Gasto privado em saúde no Brasil

Private health expenditures in Brazil

El gasto privado en salud en Brasil

Carlos Octávio Ocké-Reis Sobre o autor

Introdução

A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como “dever do Estado” e “direito do cidadão”. Pela letra da lei, todo cidadão pode utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com suas necessidades sociais, independentemente da capacidade de pagamento, inserção no mercado de trabalho ou condição de saúde. Para garantir a universalização, o Estado deveria ter concentrado esforços para melhorar sua equidade e qualidade nos últimos 25 anos. No entanto, como a saúde é também livre a iniciativa privada, os planos de saúde – que radicalizam a seleção de riscos – contaram com pesados incentivos governamentais, cujos subsídios favorecem a passos largos o consumo de bens e serviços privados 1. Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012..

Para os sanitaristas, não é fácil lidar com essa contradição. As distorções deste “sistema” tendem a segmentar o caráter único do SUS, dado que o aumento do gasto privado e do poder econômico acabam corroendo a sustentabilidade do financiamento estatal, conduzindo a um círculo vicioso, caracterizado pela queda relativa do custeio e do investimento direto do governo. Além do mais, a regulação de sistema duplicado é mais complexa para o Estado, uma vez que o mercado cobre igualmente serviços ofertados pelo setor público.

Diferente do esquema beverediano e similar ao modelo americano, após o fim do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), o sistema brasileiro se travestiu em um mix paralelo e duplicado, em que o setor privado estabelece uma relação parasitária com o SUS e com o padrão de financiamento público. Pior: na atual conjuntura histórica, sem força para sustentar um projeto estratégico que resista ao alargamento da hegemonia neoliberal, uma visão fiscalista, que prega o fomento do mercado de planos de saúde como solução pragmática para desonerar as contas públicas, é sustentada por setores economicistas no Estado e na sociedade.

Mercado cresce a passos largos

Precisamos repensar por que razões não foi possível ainda afirmar os pressupostos constitucionais do SUS, tampouco ampliar, substantivamente, os mecanismos regulatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Afinal, ao seu modo, não é de hoje que está em curso um processo de americanização do sistema de saúde brasileiro 2. Vianna MLTW. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil: estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan; 1998..

O gasto total em saúde corresponde a 9% do Produto Interno Bruto, mas apenas 47% correspondem à despesa pública, discrepante do nível observado nos países que possuem sistemas universais. Na composição do gasto privado, os planos de saúde respondem por 40,4%, tornando o desembolso direto a parte mais significativa 3. Viana ALd’A, Silva HP, Lima LD, Machado CV. Financiamento estável e suficiente para garantir a universalidade. http://www.resbr.net.br/desafios-do-sistema-de-saude-brasileiro-parte-ii-financiamento-estavel-e-suficiente-para-garantir-a-universalidade/ (acessado em 08/Set/2014).
http://www.resbr.net.br/desafios-do-sist...
. Considerando sua natureza “inelástica”, os gastos com planos tendem a crescer – embora compensados pelos incentivos governamentais, e, apesar de programas de distribuição gratuita e da farmácia popular, os trabalhadores de baixa-renda continuam comprometendo, proporcionalmente, maior parcela da renda familiar com medicamentos do que as famílias de maior renda 4. Garcia LP, Sant’Anna AC, Magalhães LCG, Freitas LRS, Aurea AP. Gastos das famílias brasileiras com medicamentos segundo a renda familiar: análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002-2003 e de 2008-2009. Cad Saúde Pública 2013; 29:1605-16..

Apesar do subfinanciamento, além de oferecer serviços de baixo e alto custo, desde a sua criação, o SUS tem sido, em geral, exitoso na expansão da atenção primária (promoção e prevenção), na cobertura de doenças crônicas, na diminuição dos gastos da base populacional da estrutura social e na redução do risco de exposição dos gastos catastróficos, em geral associados à alta complexidade tecnológica. Mas, a rigor, o gasto público é baixo e boa parte dos problemas de gestão decorre exatamente dessa restrição orçamentária, de modo que a renúncia de arrecadação fiscal, por ser peça-chave na reprodução econômica do mercado de planos de saúde, merece mais atenção das autoridades governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados.

