Crise financeira europeia e sistemas de saúde: universalidade ameaçada? Tendências das reformas de saúde na Alemanha, Reino Unido e Espanha

Lígia Giovanella Klaus Stegmüller Sobre os autores

Resumo

O artigo analisa tendências de reformas de saúde contemporâneas, em contexto de forte pressão financeira, resultante da crise econômica iniciada em 2008, em países europeus com sistemas nacionais de saúde (modelos bismarckiano e beveridgiano) e discute suas consequências para a universalidade. São analisadas reformas recentes na Espanha, Alemanha e Inglaterra. Para descrição dos sistemas de saúde, utiliza-se matriz comparativa da intervenção estatal no financiamento, regulação, organização e prestação de serviços. O exame das repercussões das reformas sobre a universalidade é realizado com base em três dimensões: amplitude da cobertura populacional; abrangência da cesta de serviços; nível de cobertura por financiamento público. Modelos de proteção em saúde, institucionalidade, constelação de atores e posição na economia europeia diferenciados condicionaram as repercussões das políticas restritivas. Elas afetaram a universalidade nas três dimensões, com distinta intensidade nos países, e aprofundaram políticas prévias de competição regulada e comercialização.

Acesso Universal a Serviços de Saúde; Reforma dos Serviços de Saúde; Política de Saúde


Imersos em sua maior crise econômica após a segunda guerra mundial, comparável àquela dos anos 1930 1,2, os países da União Europeia defrontam-se com importantes pressões financeiras sobre seus sistemas universais de saúde. Seguindo a crise bancária internacional de 2008 desencadeada nos Estados Unidos, decorrente da desregulação do mercado financeiro nas últimas décadas, produziu-se uma crise financeira com recessão generalizada em 2009. Desde então, observa-se uma crise europeia com elevado endividamento e déficits públicos como decorrência da publicização de dívidas privadas bancárias, da elevação e diferenciação dos juros pagos pelos diferentes estados europeus e das medidas de austeridade fiscal 2,3. Os governos europeus socorreram seu sistema financeiro com fundos públicos, transferindo dívidas bancárias privadas para a dívida pública, ao mesmo tempo em que a recessão econômica, com aumento do desemprego, provocou redução de receitas governamentais 2,4. Como resultado desse processo, produziram-se déficits nos orçamentos públicos, levando à denominada “crise da dívida pública”.

Com o objetivo de estabilizar o sistema financeiro europeu, foram acordados um pacto fiscal e um fundo financeiro de estabilização para apoiar os países em crise. Pelo pacto de austeridade fiscal, os países da União Europeia se comprometeram com a redução sustentada de seus déficits e maior disciplina orçamentária para “consolidar” seus orçamentos públicos 1,2. Ao recorrer a empréstimos do fundo de estabilização, os países se submeteram a um programa de austeridade e ajuste que incluiu medidas de reestruturação do mercado de trabalho, sistemas financeiro, tributário, previdenciário e de saúde, acompanhadas de cortes orçamentários sem precedentes em diversos programas sociais 3,5. Nesse processo, organizações internacionais intervêm diretamente nas políticas nacionais de saúde 6.

Este artigo objetiva analisar tendências dos processos contemporâneos de reformas em saúde em contexto de forte pressão financeira, consequente à crise econômica (2008-), em países europeus com sistemas universais de saúde (modelos bismarckiano e beveridgiano) e discutir suas consequências (imediatas e potenciais) para a universalidade. Tomados como casos exemplares, são analisadas as reformas recentes e as principais características dos sistemas de saúde da Espanha, Alemanha e Inglaterra.

A crise afeta os países europeus em diferentes intensidades e modos, condicionados pelo modelo de desenvolvimento capitalista em cada país, o correspondente regime de welfare state, com distintas interações entre políticas de crescimento, instituições do mercado de trabalho e dos setores sociais 2, a correlação de forças políticas e a inserção diferenciada dos países no mercado único europeu. Todavia, ao tomar-se o excessivo endividamento público consequente à crise bancária como causa da crise, a receita única das agências europeias é um programa de austeridade fiscal que afeta as políticas sociais e condiciona as reformas em saúde 5.

Repercussões da crise econômica e das políticas de austeridade fiscal sobre os sistemas de saúde já podem ser observadas. Em 2010, em diversos países europeus, as despesas de saúde per capita diminuíram em termos reais, revertendo a tendência de aumento constante (4,6% ao ano na década anterior) 7,8. A crise econômica tem também impactos sobre o acesso aos serviços de saúde e o estado de saúde da população, observando-se incremento de suicídios, homicídios, transtornos mentais e abuso de drogas, nos países mais afetados 9,10,11.

