Programação em saúde bucal e sua relação com a epidemiologia: desafios e possibilidades

Samuel Jorge Moysés Sobre o autor

A programação em saúde constitui um campo temático dos mais importantes para a organização das práticas cotidianas na saúde coletiva/saúde pública. Sustentado em inteligência epidemiológica, este campo comportará um expressivo arco de possibilidades, cobrindo um vasto repertório teórico-metodológico com implicações nas políticas de saúde.

Assumindo tal pressuposto, evitaremos revolver o solo minado por uma infrutífera discussão acerca da utilidade contemporânea da programação em saúde, confundida com “programas” de saúde. Esse parece ser um equívoco recorrente no meio biomédico, amplificado pelo disparate de se imaginar que a programação só serve para propor “pacotes sanitários” básicos, verticalizados e fragmentados. Como se isso não bastasse, persistem leituras ambíguas interpretando como sinônimas as práticas disciplinares específicas de grupos profissionais, muitas vezes orientadas pelo mercado, com programas (supostamente conexos) de saúde pública, conforme se observa na confusão, por exemplo, entre gineco-obstetrícia e “programas de saúde da mulher”, psiquiatria e “programas de saúde mental”, ou odontologia e “programas de saúde bucal”.

Nosso objetivo é sintético: trataremos de alguns indícios desafiadores perceptíveis na tímida relação entre planejamento/programação e epidemiologia nas práticas de saúde bucal, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Política Nacional de Saúde Bucal – Brasil Sorridente.

Para problematizar genericamente esse intento, recuperamos a abordagem crítica feita na década de 1980 por notórios autores de ambas as áreas – planejamento e epidemiologia –, quando já no título do artigo indagavam criticamente se haveria “casamento ou divórcio” entre essas disciplinas? 1. Castiel LD, Rivera FJU. Planejamento em saúde e epidemiologia no Brasil: casamento ou divórcio? Cad Saúde Pública 1985; 1:447-56. Não deixa de causar apreensão, ainda hoje, quando lemos as razões que eram aventadas “para explicar o fracasso do planejamento em saúde no Brasil e o papel da epidemiologia nesta situação” 1. Castiel LD, Rivera FJU. Planejamento em saúde e epidemiologia no Brasil: casamento ou divórcio? Cad Saúde Pública 1985; 1:447-56. (p. 447). Assumindo que os autores estivessem bem sustentados por argumentos quando publicaram o artigo, e que sua crítica genérica para a saúde pública brasileira naquela época serviria como uma luva para a política de saúde bucal, então vigente, impõe-se uma atualização conjuntural daquele questionamento crítico para a atual Política Nacional de Saúde Bucal.

É desnecessário, aqui, detalhar aspectos que definem as necessárias interfaces entre planejamento e epidemiologia em saúde bucal. Interessa, sim, comentar o “estado da arte” na consecução de um dos momentos mais desafiadores e de maior complexidade do planejamento – o programático. Seja da parte de pesquisadores, de gestores ou de equipes operativas, é senso comum que nos serviços de saúde bucal do SUS “somos bons nos diagnósticos de problemas, mas não tão bons nos encaminhamentos resolutivos”, ou então que “temos muitas iniciativas, mas nossas ‘acabativas’ são precárias”. São jargões usados para traduzir uma percepção mais profunda, para além da superfície no cotidiano dos serviços, reconhecendo que objetivos, metas, funções, estruturas, recursos, responsabilidades, tempos, indicadores, resultados são frequentemente negligenciados, restando um vácuo institucional. Predicados programáticos fundamentais vão sendo protelados ou não realizados, em prejuízo dos desfechos terminais relacionados à saúde da população, inexoravelmente perdidos por falta de direcionalidade.

