Resumo
O estudo compara o perfil de óbitos por acidentes de trânsito em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, entre dois sistemas públicos de informação e os caracteriza valendo-se do cruzamento das bases de dados do trânsito (BH10) e de mortalidade (SIM). O banco relacionado (n = 306) apontou sub-registro de 24% dos óbitos e diferiu na distribuição etária com o BH10 e dos usuários da via com o SIM. A taxa de mortalidade no perímetro urbano de 10,2 por 100 mil residentes foi maior entre homens, jovens e idosos. A regressão multivariada de Poisson apontou maior número médio esperado de óbitos entre ocupantes de motocicleta (razão de médias – RM: 1,81); pedestres (RM: 1,32); homens (RM: 1,24); solteiros/separados (RM: 1,27); jovens de 18-29 anos (RM: 1,75); idosos (RM: 1,59); e no local do acidente (RM: 1,39), comparados às categorias de referência. O estudo descortina a violência no trânsito traduzida pela maior ocorrência dos óbitos na via e nas primeiras 24 horas, e confirma a relevância do relacionamento de sistemas de informação para caracterizar os grupos vulneráveis e os óbitos por acidentes de trânsito em ambiente urbano.
Acidentes de Trânsito; Mortalidade; Sistemas de Informação; Saúde Urbana
Introdução
Os acidentes de trânsito representam um relevante problema global de saúde pública e estão associados a fatores comportamentais, segurança dos veículos e precariedade do espaço urbano. Configuram-se como importantes causas de mortalidade e morbidade devido ao número crescente de veículos, mudanças no estilo de vida e comportamentos de risco na população geral 11. Kanchan T, Kulkarni V, Bakkannavar SM, Kumar N, Unnikrishnan B. Analysis of fatal road traffic accidents in a coastal township of South India. J Forensic Leg Med 2012; 19:448-51..
Estima-se, por ano, no mundo, que 50 milhões de pessoas sofram lesões e sequelas decorrentes de acidentes de trânsito, com 1,3 milhão de óbitos. Cerca de 62% dos óbitos ocorrem em dez países; o Brasil ocupa a quinta posição, precedido pela China, Índia, Rússia e Estados Unidos 22. World Health Organization. Global status report on road safety: time for action. http://who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2009 (accessed on 24/Jul/2012).
http://who.int/violence_injury_preventio... .
Estudos epidemiológicos têm demonstrado que os acidentes de trânsito apresentam distribuição diferente para sexo, idade, grupos sociais e áreas de risco, revelando situações de vulnerabilidade de pessoas e de lugar 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.,44. Mello Jorge MHP, Koizumi MS. Acidentes de trânsito no Brasil: um atlas de sua distribuição. São Paulo: Associação Brasileira de Medicina de Tráfego; 2007.. Assim, os acidentes devem ser abordados na perspectiva da Saúde Urbana, que integra aspectos da saúde dos habitantes da urbe indissociáveis dos atributos do ambiente construído 55. Sleet DA, Naumann RB, Rudd RA. Injuries and the built environment. In: Dannemberg AL, Frunkin H, Jackson RJ, editors. Making health places: designing and building for health, well-being and sustainability. Washington DC: Island Press; 2011. p. 77-89..
O aumento da motorização, especialmente nos países em desenvolvimento, não acompanhado de adequada infraestrutura viária e eficiente penalização das infrações, contribui para o incremento dos acidentes de trânsito, configurando o chamado caos urbano, de solução complexa, que demanda intervenções direcionadas à construção de um ambiente de tráfego seguro 66. Souza ER, Minayo MCS, Malaquias JV. Violência no trânsito: expressão da violência social. In: Ministério da Saúde, editor. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 279-312.,77. Nunes MN, Nascimento LFC. Internações hospitalares por acidentes de moto no Vale do Paraíba. Rev Assoc Med Bras 2010; 56:684-7..
No Brasil, o número de mortos e feridos graves ultrapassa 150 mil vítimas/ano, com gastos anuais girando em torno de 28 bilhões de Reais, além de altos custos sociais decorrentes da assistência, perdas materiais, despesas previdenciárias e do imensurável sofrimento das vítimas e seus familiares 77. Nunes MN, Nascimento LFC. Internações hospitalares por acidentes de moto no Vale do Paraíba. Rev Assoc Med Bras 2010; 56:684-7.,88. Bacchieri G, Barros AJD. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas mudanças e poucos resultados. Rev Saúde Pública 2011; 45:949-63.. Desde o modelo holístico sugerido por Haddon Jr. 99. Haddon Jr. W. The changing approach to the epidemiology, prevention, and amelioration of trauma: the transition to approaches etiologically rather than descriptively based. Am J Public Health Nations Health 1968; 58:1431-8. , que propõe que as lesões decorrentes dos acidentes de trânsito resultam da interação entre pessoas (fatores do hospedeiro), energia (fatores dos veículos) e o ambiente, não é mais possível admitir a dicotomia entre o planejamento da saúde e o urbano. As análises epidemiológicas com a caracterização dos acidentes e do perfil das vítimas deveriam ser usadas no planejamento do ambiente urbano, numa abordagem interdisciplinar e intersetorial para a organização do espaço urbano, como estratégia efetiva na prevenção de acidentes, propiciando um ambiente seguro, especialmente para os grupos mais vulneráveis 55. Sleet DA, Naumann RB, Rudd RA. Injuries and the built environment. In: Dannemberg AL, Frunkin H, Jackson RJ, editors. Making health places: designing and building for health, well-being and sustainability. Washington DC: Island Press; 2011. p. 77-89..
A implantação do Código de Trânsito Brasileiro em 1998 e as leis complementares, o controle municipal do trânsito, a melhoria da segurança dos veículos e a fiscalização eletrônica, apesar de importantes iniciativas, ainda são insuficientes para reduzir, de modo significativo, as mortes e as incapacidades 88. Bacchieri G, Barros AJD. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas mudanças e poucos resultados. Rev Saúde Pública 2011; 45:949-63.. A gravidade desse cenário, entre outros fatores, levou o Ministério da Saúde a implantar, em 2001, a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências 1010. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS no 737, de 16 de maio de 2001. Diário Oficial da União 2001; 18 mai. e criar, em 2006, o Projeto de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), que tem como um dos objetivos a caracterização dos atendimentos de emergência por violências e acidentes para conhecer a distribuição, magnitude e tendência desses agravos 1111. Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC, Moura L, Macário EM, Gawryszewski VP, et al. Perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por violências no sistema de serviços sentinela de vigilância de violências e acidentes (VIVA). Epidemiol Serv Saúde 2009; 18:17-28..