Metodologia

A análise comparada entre países é um recurso clássico da ciência política, há muito empregada para estudar regimes e instituições. No campo das políticas sociais, permitiu identificar regimes de welfare state como nos estudos clássicos de Titmuss 12 e Esping-Andersen 13. Em políticas públicas, é comum a comparação para fins operativos de estruturas e instituições e, mais recentemente, para conhecer determinantes de performances 14.

Na saúde, a análise em perspectiva comparada de políticas evoluiu nas últimas décadas, afastando-se de simples classificações e ranqueamento do desempenho de sistemas de saúde entre países, vistos cada vez com maior ceticismo 15, para estudos que visam compreender mais profundamente as condições nas quais determinadas mudanças se processam: o que funciona, onde e por que 16.

Estudos de caso seguem sendo a pedra angular da investigação comparativa e a tendência dos comparatistas é a análise intensiva de poucos casos, pois permite a compreensão abrangente do tema em estudo e das múltiplas inter-relações dos fenômenos observados 14,17. Em políticas de saúde, os estudos comparados de maior qualidade são aqueles que analisam poucos casos e examinam uma temática específica a partir de uma estrutura/matriz de análise comum, e/ou uma questão teórica principal 18.

Para o presente estudo, foram selecionados três casos exemplares de países europeus com sistemas de saúde universais: Alemanha, Espanha e Reino Unido. Esses países se distinguem no regime de welfare e organização de seu sistema de atenção à saúde e estão submetidos a diferentes pressões financeiras com a crise europeia. Assemelham-se, no período pré-crise, por elevado desenvolvimento econômico e social com sistema de proteção social ampliado, universalidade da cobertura em saúde com esquemas de financiamento público e participação dos gastos públicos em saúde superiores a 75% dos gastos totais de saúde. Compartilham excelentes indicadores de saúde com situação epidemiológica análoga e enfrentam pressões demográficas e de prevalência de doenças crônicas similares (Tabela 1).

Tabela 1
Características gerais dos países-caso selecionados: Alemanha, Espanha e Reino Unido.

Os casos escolhidos permitem contrastar reformas frente à crise e tendências em países com distintas modalidades de proteção à saúde e organização do sistema de saúde. Entende-se que a diferente institucionalidade setorial e a posição dos países na crise financeira europeia condicionam seus impactos sobre os sistemas nacionais de saúde 18.

Como ferramenta para comparação e descrição analítica dos sistemas de saúde, foi desenvolvida uma matriz de análise que contempla as dimensões da intervenção estatal em saúde conforme sugerido por Immergut 19 e correspondentes categorias: financiamento (participação de diferentes fontes no financiamento, evolução do financiamento público, copagamento, modalidades de alocação de recursos); regulação (do asseguramento, catálogo de serviços e incorporação de tecnologias médicas, relações entre financiadores e prestadores, sistemas de pagamento); e organização e prestação de serviços de saúde, agrupando propriedade dos serviços e emprego em saúde (oferta e organização de atenção ambulatorial primária e especializada, atenção hospitalar, participação e papel de prestadores públicos e privados, modalidades de gestão, vínculos empregatícios, mudanças nas relações público-privadas na prestação de serviços).

O exame das repercussões das reformas sobre a universalidade baseou-se no modelo de análise sugerido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 20 que inclui três dimensões da universalidade, para as quais foram definidas categorias: (i) amplitude da cobertura populacional por esquema público (variações na população coberta e regras de inclusão); (ii) abrangência da cesta de serviços (mudanças no catálogo, medidas de racionamento, variação na oferta) e (iii) nível de cobertura por financiamento público (proporção dos gastos em saúde coberta publicamente, evolução de gastos públicos e mudanças no copagamento).

As fontes de informação e técnicas contemplaram: análise documental de propostas de reforma e legislação (2008-2012), dados secundários do Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) Health Data, de estatísticas da União Europeia e de sistemas de informação de cada país. Para acompanhamento dos atuais processos de reforma, realizou-se revisão da literatura recente, incluindo literatura gris e artigos de imprensa, pois se examinam processos em curso, com descompasso dos tempos para publicação de artigos analíticos em periódicos científicos. Esses são recursos valiosos como fontes adicionais de informação para a análise de processos políticos contemporâneos 21.

Os sistemas nacionais de saúde em perspectiva comparada

Alemanha, Inglaterra e Espanha apresentam regimes de welfare diferenciados 13,22, e na saúde representam duas modalidades principais de intervenção estatal: modelos bismarckiano de seguro social e beveridgiano de serviço nacional de saúde (Tabela 1).