O momento programático, no ciclo de formulação/implementação de políticas, é um modo de representação do complexo processo que envolve a construção de uma determinada decisão pública e sua execução 2. Vilasbôas ALQ, Paim JS. Práticas de planejamento e implementação de políticas no âmbito municipal. Cad Saúde Pública 2008; 24:1239-50.. Assim, torna-se instrumento de intervenção social, sendo simultaneamente estratégia política para a construção da sustentabilidade do futuro e racionalidade a serviço da governança do presente. É exatamente na programação que deveríamos encontrar a aplicação tecnológica necessária para o melhor proveito dos recursos (sejam os existentes ou os reivindicados por gestores, equipes operativas e a opinião pública em geral, em suas agendas de disputas intersetoriais). No caso particular da saúde bucal, tal aplicação visaria à produção de resultados epidemiológicos ou de âmbito da assistência pessoal, com impacto social no plano material ou imaterial dos sujeitos atingidos.

Nem será preciso questionar a eficácia política (por ora, inexistente) da programação em saúde bucal vigente na maioria dos estados e municípios brasileiros, pois já no plano técnico sabe-se que segue uma racionalidade incompleta. Para sustentar essa afirmação, basta exemplificar com algo aparentemente trivial: uma investigação sobre a programação de práticas de higiene bucal dirigidas a crianças demonstrou que, entre os cinquenta e quatro órgãos de saúde pública pesquisados, incluindo o Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde de estados e capitais brasileiras, as recomendações eram inconsistentes, conflitivas e podiam estar associadas a uma aparente lacuna na evidência científica 3. Santos APP, Nadanovsky P, Oliveira BH. Survey of Brazilian governmental health agencies shows conflicting recommendations concerning oral hygiene practices for children. Cad Saúde Pública 2010; 26:1457-63.. Já que não é possível, no século XXI, operacionalizar de modo consistente práticas de higiene bucal, o que dizer sobre intervenções mais complexas no plano individual e coletivo?

Com isso, não se quer ofuscar os esforços recentes empreendidos pelo nível federal, que busca induzir os níveis estaduais e municipais em novas posturas programáticas, por meio de “incentivos” variados do Brasil Sorridente. Destacam-se iniciativas formativas, tais como o material didático produzido pelo Sistema de Planejamento do SUS (PlanejaSUS; http://bvsms.sau de.gov.br/bvs/publicacoes/planejaSUS_livro_1a6.pdf) ou, na saúde bucal, a publicação Caderno de Atenção Básica, no 17, de 2008 (http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=pu blicacoes/cab17). Ainda, é preciso reconhecer o protagonismo do Ministério da Saúde na área da vigilância em saúde bucal, buscando produzir informações epidemiológicas valiosas, capazes de descrever a situação de saúde, permitindo discernir iniquidades entre distintas populações/regiões e suas necessidades particulares, conforme atesta a experiência do SBBrasil 2010 4. Moysés SJ, Pucca Junior GA, Paludetto Junior M, Moura L. Avanços e desafios à Política de Vigilância à Saúde Bucal no Brasil. Rev Saúde Pública 2013; 47 Suppl 3:161-7.. Destarte, disponibilizam-se recursos de informação e dispositivos tecnológicos para: (a) fortalecer a programação orgânica e a intervenção mais bem direcionada sobre problemas de saúde; (b) a operacionalização do conceito de determinação social do processo saúde/doença e sua implicação com fatores protetivos e/ou fatores comuns de risco; (c) a prevenção/redução de danos; (d) a atuação intersetorial; (e) as ações sobre o território; (f) a intervenção informada pela evidência, sob a forma de operações que promovem a saúde.

Embora tais possibilidades mencionadas sejam potentes, no sentido da programação necessária ao SUS, é desconcertante ainda identificar uma relativa precariedade nos indicadores de saúde bucal que são pactuados e monitorados nacionalmente, tais como a “cobertura de primeira consulta odontológica programática”, a “cobertura da ação coletiva escovação dentária supervisionada”. Isso é muito pouco diante dos complexos desafios programáticos do tempo presente, tais como o enfrentamento das iniquidades étnicas, de gênero, de geração e de condições sociais.