A Organização das Nações Unidas (ONU), em 2009, proclamou o período de 2011 a 2020 como a Década de Ação pela Segurança no Trânsito e instou os países, como o Brasil, a atingirem a meta de estabilizar e reduzir as mortes causadas pelo trânsito, por meio da implementação de um plano de ação voltado para cinco pilares de intervenção: fortalecimento da gestão; investimento em infraestrutura viária; segurança veicular; comportamento e segurança dos usuários do trânsito; além do atendimento pré-hospitalar e hospitalar ao trauma. Assim, em 2010, foi implantado o Projeto Vida no Trânsito – designação do Projeto Road Safety in 10 countries – RS10 (OMS/OPAS), no Brasil. A iniciativa, coordenada pelo Ministério da Saúde, busca o fortalecimento de políticas de prevenção de lesões e mortes no trânsito por meio da qualificação das informações, planejamento, monitoramento e avaliação das intervenções 1212. Morais Neto OL, Silva MMA, Lima CM, Malta DC, Silva Jr. JB. Projeto Vida no Trânsito: avaliação das ações em cinco capitais brasileiras, 2011-2012. Epidemiol Serv Saúde 2013; 22:373-82..
A prevenção dos acidentes de trânsito demanda o conhecimento das ocorrências, do perfil das vítimas, dos meios de transporte envolvidos e da localização das áreas de risco 1313. Cabral APS, Souza WV, Lima MLC. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência: um observatório dos acidentes de transportes terrestre em nível local. Rev Bras Epidemiol 2011; 14:3-14., e é dificultada pela dispersão dos dados em diversos sistemas de informação. Nesse sentido, o relacionamento das fontes revela a real magnitude dos acidentes 1414. Cryer PC, Westrup S, Ashwell V, Bridger P, Clarke C. Investigation of bias after data linkage of hospital admissions data to police road traffic crash reports. Inj Prev 2001; 7:234-41.,1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15..
Como verificado no Projeto Vida no Trânsito no Município de Belo Horizonte, Minas Gerais, divergências têm sido observadas nas análises independentes dos diferentes sistemas de informações, devido às deficiências atribuídas aos registros do trânsito, que incluem, quase exclusivamente, os óbitos ocorridos no local do acidente, e ao fato dos registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) não possibilitarem, muitas vezes, a identificação do acidente de trânsito como causa básica do óbito.
Portanto, a abordagem dos acidentes de trânsito na perspectiva da saúde urbana associada à integração e qualificação das informações disponíveis, ao permitir a comparação das diversas fontes 1414. Cryer PC, Westrup S, Ashwell V, Bridger P, Clarke C. Investigation of bias after data linkage of hospital admissions data to police road traffic crash reports. Inj Prev 2001; 7:234-41.,1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15., contribui para a implantação, desenvolvimento e monitoramento de políticas integradas de prevenção destes acidentes.
Assumindo a hipótese de que a qualificação das informações poderá revelar o real perfil de vulnerabilidade das vítimas fatais, este estudo tem como objetivo integrar dois sistemas de informação gerados em setores organizativos distintos da cidade, respectivamente o órgão responsável pelo transporte e trânsito e a Secretaria Municipal de Saúde, construindo uma base de dados relacionada de óbitos por acidentes de trânsito na cidade de Belo Horizonte, com vistas à caracterização do perfil das vítimas e identificação de vulnerabilidades entre usuários das vias urbanas.
Métodos
Estudo realizado com base no cruzamento de dois sistemas de informação: Sistema de Informação da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A – BHTRANS (BH10) e o SIM, descritos a seguir, resultando em um banco de dados denominado BH10-SIM. Esse banco relacionado incluiu as vítimas de acidentes de trânsito ocorridos nos limites do município no ano de 2010, que evoluíram para óbito e foram identificadas no SIM, nos anos de 2010 e 2011. As vítimas fatais de acidentes ocorridos nas rodovias dentro do perímetro urbano também foram consideradas na análise.
Procedimentos para o relacionamento dos bancos BH10 e SIM
O BH10 inclui os acidentes de trânsito com vítimas, registrados pela autoridade policial local nos boletins de ocorrência (BO), contendo as seguintes informações: tipo de acidente, circunstâncias, localização, indivíduos envolvidos, se feridos ou mortos.
O SIM é um sistema de informação baseado nas declarações de óbito, compondo o sistema de vigilância epidemiológica do país. As secretarias municipais de saúde são responsáveis pelo registro dos óbitos ocorridos na cidade, complementados pela retroalimentação do sistema, com os dados de óbitos de residentes, ocorridos em outros locais. A declaração de óbito (DO) por acidentes de trânsito, como uma das causas externas, deve ser emitida pelo Instituto Médico Legal (IML) e registrada no SIM 1616. Ministério da Saúde; Conselho Federal de Medicina. A Declaração de Óbito: documento necessário e importante. 2a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007..
Em 2010, o BH10 registrou 37.550 envolvidos em acidentes de trânsito (feridos ou não) e o SIM 41.080 registros de todos os óbitos ocorridos em Belo Horizonte, entre 1o de janeiro de 2010 e 31 dezembro de 2011.
As informações dos dois sistemas foram, então, integradas pelo programa Link Plus (Centers for Disease Control and Prevention; http://www.cdc.gov/cancer/npcr/tools/registryplus/lp.htm), utilizando-se como variáveis-chave nome completo das vítimas e idade. O software permite o cruzamento probabilístico de dados, usando-se sistemas fonéticos de codificação. Além do método exato de correspondência, identifica similaridade parcial, aproximada ou duvidosa, evitando que diferenças ortográficas ou de digitação interfiram na identificação dos pares.