Na Alemanha, a proteção social à saúde é garantida pelo Seguro Social de Doença de afiliação compulsória, dependente da participação no mercado de trabalho e contribuições solidárias de trabalhadores e empregadores proporcionais aos salários 23 e, atualmente, cobre 89% da população. No Reino Unido, o National Health Service (NHS), criado em 1948, de acesso universal com base na cidadania e financiamento fiscal, garante cobertura gratuita a toda população, em estrutura tradicionalmente pública única e centralizada. Foi, todavia, descentralizado em 2004 para os quatro países do Reino Unido e os atuais NHS da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte apresentam distintas peculiarida- des 24. Assim, o caso analisado neste artigo é o NHS da Inglaterra. Na Espanha, após longo período ditatorial, a Constituição promulgada em 1978 definiu o direito universal à atenção à saúde e, em 1986, foi criado o Sistema Nacional de Salud (SNS), um serviço nacional de saúde de financiamento fiscal e acesso universal, descentralizado para as 17 Comunidades Autônomas (esfera estadual) 25,26,27.

Financiamento

O financiamento é predominantemente público com distintas fontes e características nos três países, sintetizadas na Tabela 2. A alocação de recursos apresenta diversas dinâmicas. Na Alemanha, um Fundo de Saúde do Gesetzliche Krankenversicherung (GKV), criado em 2009, reúne todas as contribuições arrecadadas pelas Caixas de Doença e as redistribui segundo um per capita ajustado por risco baseado em idade, sexo e presença de oitenta agravos entre os segurados de cada caixa 28. A alocação entre setores assistenciais decorre de negociações entre caixas e entidades representativas dos prestadores por setor de atenção.

Tabela 2
Características do financiamento dos sistemas nacionais de saúde da Alemanha, Espanha e Inglaterra.

Na Espanha, desde 2002, a responsabilidade pela atenção à saúde foi plenamente transferida para as Comunidades Autônomas (CCAA), e o financiamento da saúde passou a integrar as transferências gerais da União, sem vinculação, calculadas com base em critérios demográficos e serviços públicos a serem cobertos 29.

Na Inglaterra, as transferências para os órgãos desconcentrados do NHS, responsáveis pela contratação de serviços (autoridades de saúde, posteriormente primary care trust – PCT, e desde 2013 clinical comissioning groups – CCG), baseia-se em uma fórmula de “capitação ponderada” para alocação equitativa de recursos: per capita ajustado por fatores demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos e desigualdades em saúde (Tabela 2) 24.

Regulação

As reformas em saúde orientadas para o mercado, nas últimas décadas, colocaram novos desafios à regulação estatal e foram acompanhadas da criação de organismos específicos para tal tarefa 30. A regulação da proteção em saúde e do sistema de saúde nos três países, além dos processos legislativos nacionais, ocorre de distintas formas. Na Alemanha, o processo de tomada de decisão é compartilhado entre organizações corporativas com funções públicas, o governo federal e os 16 estados. A regulação setorial é tradicionalmente de tipo mesocorporativo, segundo o qual o Estado delega a regulação de determinado setor da sociedade aos atores imediatamente envolvidos. Por legislação federal, são definidas as condições estruturais, enquanto as competências para sua materialização são delegadas aos atores corporativos, entidades representativas das Caixas do Seguro Social de Doença e de prestadores com destaque para as Associações de Médicos Credenciados das Caixas (KVen) e a Comissão Federal Conjunta de Caixas, Médicos e Hospitais (G-BA) 31.

Na Inglaterra, tradicionalmente, a regulação do NHS esteve a cargo do Departament of Health que, além de financiar, regulava alocação de recursos e prestação. A partir da constituição do mercado interno, nos anos 1990, uma série de agências independentes com funções específicas na regulação foram criadas e sucessivamente reestruturadas, com destaque para o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), Monitor e Health Quality Commission (CQC) (Tabela 3) 21,30,32.

Tabela 3
Características da regulação dos sistemas nacionais de saúde da Alemanha, Espanha e Inglaterra *.

A regulação do SNS espanhol ocorre especialmente por meio de legislação nacional e estadual, e por órgãos estatais: Ministério da Saúde, o Conselho Interterritorial do SNS, as Consejerias de Salud e Servicios de Salud das 17 CCAA (estados). O Estado (União) por meio do Ministério da Saúde tem por competências estabelecer normas básicas e requisitos para o funcionamento e a coordenação do SNS e garantir equidade. Os 17 Sistemas Regionais de Saúde organizados por CCAA, são autônomos e respondem aos seus parlamentos locais 27.