Nesse contexto, a contradição central de tal subsídio reside em diminuir os gastos dos estratos superiores de renda e dos empregadores, ao mesmo tempo em que subtrai recursos que poderiam ser alocados no SUS, reforçando a iniquidade do sistema brasileiro, uma vez que piora a distribuição do gasto público per capita para os estratos inferiores e intermediários de renda. Isso se torna mais grave à medida que os subsídios não desafogam – completamente – os serviços médico-hospitalares do SUS, já que os usuários de planos de saúde utilizam seus serviços (vacinação, urgência e emergência, banco de sangue, transplante, hemodiálise, serviços de alto custo e de complexidade tecnológica). Dessa maneira, paradoxalmente, o SUS acaba socializando parte dos custos das operadoras – a exemplo do contencioso em torno do ressarcimento.

Subsídios: calcanhar de aquiles do SUS

Não é recomendável naturalizar a renúncia – aceitá-la como natural –, afastá-la de valores, normas e práticas que possibilitem o exercício do controle governamental sob o marco constitucional do SUS. Ela pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência.

Uma justificativa aceitável para o Ministério da Saúde preencher tal lacuna normativa deveria valer-se da suspeita que a renúncia de arrecadação fiscal pode afetar negativamente o financiamento do SUS e a equidade do sistema de saúde, em especial se se considerar seus efeitos positivos sobre a desconcentração de renda. Contudo, caso o governo federal queira radicalizar a carta constitucional em defesa da universalidade e da integralidade, outras premissas devem ser levadas em conta, tendo-se em mente as contradições encerradas na articulação entre o Estado e o mercado de planos de saúde: (i) o gasto tributário foi e é peça-chave para a reprodução do setor privado; (ii) esse subsídio não influencia a calibragem da política de reajustes de preços dos planos individuais praticada pela ANS (por exemplo, a ANVISA monitora a redução do preço dos medicamentos pela da desoneração fiscal patrocinada pelo governo, voltada à indústria farmacêutica); (iii) o montante da renúncia associado ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e ao Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) não é controlado pelo Ministério da Saúde, tampouco pelo Ministério da Fazenda – condicionada pela renda, ele depende, exclusivamente, do nível de gastos com saúde dos contribuintes.

De qualquer maneira, o Ministério da Saúde não pode desistir do seu papel de regular o gasto tributário em saúde, cujo desenho dependerá do projeto institucional do governo para o setor, bem como do seu poder de barganha para superar os conflitos distributivos na arena setorial e para resistir à sua captura pelo mercado. Existe assim um conjunto de evidências que estão indicando a seguinte perspectiva: o mecanismo da renúncia de arrecadação fiscal, apoiado pelo laissez-faire regulatório da ANS, pode induzir o crescimento do mercado de planos em detrimento do fortalecimento do SUS. Esse quadro reproduz iniquidades, uma vez que favorece os estratos superiores de renda e as atividades econômicas lucrativas do setor – cada vez mais concentradas, centralizadas e internacionalizadas. Essa situação é agravada, como apontam Emanuel & Fuchs 5. Emanuel EJ, Fuchs VR. Who really pays for health care? The myth of “shared responsibility”. JAMA 2008; 299:1057-9., dada a possibilidade de o empregador sonegar impostos e compartilhar custos relativos à assistência médica de seus empregados – ou pagando baixos salários, ou ofertando preços mais elevados.

Para que o sistema de saúde de saúde brasileiro supere esses desafios é necessária maior mobilização política para reestruturar o financiamento público e redefinir os papéis dos setores público e privado 6. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377:1778-97..