O cruzamento inicial identificou 1.072 pares. A seguir, foi feita a verificação manual para a seleção final dos pares verdadeiros, por meio da identificação de vítimas de ocorrência de acidentes de trânsito que faleceram no local ou evoluíram para óbito após o acidente ocorrido no período estudado. Foram utilizadas as seguintes informações na comparação dos pares: nome, data de nascimento ou idade, intervalo entre data do acidente e óbito e causa básica. Resultaram no banco relacionado 311 registros de vítimas fatais de acidentes de trânsito ocorridos no Município de Belo Horizonte em 2010. Cinco registros foram excluídos por incompletude das informações, totalizando 306 para a análise (Figura 1).
Fluxograma do cruzamento dos bancos de dados BH10 e SIM. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010.
Comparação dos bancos originais com o banco relacionado (BH10-SIM)
Para comparar o banco SIM 2010 com o banco relacionado (n = 306) foram selecionados, no primeiro, os registros dos óbitos por acidentes de trânsito, códigos V01 a V89, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). A codificação foi agrupada em sete categorias denominadas “usuários da via”: pedestre, ocupante de bicicleta, ocupante de motocicleta, ocupante de automóvel, ocupante de veículo pesado, outros e não especificado.
Para comparar o banco relacionado com o BH10, que incluía todos os envolvidos em acidentes com vítimas, foram selecionadas as vítimas registradas como fatais.
Os bancos foram comparados quanto ao sexo, faixa etária e usuários da via.
Variáveis do banco relacionado
As variáveis que compuseram o banco relacionado foram: usuário da via (pedestre ocupante de bicicleta, de motocicleta, de automóvel, de veículo pesado); idade (em anos); faixa etária (≤ 17, 18-29, 30-39, 40-49, 50-59 e ≥ 60 anos); sexo (masculino feminino); cor da pele (branca, parda/preta); escolaridade (≤ 3, 4-7, 8-11 e 12 e mais anos de estudos); estado civil (casado, solteiro/separado, viúvo); e local da ocorrência do óbito (via pública, hospital).
A variável “intervalo”, que correspondia ao período decorrido entre o acidente e o óbito, foi criada e agrupada em três categorias: menos de 24 horas; 1 a 29 dias; 30 dias ou mais.
A variável operacionalmente denominada “local e tempo do óbito” integrou as informações do local de ocorrência do óbito e do intervalo de tempo entre o acidente e o óbito, sendo categorizada em: óbito no local do acidente (em via pública), no hospital em menos de 24 horas, entre 1 e 29 dias e em 30 dias ou mais.
Análise dos dados
A análise foi realizada em etapas. A primeira constou da comparação entre bancos e, a segunda, da análise multivariada do banco relacionado. Utilizou-se, para a primeira etapa, a comparação das proporções das variáveis usuários da via, faixa etária e sexo dos dois bancos originais com o banco relacionado, por meio do teste estatístico χ2 (qui-quadrado).
Para o cálculo das taxas de mortalidade específicas por faixa etária e sexo de residentes em Belo Horizonte, utilizou-se como denominador os dados populacionais do Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; http://www.censo2010.ibge.gov.br/painel/?nivel=mn, acessado em 15/Jan/2013).
Finalmente, usou-se a regressão de Poisson 1717. Szklo M, Nieto FJ. Epidemiology: beyond the basics. 3rd Ed. Burlington: Jones and Bartlett Learning; 2012.,1818. Dobson A, Barnett A. An introduction to generalized linear models. 3rd Ed. New York: Chapman & Hall; 2008. para modelar o comportamento do número médio de ocorrências de óbitos no período de tempo estudado, como uma função de variáveis referentes ao perfil das vítimas e circunstâncias dos acidentes, incluindo local e intervalo de tempo entre o óbito e o acidente.
Baseando-se na análise univariada, variáveis com significância estatística igual ou inferior a 20% foram incluídas no modelo multivariado. A variável cor da pele (p = 0,23) foi incluída pela relevância epidemiológica.
O modelo multivariado final foi composto pela introdução gradual das variáveis previamente selecionadas, partindo da variável “usuário da via”, para identificar o modelo que se mostrasse adequado e parcimonioso. Utilizou-se o teste estatístico Omnibus 1919. Paula GA. Modelos de regressão com apoio computacional. São Paulo: Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo; 2010. para verificar a adequação dos modelos e o teste estatístico de Wald para a avaliação da significância das variáveis. Foi estimado o valor esperado do número médio de óbitos como uma função das variáveis explicativas. Os coeficientes do modelo de regressão (eB = exponencial do coeficiente de regressão) traduzem a razão do número médio de óbitos (RM – conhecida na literatura como ratio rate) em cada categoria, quando comparada à categoria de referência, mantidas constantes as demais variáveis. Admitiu-se um nível de significância estatística de 5% e o intervalo de 95% de confiança.
Foram utilizados os softwares R 2.8.1 (The R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria; http://www.r-project.org) e SPSS 17.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) na análise de dados.
O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (pareceres no 158.014/2012 e no 182.177/2012).
Resultados
Dos bancos originais e do banco relacionado
No banco de dados BH10 constavam 247 óbitos provenientes dos BO referentes às mortes ocorridas no perímetro urbano de Belo Horizonte, no ano de 2010. Já no SIM, foram identificados 625 óbitos por acidentes de trânsito. Esses correspondiam aos acidentes ocorridos, no mesmo ano, tanto em Belo Horizonte quanto em outra localidade e cujos óbitos teriam ocorrido no município, de acordo com o protocolo do SIM.
O relacionamento dos bancos de dados (denominado BH10-SIM) resultou em 306 registros, representando os óbitos devidos a acidentes de trânsito que ocorreram no Município de Belo Horizonte, no ano de 2010.
Foi observado um sub-registro de 24%, equivalente a 59 óbitos identificados no banco relacionado e não registrados nos boletins de ocorrência (BH10).
Comparação dos bancos de dados originais com o banco relacionado (BH10-SIM)
A comparação do banco relacionado (BH10-SIM) com o BH10 mostrou diferença significativa na distribuição etária (p = 0,001), sendo que o relacionamento dos bancos revelou um maior percentual de óbitos em indivíduos com 60 anos e mais. Por outro lado, comparando o banco relacionado com o SIM foi observada uma diferente distribuição na categoria usuários da via (p = 0,015), com maior proporção de vítimas fatais ocupantes de motocicleta e pedestres, além de menor proporção de ocupantes de automóvel no banco BH10-SIM (Tabela 1).
Quanto ao sexo, o BH10-SIM apresentou semelhante distribuição dos óbitos entre homens e mulheres, tanto na comparação com o BH10 quanto com o SIM (p > 0,05).