Portanto, resta uma falha programática primordial na maioria dos estados e municípios no que se refere à explicação, priorização e intervenção estratégica junto a grupos populacionais fragilizados – aqueles que são vulnerados por suas condições de vida e sofrem as consequências das iniquidades sociais refletidas em sua saúde geral e bucal. As possibilidades presentes e futuras de impactar efetivamente os indicadores epidemiológicos em saúde bucal e alcançar as necessidades singulares das pessoas no plano do cuidado decorrem da potencialização das ações programáticas dirigidas a tais grupos/sujeitos. Assim, a alocação dos recursos obedeceria a critérios não só de eficiência ou de efetividade, mas, sobretudo de equidade.

É preocupante notar que esta não é, exatamente, uma “questão nova”, pois desde os anos 1990 já se advogava pelo desenvolvimento da capacidade de análise da situação de saúde e da intervenção sobre problemas e grupos populacionais prioritários, em uma perspectiva territorializada. Desse modo, ampliaríamos a capacidade de gestão, monitoramento e avaliação no SUS, com ênfase na montagem de sistemas de vigilância em saúde cujas ações fossem operacionalizadas com base no “mapeamento inteligente” de problemas que afetam a população em nível local, com suas necessidades particulares, e tomada de decisão programática baseada na melhor evidência disponível para o contexto sob intervenção. Longe de ser um desenho normativo de um futuro “determinado”, a programação pode, sim, ser um guia de ação para o momento presente e futuro, possibilitando prever cenários referenciados pelas ciências sociais em saúde, pela epidemiologia, pela clínica e pelo controle social, mobilizando distintos atores para agirem no espaço de governabilidade em que se relacionam no cenário programático local.

Provavelmente, o que ainda ocorre é o “divórcio” entre o mundo acadêmico, com saberes e práticas de pesquisa alcançando níveis de excelência nos campos temáticos do planejamento e da epidemiologia em saúde bucal, e o mundo dos serviços que segue blindado para a “pesquisa translacional”, ou seja, a incomunicabilidade relativa entre culturas institucionais que não se encontram na tradução recíproca de saberes e apoio na viabilização de boas práticas.

Para tanto, uma das tarefas centrais continua sendo a capacitação de pessoas para a função estratégica da programação em saúde, salientando o papel das instâncias de educação permanente e de práticas investigativas no SUS, estreitando a relação entre a academia e os serviços 5. Nunes ED, Nascimento JL, Barros NF. A questão curricular para o plano de formação em Saúde Coletiva: aspectos teóricos. Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15:1935-43.. Afinal, o que deveria ser a programação em saúde bucal, orgânica aos interesses do povo brasileiro e do SUS, senão a inteligência técnico-científica posta a serviço da sabedoria política?

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    Castiel LD, Rivera FJU. Planejamento em saúde e epidemiologia no Brasil: casamento ou divórcio? Cad Saúde Pública 1985; 1:447-56.
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    Vilasbôas ALQ, Paim JS. Práticas de planejamento e implementação de políticas no âmbito municipal. Cad Saúde Pública 2008; 24:1239-50.
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    Santos APP, Nadanovsky P, Oliveira BH. Survey of Brazilian governmental health agencies shows conflicting recommendations concerning oral hygiene practices for children. Cad Saúde Pública 2010; 26:1457-63.
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    Moysés SJ, Pucca Junior GA, Paludetto Junior M, Moura L. Avanços e desafios à Política de Vigilância à Saúde Bucal no Brasil. Rev Saúde Pública 2013; 47 Suppl 3:161-7.
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    Nunes ED, Nascimento JL, Barros NF. A questão curricular para o plano de formação em Saúde Coletiva: aspectos teóricos. Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15:1935-43.

Correspondência S. J. Moysés Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Silveira Peixoto 1062/191, Curitiba, PR 80240-120, Brasil. s.moyses@pucpr.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2014
  • Aceito
    30 Abr 2014
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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