MÉDICOS, MEDICINA POPULAR E INQUISIÇÃO: A REPRESSÃO DAS CURAS MÁGICAS EM PORTUGAL DURANTE O ILUMINISMO. Walker TD. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; 2013. 423 p. ISBN: 978-85-7541-425-5

Rachel Aisengart Menezes
2013

As caças às bruxas foram - e são - uma temática de motivação de historiadores, pela possibilidade de revelação de valores e conceitos presentes no momento investigado. As acusações de bruxaria e as reações sociais às perseguições podem evidenciar jogos de poder, conflitos e alianças entre os atores sociais envolvidos. Pela observação de que historiadores publicaram pouco sobre a bruxaria em Portugal, país que contou com uma atuação maciça da Inquisição, Timothy D. Walker, professor de História da Universidade de Massachusetts, Estados Unidos, dedicou-se a investigar a perseguição a curandeiros e curandeiras pelo Santo Ofício, ocorrida no Iluminismo.

Qual a percepção dos portugueses sobre os praticantes de magia? Quais as características das bruxas (e de seus companheiros), apontadas pelo povo português? Essas e outras indagações orientaram o estudo preliminar empreendido por Walker, em 1992, em documentos arquivados na Torre do Tombo. Os registros completos dos três tribunais regionais da Inquisição em Portugal estão ali armazenados, num total que abrange mais de quarenta mil casos. A partir dessa pesquisa inicial, o projeto de Walker se transformou, passando a se configurar com contornos mais nítidos, em torno de "um tema mais preciso" (p. 17). O livro Médicos, Medicina Popular e Inquisição: A Repressão das Curas Mágicas em Portugal durante o Iluminismo é resultado dessa minuciosa investigação, centrada no século XVIII, com exame de documentação em arquivos em Lisboa, Évora e Londres.

Aparentemente, a publicação é mais um estudo sobre a Inquisição em Portugal. Mas, depois de ler as páginas iniciais, o leitor certamente se dá conta de que o livro não consiste somente em um exame da perseguição e dos processos dirigidos a curandeiros. Nos bastidores das perseguições havia algo mais em jogo. O autor demonstra a existência de determinados fatores e interesses, que incidiram no aparato repressivo da Inquisição, contra os curandeiros populares. As conclusões resultam da análise detalhada dos processos, dos implicados, dos métodos utilizados pelo pessoal a serviço da Inquisição portuguesa, em relação aos praticantes de magia, além do posicionamento dos sujeitos envolvidos. Sem tomar partido de uma ou outra escola historiográfica - entre a "racionalista" e a "romântica" -, Walker optou pela referência às duas abordagens, por considerar uma escolha mais profícua, na reflexão sobre a causalidade "por detrás dos julgamentos de crimes de magia em Portugal, durante o Iluminismo" (p. 19).

O número de processos inquisitoriais por feitiçaria aumentou consideravelmente no final do século XVII, alcançando um pico em torno de 1750. Quais as razões para tal crescimento? Quais as causas da mudança nas atitudes de tolerância em relação às ações dos curandeiros populares? Segundo o autor, "é significativo que este período de perseguição da bruxaria em Portugal tenha sido também aquele em que um número sem precedentes de médicos e cirurgiões com formação universitária começou a ingressar nas fileiras remuneradas da Inquisição, prestando serviço como 'familiares', a fim de usufruírem do estatuto elevado e dos privilégios inerentes a esse cargo" (p.19).

A perseguição de curandeiros e saludadores - termo utilizado em Portugal, no século XVIII - revela um conflito entre a cultura médica erudita e a cultura das curas populares, na passagem do século XVII para o seguinte. Em comparação com o restante da Europa, o período de perseguição à bruxaria em Portugal surgiu mais tarde. Após examinar as características das caças às bruxas em diversos países, como Inglaterra, Polônia e Suécia, entre outros, o autor afirma que a experiência portuguesa foi única: "mais de 500 feiticeiros foram a julgamento em tribunais da Inquisição, entre 1715 e 1770, e nenhum acusado foi executado" (p. 21).