Taxas de mortalidade por causa específica, idade e sexo
Dos 306 óbitos ocorridos em Belo Horizonte, 238 (78%) eram de residentes no município, resultando em taxa de mortalidade por acidente de trânsito no perímetro urbano de 10,02/100.000 habitantes; mais elevada entre os homens (17,06) em relação às mulheres (3,80). Maior risco de morrer por acidentes de trânsito, por cem mil habitantes, foi identificado entre os idosos (18,36) e os jovens de 18 a 29 anos (15,03) no município.
Análise das características das vítimas fatais
Cerca de 82% eram do sexo masculino, mais da metade adultos jovens, 60% pardos/pretos e 68% solteiros ou separados. Quase metade (47%) das vítimas fatais apresentava menos de oito anos de estudos. Os idosos representaram 21% das vítimas (Tabela 2).
Pedestres (49%) e ocupantes de motocicleta (31%) totalizaram 80% dos óbitos, sinalizando a vulnerabilidade destes grupos. Ocupantes de automóvel corresponderam a 15% e óbitos de ocupantes de veículos pesados e de bicicleta corresponderam a menos de 3% cada grupo (Tabela 2).
A análise conjunta do local e tempo entre o acidente e a morte revelou 125 (41%) óbitos na via pública e 79 (26%) que faleceram no hospital com menos de um dia de internação, somando 204 (67%) óbitos dentro das primeiras 24 horas. Dentre as 181 vítimas que foram encaminhadas aos hospitais e posteriormente faleceram, a gravidade da lesão foi evidenciada pelo percentual elevado de óbitos dentro de 24 horas (44%). Somente 7% dos óbitos ocorreram 30 dias ou mais após o acidente de trânsito.
Nas três principais categorias de “usuários da via”, observou-se que entre os 45 ocupantes de automóvel, 82% morreram nas primeiras 24 horas, sendo 60% no próprio local do acidente, ou seja, na via pública. Dos 95 óbitos de ocupantes de motocicletas, 74% ocorreram nas primeiras 24 horas após o acidentes de trânsito, e quase a metade (48%) ocorreu em via pública. Apesar de 60% dos pedestres terem falecido nas primeiras 24 horas, nesse grupo, cerca de um terço dos óbitos ocorreu entre um e 29 dias (31%). Mais da metade (53%) dos ocupantes de bicicletas e de veículos pesados faleceram durante a internação hospitalar (Figura 2).
Distribuição percentual dos óbitos por usuário da via e local e tempo entre o acidente e o óbito (2a), usuário da via e faixa etária (2b), faixa etária e local e tempo (2c), local e tempo e usuário da via (2d). Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010.
Em relação aos 125 óbitos ocorridos em via pública, pedestres e ocupantes de motocicleta apresentaram porcentuais semelhantes, 36 e 37%, respectivamente. No entanto, no hospital, independentemente do período pós-acidentes de trânsito, pedestre foi sempre o grupo predominante (Figura 2).
A distribuição etária diferiu quanto à variável “usuários da via”, local e o intervalo entre o acidente de trânsito e óbito. Dentre os pedestres, observou-se que 40% eram indivíduos de 60 anos e mais. Por outro lado, entre os ocupantes de motocicletas (59%) ou de automóvel (49%) e nos demais grupos (41%) predominaram os jovens de 18 a 29 anos (Figura 2).
Na faixa etária de 18 a 29 anos, quase a metade das mortes (48,5%) ocorreu na via pública, totalizando 72 (73%) óbitos nas primeiras 24 horas. Por outro lado, menores de 18 anos e idosos (60 anos e mais), apresentaram porcentuais menores de mortes no local do acidente (inferiores a 20%). Entretanto, somente 8% dos menores de 18 anos faleceram nas 24 horas de internação hospitalar, enquanto para os idosos, este percentual alcançou 38% (Figura 2).
O perfil das vítimas mostrou diferenças na estratificação dos óbitos segundo a variável “usuário da via”. Entre os óbitos de pedestres, 72% eram homens, com idade média e mediana de 54 anos (DP = 22,3), 61% pardos/pretos, 46% casados ou viúvos, 68% com baixa escolaridade (< 8 anos) (dados não apresentados).
Os ocupantes de motocicleta eram homens (97%), com idade média de 28,9 anos (DP = 9,3) e mediana de 26 anos, pardos/pretos (54%), solteiros ou separados (78%) e escolaridade entre 8 e 11 anos (60%). Homens (76%) permaneceram como as principais vítimas fatais entre os ocupantes de automóvel, com idade média de 33,2 anos (DP = 12,9) e mediana de 29 anos, pardos/pretos (58%) e solteiros ou separados (80%), sendo o grupo com maior percentual de escolaridade acima de 11 anos (29%) (dados não apresentados).
Das 56 mulheres que evoluíram para o óbito, 75% eram pedestres e apenas três eram ocupantes de motocicleta. Mais de 60% delas morreram nas primeiras 24 horas, sendo que 32% no próprio local do acidente. Entre os homens, 43% eram pedestres, 37% ocupantes de motocicleta e 41% morreram na via pública (dados não apresentados).
A análise univariada da regressão de Poisson (Tabela 2) indica que o valor esperado do número médio de óbitos foi: (a) entre ocupantes de motocicleta, 68% maior que o valor esperado para ocupantes de veículos pesados; (b) entre homens, 29% maior em relação às mulheres; e (c) nas faixas etárias de 18 a 29 e 60 ou mais anos, 83,3% e 30,6% maiores, respectivamente, quando comparados aos menores de 18 anos. Em relação ao estado civil, para solteiros ou separados o número médio esperado de óbitos foi 23,8% maior que o esperado para os casados. Cor da pele e escolaridade não mostraram diferenças significativas (p > 0,05) em relação às respectivas categorias de referência.
Observou-se um aumento de 43% (RM: 1.43; IC95%: 1,12-1,83) no número médio esperado de mortes no local do acidente em relação ao hospital e de 34% (RM: 1,34; IC95%: 1,11-1,62) dentro das 24 horas, quando comparado ao intervalo de 30 dias ou mais entre o acidente e o óbito.