Nos três países, as garantias de asseguramento e cobertura populacional são reguladas por legislação nacional e a cobertura de serviços é ampla em todos os níveis de atenção. A regulação da incorporação de novos serviços e tecnologias tende a ser realizada por órgãos específicos (Tabela 3).

A regulação das relações entre financiadores e prestadores responde a diferentes mecanismos nos países. Na Alemanha, essas relações são reguladas corporativamente por negociações de contratos coletivos (alguns seletivos) entre as caixas e representações de prestadores, organizados em Associações em cada um dos setores de atenção: de médicos credenciados, dentistas credenciados, hospitais, farmácias, parteiras; e, inclusive diretamente com a indústria farmacêutica.

Na Inglaterra, com a criação do mercado interno e separação de funções entre financiamento e prestação no NHS, organizações de atenção primária assumiram funções de planejamento, contratualização (commissioning) e compra de serviços e passaram a estabelecer contratos com os prestadores de atenção especializada. Tais organizações de atenção primária adquiriram diferentes formas ao longo do tempo: nos anos 1990, alguns GP-Fundholders; entre 2003 e 2012, os PCT agruparam todos os GPs (general practitioners) de determinada área, e a partir de 2013, foram criados os CCG. Atualmente, as relações entre CCGs e outros prestadores são reguladas pela nova autoridade de saúde, o NHS-England, que autoriza, contrata e monitora os grupos de comissionamento clínico, CCG, repassa recursos, comissiona os serviços de atenção primária e parte da atenção especializada de maior complexidade, substituindo as anteriores autoridades estratégicas de saúde. A CQC estabelece padrões e monitora a segurança e a qualidade de serviços. O Monitor licencia prestadores, define preços e regula a competição entre prestadores do NHS 24,33.

Na Espanha, a autoridade de saúde em cada CCAA é a Consejeria de Salud. Responsável pela política de saúde individual e coletiva constitui, regula e planeja o Serviço Autônomo/Regional de Saúde que assume diferentes formas de gestão nas CCAA. Tem como atribuição a prestação de serviços de saúde, o gerenciamento de redes e sua coordenação. A relação entre a Consejeria de Salud (financiador) e o Serviço Autônomo/Regional de Saúde (prestador), e deste com cada gerência de área de saúde é regulada por um contrato-programa: um sistema de gestão por objetivos que estabelece orçamento, modelo de avaliação e incentivos para fortalecer linhas estratégicas 26.

Organização e prestação de serviços

Os modelos de proteção social e de arranjo territorial do Estado em cada país condicionam a organização de seus sistemas de prestação de serviços de saúde. O Seguro Social de Doença alemão não presta serviços diretamente, contratando-os de prestadores públicos ou privados organizados em entidades corporativas, sem regionalização ou territorialização da rede. Nos serviços nacionais de saúde da Inglaterra (unitário) e Espanha (descentralizado para estados), o predomínio é de prestadores próprios com tradição na organização territorial de redes de serviços regionalizada e hierarquizada, com atenção primária forte e médicos generalistas com função de gatekeeper. A Tabela 4 sintetiza as principais características da organização do sistema e da atenção ambulatorial e hospitalar nos três países.

Tabela 4
Características da organização e prestação de serviços nos sistemas nacionais de saúde da Alemanha, Espanha e Inglaterra.

Peculiaridades no setor hospitalar diferenciam os países-caso. Na Alemanha, as caixas estabelecem contratos com cada hospital e remuneram as internações de seus segurados com base em um sistema de pagamento prospectivo, diagnóstico relacionado (DRG adaptado). A quase totalidade dos hospitais existentes na Alemanha é contratada pelo conjunto das caixas com oferta distribuída entre prestadores públicos (49%), filantrópicos (35%) e privados (17%) 28.

No setor hospitalar inglês, os estabelecimentos são predominantemente públicos (95%), ainda que gradualmente tenham assumido formas de gestão com maior autonomia (trusts), e os médicos são empregados assalariados do NHS 24.

Na Espanha, 84% dos leitos em hospitais gerais são públicos, 81% das internações são financiadas pelo SNS e, entre elas, 92% prestadas em hospitais públicos 34. Cada área de saúde, com população entre 200 e 250 mil habitantes, tem pelo menos um hospital geral responsável por internações, atenção especializada ambulatorial e serviço de urgências. A maioria dos hospitais permanece na administração pública direta sob contrato-programa de gestão com o Serviço Regional de Saúde da CCAA 26.

