EDITORIAL
Saúde materna no Brasil: prioridades e desafios
José Guilherme Cecatti; Mary Angela Parpinelli
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. cecatti@unicamp.br
A Assembleia do Milênio, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano 2000, reconheceu que o mundo conta com tecnologia, recursos, conhecimento e experiência suficientes para enfrentar a maioria dos problemas que impede o "desenvolvimento humano de todos", particularmente daqueles que vivem nos países pobres e em desenvolvimento.
O Brasil é signatário da Declaração do Milênio e o mais recente Relatório Nacional de Acompanhamento das Metas aponta para importantes avanços, particularmente no combate à pobreza extrema e à fome; na redução da mortalidade infantil e no combate a doenças como HIV/AIDS, malária, tuberculose e hanseníase. Contudo, em relação à saúde materna as projeções são desfavoráveis ao cumprimento da meta. Apesar dos avanços, as desigualdades são marcantes. O gênero, a etnia, o local de nascimento e a classe social de um brasileiro ainda são determinantes de suas oportunidades futuras, com repercussões diretas para a saúde da mulher e na razão da mortalidade materna (RMM). De fato, esse é um dos indicadores mais complexos em saúde coletiva e muito sensível em revelar a posição da mulher na sociedade, o acesso e a qualidade dos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Para atingir a meta, o Brasil deverá apresentar RMM igual ou inferior a 35 mortes por 100 mil nascidos vivos (NV), e a projeção realizada de 2008 até 2015 aponta para valores entre 69 e 77 mortes por 100 mil NV. Essa tendência implica a necessária revisão das estratégias de ação.
Existe um aparente paradoxo ao se confrontar a cobertura pré-natal e de parto com a RMM. Dados da PNDS de 2006 revelam que 89% das gestantes realizaram pelo menos quatro consultas de pré-natal, e em 83% dos casos a primeira consulta foi ainda no primeiro trimestre. O parto foi hospitalar em 98% das vezes e em sua grande maioria assistido por profissionais formalmente qualificados - 89% eram médicos. O SUS foi responsável por 76% do total de partos realizados no país, e a RMM estimada para aquele ano foi de 72 mortes por 100 mil NV. Onde então reside o problema? Existem algumas evidências indiretas que apontam para a qualificação dos profissionais e a qualidade da atenção obstétrica prestada, como a incidência de 12 mil casos de sífilis congênita no ano de 2004 e o elevado componente perinatal sobre a mortalidade no primeiro ano de vida.
Estabelecer a melhoria da qualidade da saúde materna a partir da redução da RMM configura-se como uma prioridade e um desafio no Brasil atual. Além da garantia de um sistema estruturado e funcionante nos três níveis de atenção, a primeira grande estratégia é a da adoção e implementação de pacotes de intervenções padronizadas, baseadas em fortes evidências científicas, que sejam reconhecidas pelas instituições de saúde, sociedades e órgãos reguladores, cuja utilização possa ser feita e cobrada por profissionais treinados e competentes. A segunda grande estratégia diz respeito à disseminação do estudo da morbidade materna grave (MMG)/near miss, que tem sido sugerida pelos organismos internacionais como uma abordagem útil para investigar a qualidade dos sistemas de atenção obstétrica, e efetivamente contribuir para a redução da mortalidade materna.
Essa estratégia é capaz de revelar falhas ou demoras na assistência obstétrica e/ou na integração entre os diferentes níveis de atenção. A mulher que passou por uma situação de quase morte e se recuperou, contribui diretamente, quase em tempo real, para a elucidação de "demoras" na sua assistência obstétrica. A identificação desses casos, por um sistema de vigilância prospectiva da MMG/near miss instituído nas maternidades, o que já se demonstrou ser possível em recente experiência brasileira, deverá se confirmar como estratégia profícua para melhorar a saúde materna no Brasil.