No modelo multivariado final (Tabela 3) observou-se um maior número médio esperado de óbitos entre os ocupantes de motocicleta (RM: 1,81; IC95%: 1,29- 2,55) e pedestres (RM: 1,32; IC95%: 1,02-1,71) em relação aos ocupantes de veículos pesados, após ajuste por sexo, estado civil, faixa etária e “local e tempo do óbito”. Mantendo-se as demais variáveis constantes, o número médio esperado de mortes foi 24% maior entre homens do que entre as mulheres (RM: 1,24; IC95%: 1,079-1,44); 27% maior entre solteiros ou separados do que entre os casados (RM: 1,27; IC95%: 1,07-1,53); 75% e 60% mais elevados entre jovens de 18 a 29 anos e idosos, respectivamente (RM: 1,75; IC95%: 1,33-2,29 para o primeiro e RM: 1,60; IC95%: 1,24-2,06, para o segundo), quando comparados aos menores de 18 anos.
O valor esperado do número médio de óbitos em via pública foi 39% (RM: 1,39; IC95%:1,12-1,74) maior em relação ao óbito hospitalar em 30 dias ou mais. O modelo final mostrou-se estatisticamente significativo pelo teste estatístico Omnibus (p = 0,022).
Por ter sido identificada forte associação entre faixa etária e grupo de usuário da via (p < 0,01), testou-se a inclusão do fator interação no modelo. Entretanto, o modelo com o termo de interação não foi estatisticamente significativo (teste Omnibus, p = 0,266).
Discussão
O estudo mostra a relevância dos acidentes de trânsito como problema de saúde pública, chamando a atenção para a gravidade da ocorrência em homens jovens, solteiros ou separados, ocupantes de motocicletas e idosos, enquanto pedestres, caracterizando-os como de alta vulnerabilidade. A análise descortina a violência no trânsito traduzida pela maior ocorrência dos óbitos no local do evento e nas primeiras 24 horas, sugerindo que este tipo de violência representa, juntamente com os homicídios, grande ameaça à vida dos brasileiros 66. Souza ER, Minayo MCS, Malaquias JV. Violência no trânsito: expressão da violência social. In: Ministério da Saúde, editor. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 279-312.. Os achados referentes ao predomínio de idosos (40%) entre os pedestres e de jovens nas demais categorias de usuários são descritos por outros estudos 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.,88. Bacchieri G, Barros AJD. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas mudanças e poucos resultados. Rev Saúde Pública 2011; 45:949-63. e reforçam a ideia de que o uso do espaço urbano nas cidades brasileiras, caracterizadas por grandes aglomerações populacionais, vem gerando desigualdades injustas no trânsito, privilegiando os automóveis e o transporte individual, em detrimento da mobilidade do pedestre e de usuários de transporte coletivo, representados principalmente por indivíduos de classes sociais menos favorecidas, demandando ações que possam intervir na redução das iniquidades sociais 2020. Hyder A, Peden M. Inequality and road-traffic injuries: call for action. Lancet 2003; 362:2034-5..
Ao se privilegiar, por concepção estrutural, as demandas por fluidez nos deslocamentos por automóveis, em detrimento da segurança do sistema como um todo 2121. Marini RL. Acidentes de trânsito em Belo Horizonte: fatores associados ao atendimento pré-hospitalar, internações e óbitos em 1994 e 2003 [PhD Dissertation]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2007.,2222. Vasconcelos EA. O custo social da motocicleta no Brasil. Revista dos Transportes Públicos 2008; 30/31:127-42., geram-se iniquidades, aqui evidenciadas pelos dois grupos etários de maior vulnerabilidade. Por um lado, os homens jovens, de 18 a 29 anos e a sua relação com o uso de motocicleta como meio de transporte ou de trabalho 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.,1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15.,2323. Silva PHNV. Epidemiologia dos acidentes de trânsito com foco na mortalidade de motociclistas no estado de Pernambuco: uma exacerbação da violência social [PhD Dissertation]. Recife: Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2012.,2424. Legay LF, Santos SA, Lovisi GM, Aguiar JS, Borges JC, Mesquita RM, et al. Acidentes de transporte envolvendo motocicletas: perfil epidemiológico das vítimas de três capitais de estados brasileiros, 2007. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:283-92.. Por outro, os idosos, cujo número médio de óbitos foi 60% maior em relação aos menores de 18 anos, em geral decorrentes de atropelamento, estabelecem precária relação com um espaço urbano que, por sua vez, não privilegia sua limitada capacidade funcional, especialmente da marcha e visual. Essa difícil relação é traduzida nos tempos semafóricos que levam à grande tempo de espera e são insuficientes para uma travessia segura. Soma-se o menor entendimento da sinalização e da lógica do fluxo de veículos, em especial nos cruzamentos, atribuídos, em grande parte, à baixa escolaridade observada nesse grupo 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.,88. Bacchieri G, Barros AJD. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas mudanças e poucos resultados. Rev Saúde Pública 2011; 45:949-63..
O menor número de mortes de ocupantes de bicicleta, cuja vulnerabilidade foi apontada em estudos descritivos 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.,2525. Freitas JPP, Ribeiro LA, Jorge MT. Vítimas de acidentes de trânsito na faixa etária pediátrica atendidas em um hospital universitário: aspectos epidemiológicos e clínicos. Cad Saúde Pública 2007; 23:3055-60., pode ser explicado por este não ser considerado ainda como meio de transporte local usual, provavelmente, além de questões culturais, devido ao relevo montanhoso da cidade.
Entre mulheres vítimas fatais de acidentes, o maior número de pedestres (75%) ou ocupantes de automóvel (20%) também confirmam dados da literatura 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8..
A gravidade dos acidentes na área urbana foi evidenciada pela relativa elevada ocorrência dos óbitos no local do acidente (39%) ou nas primeiras 24 horas (67%), em relação às mortes em 30 dias ou mais, resultado também consonante com outros estudos 11. Kanchan T, Kulkarni V, Bakkannavar SM, Kumar N, Unnikrishnan B. Analysis of fatal road traffic accidents in a coastal township of South India. J Forensic Leg Med 2012; 19:448-51.,1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15.. Além disso, o elevado percentual de mortes de ocupantes de automóvel na via, que não estão entre os usuários da via mais vulneráveis, aponta para a gravidade dos acidentes de trânsito e reforça a importância de intervenções nos limites de velocidade urbana.