Crise financeira e reformas em saúde

Nas últimas décadas, frente a pressões econômicas, demográficas, epidemiológicas e políticas, os sistemas de saúde dos países europeus passaram por reiteradas reformas. Particularmente durante os anos 1990, acompanhando políticas econômicas neoliberais, foram disseminadas reformas, introduzindo mecanismos de mercado para aumento da competição em sistemas públicos de saúde, com resultados diversos entre países, condicionados pelo legado institucional, tradições de intervenção estatal em saúde, constelação de atores, distribuição de poder, valores 31,35,36,37.

No contexto da crise, os três países estão submetidos a distintas pressões financeiras (Tabela 5) com diferentes repercussões sobre os sistemas de saúde. Espanha, Reino Unido e Alemanha, entraram em recessão em 2009, contudo, sua distinta inserção na economia europeia condicionou o enfrentamento da crise 38,39 e suas consequências para os sistemas nacionais de saúde, apresentadas a seguir, iniciando pela Espanha.

Tabela 5
Indicadores econômicos, Alemanha, Espanha e Reino Unido, 2008-2012.

A Espanha foi um dos países europeus mais fortemente atingido pela crise financeira de 2008. Com modelo de produção de baixa competitividade, moderada desindustrialização após a entrada na União Europeia, crescente dependência econômica do mercado de construção civil e de hipotecas e boom imobiliário que acarretou progressivo endividamento privado, o estouro da bolha imobiliária teve consequências desastrosas: inadimplência generalizada de famílias devedoras, aumento do desemprego e elevação de juros (European Central Bank. Statistical data warehouse 2013. http://sdw.ecb.europa.eu, acessado em 13/Jan/2013) 40,41. Com recessão sustentada, o déficit público mantém-se acima de 10% desde 2009 (Tabela 5).

A Espanha, no contexto de crise, submeteu-se aos ditames de austeridade fiscal definindo importantes cortes de gastos públicos 41. Na saúde, em 2012, uma lei nacional específica, Real Decreto Lei no 16/2012 42, incluiu medidas drásticas: impôs cortes de sete bilhões de euros ao SNS, definiu mudança legal na cobertura populacional, excluindo imigrantes ilegais, alterou a carteira comum de serviços, ampliou co-pagamentos, e incorporou mudanças na regulação da assistência farmacêutica. Os impactos dessa reforma nas dimensões da universalidade estão sumarizados na Tabela 6.

Tabela 6
Impactos das reformas de saúde diante da crise financeira (2008-2012) nas dimensões da universalidade, Alemanha, Espanha e Inglaterra.

Considerada peça de contrarreforma sobre a garantia de um sistema público universal 26,43,44, o Real Decreto Lei no 16/2012 42, ao impor mudança legal na cobertura populacional, rompeu com a cidadania sanitária e definiu uma condição de segurado à Previdência Social em contraposição ao direito universal cidadão e ao espírito da Lei General de Sanidad de 1986 que constituiu o SNS, com quebra de consensos anteriores e um retorno a suas origens bismarckianas, segundo diversos pesquisadores críticos da reforma 26,43,45.

O cenário de cortes no SNS previsto pelo governo conservador é drástico, e os cortes já produziram redução do orçamento médio per capita do SNS de 1.343 para 1.203 euros entre 2010 e 2012 46,47,48. A redução de gastos se produziu sobretudo por meio de cortes em pessoal (redução e congelamento de salários, não substituição, aumento da jornada) e em assistência farmacêutica, dado aumentos no copagamento e novas regras para uso racional 47. Como consequência imediata dos cortes, redução de pessoal e de compra de serviços, aumentaram os tempos de espera para cirurgias eletivas 34.

A pressão sobre as CCAA para implementar os cortes é crescente, mas as respostas das CCAA são distintas, dependendo dos governos: cinco CCAA entraram com recurso de inconstitucionalidade contra o Real Decreto Lei no 16/2012 e continuaram a atender aos imigrantes, com implementação diferenciada da legislação 43.

No Reino Unido, por conta da grande importância do setor financeiro, a crise bancária de 2008 teve consequências graves para a economia britânica. O Reino Unido apresentou recessão com redução do PIB em 2009, baixo crescimento nos anos posteriores, forte aumento da dívida pública (92%) e do déficit público que alcançou, em 2009, -11,5% do PIB, mesmo com juros mantidos baixos (European Central Bank. Statistical data warehouse 2013. http://sdw.ecb.europa.eu, acessado em 13/Jan/2013. European Comission. Eurostat: statistics. http://epp.euros tat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/search_database, acessado em 22/Jan/2014) (Tabela 5). A elevada dependência do setor financeiro e do endividamento privado na crise obrigou o governo britânico a enfrentar o duplo desafio de redução das receitas provenientes do setor financeiro e simultaneamente a necessidade de injetar recursos públicos nesse setor para evitar um colapso bancário 11. O programa de austeridade britânico, no entanto, não decorreu de imposição da União Europeia. O Reino Unido não introduziu o euro e em defesa de suas elites financeiras negou-se a participar do pacto fiscal de 2012, que incluiu diretrizes para regulação do sistema financeiro 39.