Considerações finais

O bloco sanitarista deve lutar para ampliar o financiamento, melhorar a gestão e fortalecer a participação social do SUS, porém, ao mesmo tempo, na crítica à privatização, deve propor a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios que permitam atrair segmentos da clientela da medicina privada para o SUS, bem como reduzir o gasto dos trabalhadores, das famílias e dos idosos com planos de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios (o envelhecimento populacional é um elemento determinante para a elevação dos gastos com saúde, em geral relacionado às doenças crônico-degenerativas, sinalizando a necessidade de transformações institucionais substantivas no SUS e na regulação do mercado de planos de saúde).

Diante da estagnação econômica e da crônica restrição orçamentária, uma medida efetiva para fortalecer o SUS e reorientar seu modelo de atenção seria convencer o governo e a sociedade acerca das externalidades positivas da eliminação, redução ou focalização dos subsídios: de um lado, coibindo a estratégia de elisão e/ou evasão fiscal dos empregadores e dos contribuintes de alta renda facilitada pela adoção de salários indiretos, e de outro, aplicando o gasto tributário associado aos planos de saúde – que alcançou aproximadamente R$ 9 bilhões em 2012 – na atenção primária (Programa Saúde da Família – PSF, promoção e prevenção à saúde etc.) e na média complexidade (unidades de pronto atendimento, prática clínica com profissionais especializados e recursos tecnológicos de apoios diagnóstico e terapêutico etc.).

Em outras palavras, a conversão de gasto público indireto em direto teria mais sentido clínico e epidemiológico se contribuísse para negar e superar o atual modelo de atenção assistencial, ou seja, se fustigasse o “sistema” duplicado e paralelo, que estimula a superprodução e o consumo desenfreado e que responde às condições crônicas na lógica de atenção das condições agudas, e, que ao final de um período mais longo, pode determinar resultados sanitários e econômicos desastrosos.

No contexto da globalização financeira no setor saúde 7. Waitzkin H. Medicine and public health at the end of empire. Boulder: Paradigm Publishers; 2011., considerando o perfil conservador da coalizão governamental e a frágil capacidade de pressão da sociedade civil, a expansão do mercado e dos subsídios em linha com a concepção do Obama Care e com a proposta dos organismos internacionais em torno da cobertura universal em saúde parece se afirmar como cenário mais plausível. Afinal – tendo em mente o desmonte do National Health System inglês –, as recentes mudanças prejudiciais ao financiamento do SUS e a criação de bases institucionais para internacionalização do mercado tendem a aprofundar o subfinanciamento do setor público e as desigualdades do sistema de saúde e da própria sociedade brasileira.

Referências

  • 1
    Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.
  • 2
    Vianna MLTW. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil: estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan; 1998.
  • 3
    Viana ALd’A, Silva HP, Lima LD, Machado CV. Financiamento estável e suficiente para garantir a universalidade. http://www.resbr.net.br/desafios-do-sistema-de-saude-brasileiro-parte-ii-financiamento-estavel-e-suficiente-para-garantir-a-universalidade/ (acessado em 08/Set/2014).
    » http://www.resbr.net.br/desafios-do-sistema-de-saude-brasileiro-parte-ii-financiamento-estavel-e-suficiente-para-garantir-a-universalidade/
  • 4
    Garcia LP, Sant’Anna AC, Magalhães LCG, Freitas LRS, Aurea AP. Gastos das famílias brasileiras com medicamentos segundo a renda familiar: análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002-2003 e de 2008-2009. Cad Saúde Pública 2013; 29:1605-16.
  • 5
    Emanuel EJ, Fuchs VR. Who really pays for health care? The myth of “shared responsibility”. JAMA 2008; 299:1057-9.
  • 6
    Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377:1778-97.
  • 7
    Waitzkin H. Medicine and public health at the end of empire. Boulder: Paradigm Publishers; 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2015
  • Aceito
    21 Maio 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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