Esses achados ampliam as discussões relativas à melhoria das assistências pré-hospitalar e hospitalar, essencial para a redução da letalidade dos acidentes de trânsito, tendo a medicina de urgência estabelecido o tempo de 60 minutos até o atendimento como um importante fator prognóstico das lesões 2121. Marini RL. Acidentes de trânsito em Belo Horizonte: fatores associados ao atendimento pré-hospitalar, internações e óbitos em 1994 e 2003 [PhD Dissertation]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2007..
Apesar de o estudo não ter identificado associação entre o número de óbitos e a cor da pele e a escolaridade (p > 0,05), o encontro de cerca de 60% de indivíduos pardos/pretos entre as vítimas, percentual superior ao encontrado na população local e a baixa escolaridade, presente em 47% dos mortos, sugere o envolvimento de fatores sociais, possíveis marcadores de posição social e econômica das vítimas, com raízes nos determinantes sociais da saúde 2626. Caiaffa WT, Friche AAL. Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity? Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2238-41.,2727. Montenegro MMS, Duarte EC, Prado RR, Nascimento AF. Mortalidade de motociclistas em acidentes de transporte no Distrito Federal, 1996-2007. Rev Saúde Pública 2011; 45:529-38.. Esses resultados corroboram aqueles do Inquérito VIVA, que encontrou percentual similar para as capitais do país 2828. Malta DC, Bernal RT, Mascarenhas MDM, Monteiro RA, Sá NNB, Andrade SSCA, et al. Atendimentos por acidentes de transporte em serviços públicos de emergência em 23 capitais e no Distrito Federal- Brasil, 2009. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:31-42..
O ambiente urbano de países com desigualdades sociais, decorrente do crescimento desordenado e da falta de controle da atividade econômica, cuja gestão vem sendo retardada pelas pressões da globalização 2626. Caiaffa WT, Friche AAL. Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity? Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2238-41.,2929. Golias ARC, Caetano R. Acidentes entre motocicletas: análise dos casos ocorridos no estado do Paraná entre julho de 2010 e junho de 2011. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1235-46., condiciona e estimula o uso de motocicletas como meio de transporte e de trabalho. Essa tendência crescente é observada em vários países 11. Kanchan T, Kulkarni V, Bakkannavar SM, Kumar N, Unnikrishnan B. Analysis of fatal road traffic accidents in a coastal township of South India. J Forensic Leg Med 2012; 19:448-51.,3030. Guoqing H. Comparing road traffic mortality rates from police-reported data and death registration data in China. Bull World Health Organ 2011; 89:41. e no Brasil 2727. Montenegro MMS, Duarte EC, Prado RR, Nascimento AF. Mortalidade de motociclistas em acidentes de transporte no Distrito Federal, 1996-2007. Rev Saúde Pública 2011; 45:529-38.,2828. Malta DC, Bernal RT, Mascarenhas MDM, Monteiro RA, Sá NNB, Andrade SSCA, et al. Atendimentos por acidentes de transporte em serviços públicos de emergência em 23 capitais e no Distrito Federal- Brasil, 2009. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:31-42.,3131. Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Junior JB, Silva MMA, Lima CM, et al. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2223-36., onde as vendas de motocicletas foram multiplicadas por doze enquanto que as de automóveis aumentaram quatro vezes, entre 1992 e 2007. A aquisição desses veículos tem sido maior entre os grupos de menor renda, influenciada pelas condições de financiamento, estimulada pelo Governo Federal 2222. Vasconcelos EA. O custo social da motocicleta no Brasil. Revista dos Transportes Públicos 2008; 30/31:127-42. e pela criação de novos postos de trabalho terceirizados, como motoboys e mototaxistas 3232. Silva PHNV, Lima MLC, Moreira RS, Souza WV, Cabral APS. Estudo espacial da mortalidade por acidentes de motocicleta em Pernambuco. Rev Saúde Pública 2011; 45:409-15.. Enquanto a rapidez, como um ideário nas práticas sociais e econômicas, é alcançada no trânsito com a utilização da motocicleta, a exposição e vulnerabilidade de seu ocupante se avolumam, e o risco é assumido com naturalidade, face ao perfil desse grupo, caracterizado por homens jovens 2323. Silva PHNV. Epidemiologia dos acidentes de trânsito com foco na mortalidade de motociclistas no estado de Pernambuco: uma exacerbação da violência social [PhD Dissertation]. Recife: Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2012.,2424. Legay LF, Santos SA, Lovisi GM, Aguiar JS, Borges JC, Mesquita RM, et al. Acidentes de transporte envolvendo motocicletas: perfil epidemiológico das vítimas de três capitais de estados brasileiros, 2007. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:283-92.. Fatores contextuais que perpassam uma ineficiente legislação de trânsito ao não proibir o condutor de motocicletas a passagem entre veículos de filas adjacentes 3333. Brasil. Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial da União 1997; 24 set. e a insuficiente intervenção das autoridades públicas neste fenômeno, representado pelo aumento exponencial do número de motocicletas nas vias públicas, só amplificam o problema 3434. Minayo MCS. Morre menos quem morre no trânsito? Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2237-8..
Do ponto de vista metodológico, a estratégia de combinar bancos de dados em acidentes de trânsito, baseou-se na experiência de outros autores em pesquisas de mortalidade 1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15. ou de morbidade 1414. Cryer PC, Westrup S, Ashwell V, Bridger P, Clarke C. Investigation of bias after data linkage of hospital admissions data to police road traffic crash reports. Inj Prev 2001; 7:234-41.. A estratégia confirmou a complementaridade das duas fontes de dados utilizadas ao compará-las com o banco final relacionado (BH10-SIM). Ficou demonstrado que o uso exclusivo de informações do banco de mortalidade (SIM) não contempla adequadamente nem a identificação dos usuários da via envolvidos, nem o intervalo de tempo entre o acidente e o óbito, essenciais para o conhecimento do perfil destes óbitos. Além disso, não permite a discriminação dos acidentes de trânsito ocorridos no perímetro urbano ou em rodovias, ou mesmo em outros municípios, pelo fato do SIM registrar, quase sempre, somente o local da morte, e não do acidente.
Por outro lado, as variáveis demográficas do BO, limitadas à idade e sexo, dificultam ou até impossibilitam a adequada caracterização das vítimas. As informações dos registros policiais tendem a subestimar os óbitos 33. Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8., por incluir quase exclusivamente os ocorridos na via, e assim gerar um perfil diferente daquele obtido no banco relacionado com o SIM.
