas atingidas por males evitáveis, que a teoria chama de iniquidades em saúde, e que a etnografia de Nations chama de Raimundas, Corinas, Liduínas e muitas outras.
Por fim, quero chamar a atenção para as expressivas fotos contidas na parte final do volume, que dão faces aos personagens, tornando mais concretas para o leitor as sofridas vidas que povoaram a leitura da obra.
1. Scheper-Hughes N. Death Without Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil. Berkeley: University of California Press; 1993.