Quando os Estados Unidos experimentaram um aumento acentuado na taxa de cesárea a partir de 1996, havia referências regulares para o caso do Brasil, que era visto como o arquétipo de países que aceitavam a inevitabilidade de uma taxa de cesariana em ascensão. A explicação popular para a alta taxa dessa intervenção do Brasil era que as mães de lá preferiam a cesariana, uma lógica que foi então aplicada pelos canais de mídia para o aumento da taxa nos Estados Unidos com histórias de cesarianas por “escolha da paciente”. O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, em 2006, chegou a realizar uma reunião sobre o Parto Cesariana a Pedido da Mãe. Enquanto a cobertura da mídia invariavelmente incluía uma anedota viva sobre uma mãe que buscava uma cesariana primária, ninguém estava sistematicamente perguntando às mães sobre este fenômeno. Quando os pesquisadores finalmente começaram a inquirir as mães nos Estados Unidos, no entanto, eles descobriram que a cesariana primária sem indicação médica a pedido materno era responsável por cerca de 1% de todas as cesarianas primárias, dificilmente o suficiente para ter conduzido o aumento de 50% em cesarianas nos Estados Unidos entre 1996 e 2009. A lição foi clara, caso se pretenda falar sobre as intenções e experiências das mães, tente perguntar e ouvir diretamente as mães.
Como um dos pesquisadores que tem se empenhado por mais de uma década no processo de inquirir as mães sobre suas experiências relacionadas à parturição, estou plenamente consciente dos múltiplos desafios associados a este processo, mas dois fatos ficaram claros: (1) não surpreendentemente as mães são relatoras precisas deste evento extraordinário em suas vidas, e (2) geralmente estão mais do que dispostas a discutir suas experiências. O notável número temático Nascer no Brasil de Leal et al., tira o máximo proveito dessa tendência para investigar as experiências tanto do parto vaginal quanto da cesariana nas mães de baixo risco. Sua amostra muito grande e advinda de uma ampla gama de lugares geograficamente e economicamente distintos proporciona-lhes uma oportunidade única de explorar desfechos raros e subgrupos dentro da população. Sua constatação de que 56,8% de suas entrevistadas foram classificadas como de baixo risco após a aplicação de critério rigoroso é, em si, de interesse. Aplicando seus critérios para as puérperas dos Estados Unidos, tanto quanto possível, dada as diferenças entre as bases de dados, a comparável taxa de partos de baixo risco foi de 55% 11 Declercq E, Sakala C, Corry M, Heirlich A. Listening to mothers III. New York: Childbirth Connection; 2013., embora a taxa de cesariana para estas mães norte-americanas tenha sido de 26% contra os 46 % encontrados na amostra brasileira.
Talvez de mais relevância seja a análise de Leal et al. das experiências das mães que tiveram parto vaginal. A ênfase considerável sobre a cesariana nos últimos anos é compreensível, mas numa cultura em que a intervenção médica no nascimento é dificilmente limitada à cesariana, Leal et al. encontraram taxas de intervenção no parto vaginal excepcionalmente altas, principalmente de episiotomia, de 56% (contra 17% em partos vaginais nos Estados Unidos), parto em posição de litotomia em 92% das mulheres (69% em partos vaginais nos Estados Unidos) e 37% das mães sofreram manobra de Kristeller (25% nos Estados Unidos). Como observam os autores, o uso rotineiro dessas práticas não é apoiado pelas melhores evidências. Embora o uso de práticas positivas como alimentar-se durante o trabalho de parto (26% na pesquisa brasileira e 40% nos Estados Unidos) e liberdade de movimento no trabalho de parto (46% Brasil e 43% nos Estados Unidos) são animadoras de se ver, elas estão longe de serem universais e o estudo de Leal et al. focou precisamente nos partos de baixo risco, nos quais estas práticas são mais comumente esperadas.