O sub-registro de 24% foi superior ao estimado em um estudo espanhol, que encontrou até 6,6% e destacou a importância da utilização de registros de saúde para óbitos ocorridos após 24 horas do acidente 1515. Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15.. A identificação de 7% de registros de óbitos por acidentes de trânsito em 30 dias ou mais, no presente trabalho, sugere que o limite proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 22. World Health Organization. Global status report on road safety: time for action. http://who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2009 (accessed on 24/Jul/2012).
http://who.int/violence_injury_preventio... pode estar subestimando estes indicadores.
As taxas de mortalidade por acidentes de trânsito delimitados ao perímetro urbano da cidade para seus residentes, também pode levar à subestimação desse indicador, dificultando ou mesmo impossibilitando a comparabilidade com os dados da literatura, pois, a maioria dos estudos, não analisa somente as mortes por acidentes ocorridos no município, abordando os óbitos dos residentes, independentemente de onde o acidente tenha ocorrido. O risco de morrer na cidade por acidentes de trânsito mostrou diferenças entre sexo e faixa etária, sendo muito superior nos homens, nas faixas etárias extremas – jovens e idosos – achados consistentes com as análises realizadas para o total de óbitos ocorridos.
O estudo apresenta pontos fortes tanto no que diz respeito à integração de diferentes fontes de dados para qualificar as informações como no que se refere à identificação de perfis de usuários vulneráveis, entretanto, apresenta algumas fragilidades.
Viéses de informação constituem limitações usuais, quando são utilizados registros secundários, que originalmente não são coletados com o objetivo de pesquisa. As informações do SIM nem sempre trazem dados relevantes sobre a circunstância dos óbitos, e os dados dos boletins de ocorrência, preenchidos pelos policiais no momento do acidente, podem omitir informações cruciais para o entendimento do acidente.
O relacionamento de registros, apesar de indubitavelmente qualificar as informações, pode predispor a erros nas várias etapas do processo, desde a entrada dos dados da identificação, passando pela fase de confrontação das informações dos diferentes sistemas, o que configura uma atividade árdua, monótona e demorada. Entretanto, a cuidadosa revisão manual dos pares verdadeiros e a procura minuciosa de inconsistências, certamente minimizaram a ocorrência de eventuais equívocos.
A qualificação dos dados possibilitou uma estimativa mais realística dos acidentes de trânsito fatais, com a adição de 24% de óbitos e melhor caracterização das vítimas. A impossibilidade de calcular as taxas de mortalidade por acidentes ocorridos em Belo Horizonte, pela dificuldade de se estimar a população exposta ao risco, pode ser outra limitação do estudo. Contudo, a regressão de Poisson possibilitou a estimativa do número médio de óbitos por acidentes de trânsito como uma função das variáveis explicativas disponíveis.
Este trabalho enfatiza a relevância da morte prematura de uma população economicamente ativa, importante força de trabalho e provedora de suas famílias, com perda irreparável para a sociedade e prejuízo para a nação. Sinaliza ainda que a reversão do cenário de violência no trânsito exige ações intersetoriais integradas e sustentadas, e que a identificação de fatores do ambiente que influenciaram nas lesões por acidentes de trânsito deve ser usada no planejamento do ambiente urbano, por meio da interseção da saúde pública com outras disciplinas, promovendo a realização de intervenções preventivas e protetivas.
Os resultados reforçam também a necessidade de estudos que monitorem medidas educacionais, incluindo o comportamento no trânsito, o uso de álcool e drogas pelos condutores dos veículos e pelas vítimas, incluindo os pedestres, além de análises detalhadas das vias onde ocorrem o maior número de atropelamentos e outros acidentes fatais. Contribuíram também para fomentar as discussões de intervenções mais específicas, bem como políticas de mobilidade com adequação do espaço urbano, priorizando os grupos vulneráveis, melhorias no transporte coletivo, efetivo controle da velocidade com ações de fiscalização rigorosas e contínuas, além de estratégias que garantam a assistência pré-hospitalar e hospitalar oportuna e qualificada.
Considerando que as lesões por acidentes de trânsito decorrem da interação entre pessoas, veículos e ambiente, o planejamento da saúde e o urbano devem se organizar, no sentido de responder às contemporâneas necessidades da população na área de mobilidade e transporte, assegurando a qualidade de vida e a proteção, em especial dos grupos vulneráveis: pedestres, usuários de transporte não motorizados e motociclistas.
Um trânsito sem violência é a expressão de cidadania, traduzida pela responsabilidade social de cada um dos envolvidos – usuários, indústrias automobilísticas, empresas de transporte, em especial as organizadoras do transporte urbano e o poder público, na construção de ambientes seguros.
A identificação multidisciplinar de fatores que influenciam lesões por acidentes de trânsito, realizada por profissionais das áreas de planejamento urbano, controle de trânsito e saúde, deve subsidiar a definição de intervenções protetivas, que visam a evitar lesões, incapacidades e mortes, contribuindo na criação de um ambiente mais seguro.
As mudanças nos veículos e nas vias estão entre as estratégias mais bem-sucedidas na redução das lesões por acidentes de trânsito e foram responsáveis pela melhora nos índices de morte no decorrer do século XX. Estratégias simultâneas de construção de ambiente protetivo a lesões por acidentes de trânsito, modificações na segurança veicular, fiscalização e intervenções educativas para alterações comportamentais enfatizam a responsabilidade coletiva e a individual, indispensáveis para a redução das lesões por acidentes de trânsito.
A representação simbólica dos veículos automotores na sociedade contemporânea é vinculada à posição social mais elevada e ao poder, incluindo percepções de prestígio, liberdade e prazer. Assim, torna-se desafiador alcançar a mobilização da população em torno de posturas seguras e solidárias no cumprimento da lei e responsabilidade no trânsito, reforçando a ideia de que os acidentes de trânsito não devem ser considerados acidentes ou fatalidades e sim eventos passíveis de prevenção e controle, por meio de ações efetivas que coíbam a vitimização de cidadãos no exercício do direito elementar de ir e vir.
Agradecimentos
À Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS) e à Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte pela disponibilização dos dados. Ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa concedida a W. T. Caiaffa.