Na Inglaterra, com o novo governo da coalizão conservadora liberal, iniciou-se em 2010 importante reforma do NHS, regulada, em 2012, no Health and Social Care Act 2012 33 que estabeleceu uma política de cortes no NHS inglês (20 bilhões de libras em cinco anos) e acentuou tendências anteriores de privatização de serviços e de introdução de maior competição ao interior do NHS com reorganização das relações entre financiamento/compra e prestação, e ampliação de funções das agências reguladoras 32,49,50. Criou os CCGs, organizações locais de clínicas de GPs, que desde abril de 2013 substituíram os PCTs na função de contratação de serviços especializados e hospitalares para seus pacientes registrados (abandonando a responsabilização territorial 51, e passaram a gerenciar 70% dos gastos do NHS). Para incentivar a competição, os CCGs devem comprar serviços de qualquer prestador (“any qualified provider”) que inclui os hospitais públicos do NHS (que devem ser todos transformados em Foundation Trust) e prestadores privados. Ademais, os CCGs devem apresentar opções de prestadores aos pacientes encaminhados 33, o que pretende impulsionar a oferta privada, ainda pouco presente no NHS. Os CCGs devem ser estruturas administrativas pequenas de direção e contratar serviços de apoio para as tarefas de contratualização (commissioning support services – CSS) 52,53. O objetivo seria cortar gastos administrativos do NHS em 45% e estima-se que deslocará mais de 30 mil empregados do NHS 32 (Tabela 6).

Os CCGs terão maior autonomia e serão regulados pelo NHS-England, organização com independência do Departamento de Estado de Saúde, o que vem sendo avaliado como uma desresponsabilização do Secretário de Estado de Saúde pela garantia de atenção 54. Os CCGs devem garantir a prestação, porém não são responsáveis pela saúde da população em determinada área geográfica, a não ser para urgência e emergência. O dever do governo em prover atenção integral, segundo Pollock & Price 55, teria sido abolido, pois pela letra da nova lei o governo somente teria o dever de promover um serviço integral, não de garanti-lo.

A Alemanha, com modelo de produção, baseado em alto desenvolvimento tecnológico, elevada qualificação de sua força de trabalho e produtividade, foi beneficiada com a introdução do euro 2, que facilitou a exportação na região. Em posição vantajosa com crescentes superavits da balança comercial alemã com países europeus, e taxas de juros baixíssimos, a Alemanha retomou o crescimento em 2010, reduziu o desemprego (Tabela 5), recebe investimentos, e os seguros sociais, dado o aumento do emprego, apresentaram superavits em 2012 38.

Na Alemanha, com a crise financeira não se introduzem novos instrumentos de contenção, ou uma reforma estrutural em saúde, mas a crise foi catalisadora e serviu como legitimação para intensificar cortes sociais e a mercadorização na saúde pela coalizão conservadora-liberal 5. Foi promulgada uma série de legislações relativas ao financiamento, assistência farmacêutica e regulação e melhora da oferta de serviços em áreas rurais 28.

Frente à recessão de 2009, foram prognosticados déficits do GKV e, inicialmente, para compensar perda de receitas condicionadas pela crise, foi definida transferência adicional de recursos fiscais para o Fundo de Saúde do GKV (criado em 2007). Em 2010, a taxa de contribuição do GKV foi majorada para 15,5% e a paridade de contribuição perdeu vigor: a contribuição dos empregadores foi fixada em 7,3% e a contribuição dos trabalhadores majorada para 8,2% do salário. Ademais, foi abolido o limite para a cobrança de taxa adicional – valor per capita sem relação com o salário pago diretamente pelo contribuinte à Caixa, caso ela não consiga cobrir suas despesas com os recursos provenientes do Fundo do GKV –, reduzindo a solidariedade no financiamento 56.

Também em 2010, uma importante lei para a reordenação do mercado farmacêutico estabeleceu um conjunto de regras para controle e redução de preços de medicamentos e normas estritas para avaliação sistemática dos benefícios de novos medicamentos pela Comissão Federal Conjunta do GKV, ampliando suas funções 28,56.