A coincidência entre a cronologia dos julgamentos dos crimes com o crescente interesse iluminista em investigações científicas chamou a atenção do pesquisador: "Pretendi, sobretudo, explorar especificamente as circunstâncias destes julgamentos porque eles parecem fazer parte de uma supressão sistemática da medicina popular pela Inquisição - e pelos médicos e cirurgiões profissionais coniventes que trabalhavam para o Santo Ofício - em Portugal, durante o século XVIII" (p. 22).

Para compreender o que ocorreu na perseguição aos curandeiros populares, Walker investigou o contexto social e político de Portugal, apresentado na primeira parte do livro; e a repressão das curas mágicas, na segunda parte. Quem efetuava curas no início da modernidade? Um dos casos exemplares é o de Joana Baptista, oriunda do norte do país. Ela se mudou para o sudeste e vivia na aldeia de São Marcos, próxima à cidade de Évora. Vivia com seu marido, um jornaleiro. Era parteira e se dedicava às doenças das crianças, num ritual em que recitava uma oração, enquanto a criança doente passava três vezes seguidas por dentro da "rosca de três Marias". Joana, como a grande maioria dos/as curandeiros/as portugueses, era pobre, provinha de outra região - era forasteira na comunidade em que residia - e era jovem e casada. Por ser acusada pela primeira vez de crime, sua pena foi branda: foi banida para Portoalegre, a 85km a norte da cidade de Évora, por dois anos.

Os/as curandeiros/as atendiam majoritariamente moradores de zonas rurais, prestando um serviço que Raymond Firth denominou de magia protetiva. Além dessa modalidade de assistência, os saludadores prescreviam dietas, remédios caseiros, tratamentos fundamentados na experiência acumulada de gerações, usualmente acompanhados por rituais com recitação de benzeduras. Uma razão central pela qual os camponeses recorriam aos curandeiros se baseava em uma questão prática: não havia médicos disponíveis para atendimento nas províncias e pequenas aldeias. Teoricamente, a Igreja e o Estado português haviam estabelecido uma rede de serviços médicos em todo o reino, para todas as pessoas. Contudo, a maioria das cidades rurais e municípios, além das casas da Misericórdia, não possuíam o número mínimo de médicos estipulado pela legislação. A preocupação com o controle das epidemias, sobretudo nas cidades portuárias, acarretou uma demanda de vagas para médicos nos portos, com melhores rendimentos.

Página por página, capítulo a capítulo, o leitor mergulha no panorama histórico, religioso e político português do Iluminismo. Aos poucos conhece as personagens envolvidas nos processos, seus interesses e objetivos. Um horizonte é descortinado, no qual se desenrola uma complexa trama, tecida por forças que se opõem e por alianças que são firmadas. A influência das Luzes entre as elites portuguesas, entre médicos e cirurgiões, conduziu à defesa de novos conhecimentos e valores. Não foi por acaso que muitos processos foram movidos por iniciativa de médicos. Esse grupo, preocupado com a afirmação de ideias científicas modernas, que embasavam a medicina, desejava estabelecer uma nova mentalidade em Portugal. Para tanto, foi necessária uma oposição aos curandeiros populares. A utilização da Inquisição consistiu em estratégia dos médicos, na busca pela promoção da modernidade. Como o autor aponta nas conclusões, o Santo Ofício não exterminou as curas populares em Portugal. Os curandeiros populares permanecem atuando atualmente.

O livro de autoria de Timothy Walker é uma obra de fôlego, com mais de 400 páginas, nas quais há uma análise profunda, em texto de leitura fluida e agradável, que pode interessar não apenas profissionais e estudiosos do campo da saúde, como pesquisadores da história, das ciências sociais, políticas e da religião, pelo alcance de suas reflexões.

Rachel Aisengart Menezesraisengartm@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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