Referências bibliográficas
- 1Kanchan T, Kulkarni V, Bakkannavar SM, Kumar N, Unnikrishnan B. Analysis of fatal road traffic accidents in a coastal township of South India. J Forensic Leg Med 2012; 19:448-51.
- 2World Health Organization. Global status report on road safety: time for action. http://who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2009 (accessed on 24/Jul/2012).
» http://who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2009 - 3Spoerri A, Egger M, von Elm E. Mortality from road traffic accidents in Switzerland: longitudinal and spatial analyses. Accid Anal Prev 2011; 43:40-8.
- 4Mello Jorge MHP, Koizumi MS. Acidentes de trânsito no Brasil: um atlas de sua distribuição. São Paulo: Associação Brasileira de Medicina de Tráfego; 2007.
- 5Sleet DA, Naumann RB, Rudd RA. Injuries and the built environment. In: Dannemberg AL, Frunkin H, Jackson RJ, editors. Making health places: designing and building for health, well-being and sustainability. Washington DC: Island Press; 2011. p. 77-89.
- 6Souza ER, Minayo MCS, Malaquias JV. Violência no trânsito: expressão da violência social. In: Ministério da Saúde, editor. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 279-312.
- 7Nunes MN, Nascimento LFC. Internações hospitalares por acidentes de moto no Vale do Paraíba. Rev Assoc Med Bras 2010; 56:684-7.
- 8Bacchieri G, Barros AJD. Acidentes de trânsito no Brasil de 1998 a 2010: muitas mudanças e poucos resultados. Rev Saúde Pública 2011; 45:949-63.
- 9Haddon Jr. W. The changing approach to the epidemiology, prevention, and amelioration of trauma: the transition to approaches etiologically rather than descriptively based. Am J Public Health Nations Health 1968; 58:1431-8.
- 10Ministério da Saúde. Portaria GM/MS no 737, de 16 de maio de 2001. Diário Oficial da União 2001; 18 mai.
- 11Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC, Moura L, Macário EM, Gawryszewski VP, et al. Perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por violências no sistema de serviços sentinela de vigilância de violências e acidentes (VIVA). Epidemiol Serv Saúde 2009; 18:17-28.
- 12Morais Neto OL, Silva MMA, Lima CM, Malta DC, Silva Jr. JB. Projeto Vida no Trânsito: avaliação das ações em cinco capitais brasileiras, 2011-2012. Epidemiol Serv Saúde 2013; 22:373-82.
- 13Cabral APS, Souza WV, Lima MLC. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência: um observatório dos acidentes de transportes terrestre em nível local. Rev Bras Epidemiol 2011; 14:3-14.
- 14Cryer PC, Westrup S, Ashwell V, Bridger P, Clarke C. Investigation of bias after data linkage of hospital admissions data to police road traffic crash reports. Inj Prev 2001; 7:234-41.
- 15Pérez C, Cirera E, Borrell C, Plasència A. Motor vehicle crash fatalities at 30 days in Spain. Gac Sanit 2006; 20:108-15.
- 16Ministério da Saúde; Conselho Federal de Medicina. A Declaração de Óbito: documento necessário e importante. 2a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.
- 17Szklo M, Nieto FJ. Epidemiology: beyond the basics. 3rd Ed. Burlington: Jones and Bartlett Learning; 2012.
- 18Dobson A, Barnett A. An introduction to generalized linear models. 3rd Ed. New York: Chapman & Hall; 2008.
- 19Paula GA. Modelos de regressão com apoio computacional. São Paulo: Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo; 2010.
- 20Hyder A, Peden M. Inequality and road-traffic injuries: call for action. Lancet 2003; 362:2034-5.
- 21Marini RL. Acidentes de trânsito em Belo Horizonte: fatores associados ao atendimento pré-hospitalar, internações e óbitos em 1994 e 2003 [PhD Dissertation]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2007.
- 22Vasconcelos EA. O custo social da motocicleta no Brasil. Revista dos Transportes Públicos 2008; 30/31:127-42.
- 23Silva PHNV. Epidemiologia dos acidentes de trânsito com foco na mortalidade de motociclistas no estado de Pernambuco: uma exacerbação da violência social [PhD Dissertation]. Recife: Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2012.
- 24Legay LF, Santos SA, Lovisi GM, Aguiar JS, Borges JC, Mesquita RM, et al. Acidentes de transporte envolvendo motocicletas: perfil epidemiológico das vítimas de três capitais de estados brasileiros, 2007. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:283-92.
- 25Freitas JPP, Ribeiro LA, Jorge MT. Vítimas de acidentes de trânsito na faixa etária pediátrica atendidas em um hospital universitário: aspectos epidemiológicos e clínicos. Cad Saúde Pública 2007; 23:3055-60.
- 26Caiaffa WT, Friche AAL. Urbanization, globalization and road safety: a potential dialogue in search of equity? Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2238-41.
- 27Montenegro MMS, Duarte EC, Prado RR, Nascimento AF. Mortalidade de motociclistas em acidentes de transporte no Distrito Federal, 1996-2007. Rev Saúde Pública 2011; 45:529-38.
- 28Malta DC, Bernal RT, Mascarenhas MDM, Monteiro RA, Sá NNB, Andrade SSCA, et al. Atendimentos por acidentes de transporte em serviços públicos de emergência em 23 capitais e no Distrito Federal- Brasil, 2009. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:31-42.
- 29Golias ARC, Caetano R. Acidentes entre motocicletas: análise dos casos ocorridos no estado do Paraná entre julho de 2010 e junho de 2011. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1235-46.
- 30Guoqing H. Comparing road traffic mortality rates from police-reported data and death registration data in China. Bull World Health Organ 2011; 89:41.
- 31Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Junior JB, Silva MMA, Lima CM, et al. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2223-36.
- 32Silva PHNV, Lima MLC, Moreira RS, Souza WV, Cabral APS. Estudo espacial da mortalidade por acidentes de motocicleta em Pernambuco. Rev Saúde Pública 2011; 45:409-15.
- 33Brasil. Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial da União 1997; 24 set.
- 34Minayo MCS. Morre menos quem morre no trânsito? Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:2237-8.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Nov 2015
Histórico
- Recebido
26 Maio 2014 - Revisado
11 Set 2014 - Aceito
16 Set 2014