Repercussões (imediatas e potenciais) sobre a universalidade

As reformas nos países estudados incidem nas três dimensões da universalidade com diferentes intensidades (Tabela 6). A primeira dimensão, “amplitude da cobertura populacional por esquema público”, é afetada na Espanha por mudanças nas regras de inclusão, que resultarão em curto e médio prazo em redução na proporção da população, com exclusão de imigrantes ilegais e residentes sem qualquer inscrição na Previdência Social. Entretanto, ainda não se observam mudanças nos indicadores de cobertura populacional, uma vez que o número de imigrantes ilegais é relativamente pequeno e algumas CCAA e serviços resistem a implementar as restrições.

Nos três países, a cobertura por esquema público manteve-se nos níveis anteriores e não ocorre aumento de cobertura por seguros privados. A proporção com cobertura duplicada na Espanha e Inglaterra não se altera e, na Alemanha, a população coberta por seguro substitutivo permanece no mesmo nível (Tabela 3) 29.

A dimensão da universalidade “abrangência da cesta de serviços coberta” é tensionada e sofre restrições de distintas ordens nos três países. Mudanças no catálogo de serviços com exclusão explícita de serviços ocorrem na Espanha. Na Inglaterra, CCGs poderão definir os serviços que consideram necessários 54. Nos três países, medidas implícitas de racionamento com priorização de ações tendem a se apresentar decorrentes dos cortes de recursos. Intensifica-se o controle para a entrada de novas ações no catálogo de serviços, fortalecendo-se o papel dos órgãos de regulação (Tabela 6). O aumento dos tempos de espera para cirurgias eletivas é um efeito imediato dos cortes na Espanha e previstos na Inglaterra. A redução da oferta de serviços de saúde por diminuição de pessoal e de investimentos é verificada na Espanha.

Novas formas de gestão de estabelecimentos públicos, iniciativas de parcerias público-privadas para investimentos, privatização e terceirização da gestão de hospitais são tendências encontradas nos três países, que podem influenciar na disponibilidade de serviços, dada a orientação comercial. Na Inglaterra, todos os hospitais públicos devem se transformar em Foundation Trust com maior autonomia e possibilidade de captação recursos privados e os CCGs serão obrigados a contratar qualquer prestador, prevendo-se maior participação do setor privado na prestação. Ainda assim, na Espanha, o governo conservador de Madri renunciou a sua iniciativa de privatização de hospitais públicos por causa da ampla mobilização social do movimento “marea blanca” em defesa dos hospitais públicos e greve de profissionais de saúde por cinco semanas 57.

A terceira dimensão da universalidade “nível de cobertura por financiamento público”, é afetada pelos cortes de recursos e aumentos de copagamentos, ainda que não se observe imediato impacto sobre a proporção dos gastos em saúde cobertos publicamente, que em 2011 ostentam níveis levemente superiores àqueles de 2007 e mantêm sua participação no PIB (Tabelas 2 e 6). As legislações impuseram restrições. A partir de 2009, a tendência é de gastos públicos decrescentes na Espanha e Reino Unido, e de desaceleração na Alemanha, acompanhando a tendência em países europeus de redução de gastos públicos em saúde com a crise financeira 7,8.

Aumentos nos copagamentos implicam transferências da responsabilidade de financiamento do Estado para as famílias. Seguindo tendência de outros países europeus 6, copagamentos foram ampliados explicitamente na Espanha, e na Inglaterra implicitamente, pois hospitais públicos transformados em entes autônomos passam a oferecer aos pacientes do NHS a “opção” para pagamento direto privado para determinados serviços 58. Na Alemanha, pelo contrário, frente ao superavit do GKV, foi abolido o copagamento na atenção ambulatorial por pressão dos médicos especialistas eleitores do partido liberal, integrante da coalizão governamental conservadora 38.

Considerações finais

A recente crise financeira internacional acentuou as pressões econômicas sobre os sistemas nacionais de saúde e foi tomada como oportunidade por governos conservadores para aprofundar medidas restritivas, ampliar o espaço do mercado e competição e reduzir a intervenção estatal 5,39.

As políticas recentes diante da crise financeira seguem estratégias anteriores das “reformas voltadas para o mercado” e aprofundam a competição regulada, com separação de funções entre financiadores/compradores e prestadores de serviços nos sistemas nacionais de saúde, e mecanismos para ampliar a competição entre as entidades seguradoras nos seguros sociais. Expandem-se medidas gerenciais inspiradas no New Public Management, como novos modelos de gestão nos serviços públicos e a relação entre prestadores e compradores regulada por contratos.