A variação no uso das boas práticas dentro do Brasil por região e principalmente pelo tipo de financiamento do parto (publico vs. privado) enfraquece ainda mais a pretensão de serem baseadas em evidências. Seriam as mulheres de baixo risco atendidas pelo SUS tão diferentes fisicamente das do setor privado que elas exigem um padrão diferente de atendimento? Por que as mulheres no sistema público apresentam taxas mais elevadas de boas práticas baseadas em evidências, como se alimentar e ter mobilidade no trabalho de parto e o uso de alívio não farmacológico da dor? Os autores sugerem que esse é provavelmente o resultado de uma campanha do Ministério da Saúde para defender um modelo mais humanizado do parto, um ponto que merece maior atenção dos pesquisadores brasileiros para abordar duas questões relacionadas. Em primeiro lugar, é verdade que essa campanha verdadeiramente influenciou as práticas de cuidados no parto e nascimento? Determinar um elo de causalidade entre as iniciativas do Ministério da Saúde e mudanças de comportamento generalizado é um grande desafio. Em segundo lugar, supondo que houve um impacto, como foi que essa influência se manifestou? Foi por meio de mudanças na estrutura das instituições de saúde (por exemplo, a introdução de centros de parto normal), no modelo de financiamento de médicos e hospitais, ou de uma campanha de educação sobre as boas práticas? Há pouca evidência de que apenas informar os médicos sobre as boas práticas seja capaz de trazer mudança sem uma mudança correspondente em arranjos institucionais e/ou financiamento.
Será que um público mais informado demandará mudanças? Enquanto há alguma indicação de movimentos sociais liderados por mulheres exigindo uma menor intervenção no parto e nascimento em diferentes países, a evidência é limitada e a natureza da experiência de parto não se presta à defesa do consumidor em longo prazo. Precisamente no momento em que as mulheres estão mais interessadas nas práticas de parto elas estão ou grávidas ou cuidando de uma criança - nenhuma das duas condições favorece ao tipo de compromisso em longo prazo necessário para alterar comportamentos institucionais ou normas culturais já arraigados. Os dados sobre a atitude na pesquisa Nascer no Brasil podem lançar alguma luz sobre essas questões, especialmente se houver um compromisso de financiamento de longo prazo para futuras pesquisas que possam acompanhar as mudanças no decorrer do tempo. Por exemplo, em nossas pesquisas nos Estados Unidos encontramos um claro crescimento na última década no número de mulheres que veem o nascimento como um processo que não deve ser interferido, a menos que medicamente necessário (45% em 2001 para 58% em 2012). Houve também considerável interesse entre as mães dos Estados Unidos em usar um local diferente, especificamente uma casa de parto, para futuros nascimentos, com 39% das mães dispostas a considerá-la e outros 25% dizendo que definitivamente queriam utilizar uma 11 Declercq E, Sakala C, Corry M, Heirlich A. Listening to mothers III. New York: Childbirth Connection; 2013..
Então, a onda crescente de intervenções é inevitável no Brasil? Dados de outros países sugerem que não. As taxas de cesárea estão estabilizando na maioria dos países industrializados nos últimos anos. Os dados mais recentes da Organização para o Desenvolvimento Econômico e Cooperativo mostra que a Itália, a Coreia do Sul e os Estados Unidos, todos países com taxas de cesariana superiores a 30 %, têm visto as suas taxas estabilizarem ou declinarem nos últimos anos, e um estudo sistemático das taxas de cesariana transnacionais encontrou a mesma tendência transnacionalmente 22 Declercq E, Ecker J, Cabral H, Young R. Is a rising cesarean rate inevitable? Birth 2011; 38:99-104..
Será o Brasil a exceção e continuará a aumentar as intervenções médicas no parto, ou os esforços, como os observados em Leal et al., levarão a uma abordagem mais equilibrada para práticas de atenção ao parto e nascimento? A experiência de outros países sugere que grupos de consumidores e ativistas em combinação com o apoio institucional (por exemplo, Ministério da Saúde) para uma abordagem de atenção mais baseada em evidências, podem contribuir para a melhoria nos desfechos que o Brasil tem manifestado sem o dano iatrogênico associado ao uso excessivo de intervenções. Seguindo o exemplo de Leal et al. e dando às mães uma voz no processo, é um primeiro passo essencial acerca deste tema.
- 1Declercq E, Sakala C, Corry M, Heirlich A. Listening to mothers III. New York: Childbirth Connection; 2013.
- 2Declercq E, Ecker J, Cabral H, Young R. Is a rising cesarean rate inevitable? Birth 2011; 38:99-104.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Ago 2014