As respostas à crise nos três casos tiveram aspectos comuns nos seus objetivos de contenção de gastos públicos em saúde e políticas de austeridade para controle do déficit público, todavia com diferentes medidas. A Espanha, mais atingida pela crise sofre cortes diretos mais drásticos com ênfase em aumentos de copagamento, exclusão de coberturas, e cortes de gastos com pessoal. A reforma inglesa é a mais profunda, com ampla reorganização do NHS e das relações entre financiadores e prestadores com redução de funções gerenciais e pessoal administrativo e abertura do “mercado interno” para os prestadores privados, com aumento da competição e comercialização no NHS. O financiamento permanece público, contudo uma tendência à privatização é verificada em diversos componentes do NHS: incentivo ao uso privado de serviços hospitalares, prestação de serviços de GP por empresas privadas, mudanças nos modelos de gestão e propriedade dos hospitais do NHS, e terceirização do manejo dos fundos com a criação dos CCGs. As decisões alocativas sobre a maioria dos recursos do NHS serão tomadas por serviços de apoio à contratualização pelos CCG que se prevê devam ser terceirizados, não mais por órgãos do NHS como eram os PCTs. A Alemanha, melhor posicionada na crise, com baixo desemprego, apresentou superávit no Seguro Social de Doença, reforçou suas políticas para controle da evolução das taxas de contribuição. Congelou a contribuição dos empregadores, transferindo aumentos futuros para responsabilidade dos segurados, permitindo taxas adicionais estipuladas pelas caixas, caso não alcancem cobrir seus gastos com os recursos do fundo do GKV, forçando a competição entre caixas e a redução de gastos.

Com modelos de proteção em saúde, institucionalidade e constelação de atores setoriais diversos, e posição dos países muito diferenciada na crise financeira e economia europeias, a intensidade dos impactos das medidas restritivas sobre a universalidade diverge entre países. A “amplitude” da população coberta é afetada explicitamente somente na Espanha. A “abrangência” da cesta de serviços cobertos é atingida de forma indireta nos três países com maior controle da incorporação de novos procedimentos e restrições na prestação. Redução de gastos públicos per capita ocorre na Espanha e na Inglaterra, atingindo o ‘nível’ da universalidade.

Não obstante, essas mudanças atingem até o momento de forma marginal a universalidade: os esquemas públicos cobrem a grande maioria da população, o catálogo de serviços cobertos permanece amplo e, nos três países, mais de 74% dos gastos em saúde permanecem públicos. Em face da crise, os países europeus, em geral, não realizaram mudanças importantes no pacote de benefícios legalmente coberto e reduções na cobertura populacional, em geral, foram marginais 6. Porém, ocorreu estagnação ou redução dos gastos públicos em saúde que, se persistir, em médio prazo pode ter consequências deletérias para a universalidade.

Esse é um processo em aberto. A crise financeira impôs sérias pressões aos welfare states europeus e aos sistemas nacionais de saúde, no entanto as análises das repercussões de experiências anteriores de reformas conservadoras nas décadas de 1980 e 1990 indicam processos não lineares com retrocessos e avanços. A intensidade da retórica pró-mercado prevaleceu sobre sua possibilidade de implementação e o princípio da solidariedade e o caráter público dos sistemas de saúde não foram abalados 35,37,59,60,61.

Por outro lado, as crises podem engendrar também consequências positivas e novas soluções. Conjunturas de crise econômica tornam evidente a importância das políticas sociais para mitigar seus efeitos adversos e os cidadãos se mobilizam em sua defesa 62. A intensidade das repercussões sobre a universalidade em médio e longo prazo será condicionada pela ação dos atores sociais e pela natureza da crise, se conjuntural, ou estrutural enquanto crise do capitalismo democrático que caracterizou a Europa ocidental na segunda metade do século 20 1.

O estudo dos casos selecionados permitiu mostrar uma diversidade de situações dos sistemas públicos de saúde diante da crise financeira e contribui para o debate contemporâneo sobre a universalidade 63. Não obstante, trata-se de análise conjuntural, limitada ao exame de literatura recente e dados gerais que impedem conhecer consequências para grupos sociais específicos e desigualdades geográficas e sociais. Conhecer a evolução em prazo mais longo requer acompanhamento e novos estudos.

Agradecimentos

À Capes pelo auxílio recebido de bolsa para estágio sênior no exterior BEX 3831/11-6. À Mariana Konder pelo apoio na revisão final.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2014

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2014
  • Revisado
    22 Jun 2014
  • Aceito
    28 Jul 2014
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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