A medicina que vibra na doença e o corpo que não aguenta mais: parto, resistência e subjetivação no cenário contemporâneo da medicalização
Rosamaria Giatti Carneiro nos brinda com o livro Cenas de Parto e Políticas do Corpo, fruto de pesquisa etnográfica empreendida no curso do doutorado. Ele nasce em um cenário em que 56% dos nascimentos no Brasil se dão via cesariana, intensas controvérsias envolvem a assistência ao parto e profissionais de saúde, autoridades ministeriais e movimentos de humanização procuram formular políticas para transformação do modelo assistencial. O olhar da autora está atento a tudo isso, mas nos chama a descortinar novas paisagens. Ela trata de "cenas de parto diferentes das costumeiramente vistas nos hospitais - em que o cotidiano é de cesáreas -, de histórias de mulheres que experimentaram outras formas de dar à luz, de suas narrativas e sobre as implicações sociais desse tipo de prática" (p. 33). Um trabalho que parte de "um registro simbólico feminino: a fala de mulheres que se envolveram com o ideário do parto humanizado" (p. 36), histórias que são exploradas em diálogo com muitos "autores parceiros" e à luz de diversas "aberturas teóricas".
Os capítulos são organizados de modo a conduzir o leitor da margem ao cerne da questão do parir no Brasil contemporâneo, segundo perspectivas teóricas e políticas eleitas por Rosamaria. O primeiro capítulo contextualiza o objeto estudado, percorrendo o processo de transformações do parto no Brasil, discutindo a medicalização desse evento e a noção de "humanização do parto", em diálogo com autores da antropologia e da saúde coletiva. A autora se propõe a "problematizar as práticas de parto mais naturais à luz de seus registros femininos" e trabalhar "a ideia de que esse parir diferente se configura como outro paradigma de parto e como uma possível reação à ideia de medicalização da sociedade" (p. 69).
O percurso empreendido no desenvolvimento do estudo é apresentado no capítulo Em Campo e em Jogo: Práticas de Parto, Emoções e Traduções. Para entender práticas de parir menos costumeiras, Rosamaria frequentou grupos de preparo para o parto com casais e mulheres que aderiram ao ideário do parto humanizado, no interior de São Paulo, realizou entrevistas e acompanhou listas de discussão. Histórias de 18 mulheres são apresentadas e analisadas e uma pluralidade de situações emerge: marinheiras de primeira e mulheres que já eram mães; histórias de parto em casa e na maternidade, via vaginal e cesárea, com médicos, obstetrizes e/ou doulas. A descrição densa das trajetórias de parto, um dos pontos altos da obra, nos aproxima de suas experiências e de noções que têm sobre corpo e parto. Dessa miríade de experiências, com aspectos dissidentes e coincidentes, Rosamaria desfia minuciosamente os "nós do campo": natureza e cultura, tempo e espaço, relações de gênero, medo e risco, corpo grávido e corpo na cena de parto, entre outros. Em que pese a pluralidade de situações, chama a atenção que no universo estudado não circularam discursos que colocassem em xeque o ideário do parto humanizado, como também não foram relatados desfechos negativos para a mulher ou a criança. Deixamos em aberto a pergunta se nesses espaços não circulam tais questões ou não cabem tais compartilhamentos, o que poderia introduzir ambiguidades na positivação de tal ideário.
A grande força do livro está no capítulo Em Nome da Experiência: Parto, Sexualidade e Espiritualidade, em que as mulheres entrevistadas são colocadas em diálogo com autores como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Michel Foucault e Joan Scott. Com esses autores, Rosamaria discute a categoria experiência para sustentar a tese de que, para além da rejeição a um uso abusivo de tecnologia e de cirurgia no parto - em função das iatrogenias ou por solapar o protagonismo feminino - as mulheres buscam resistir ao empobrecimento de sua experiência reprodutiva, resultante de uma assistência rotinizada, padronizada e despersonalizada. Mediada de modo absolutista pela técnica e a ciência, esse tipo de assistência seria o emblema de estruturas de racionalidade moderna que são incapazes de lidar com o que não pode ser abreviado, controlado, domesticado e conhecido de antemão. As mulheres que aderiram ao ideário do parto humanizado não desejavam "mais um parto", mas "um parto todo seu" - um acontecimento simples e singular, mágico e caótico, incontrolável e imprevisível. Para reaver a capacidade de experimentar, é preciso subverter: desafiar o discurso normativo do risco e vigilância, ressignificar o medo da dor e do descontrole e, citando Benjamin, espantar o tédio (tecnocientífico) do "pássaro de sonho que choca os ovos da experiência" (p. 205).
A experiência da qual se trata aqui não é fraturada em corporalidade e pessoalidade: nela se fundem dimensões físicas, sensoriais, psíquicas, emocionais, sexuais e espirituais. Nesse ponto, Rosamaria chama autores como Luiz Fernando Duarte, Georg Simmel e Louis Dumont para discutir noções de pessoa, colocadas em marcha nas falas das mulheres. Circulam entre elas perspectivas liberais de pessoa - autonomia, liberdades, direitos individuais, escolhas - assim como perspectivas românticas e relacionais - denotadas pela resistência às racionalidades calculistas da técnica e da ciência e a invocação da participação de sensações, sensibilidades, emoções, interações múltiplas e contingências na elaboração de suas experiências somato-subjetivas. "Partolândia" é a categoria nativa com a qual as mulheres falam positivamente de alterações de consciência, transes, êxtases e descontroles relacionados à experiência do "parir diferente", a "estados outros de existência, que aconteceram entre gritos, gemidos, suor, posturas e atitudes impensadas socialmente" (p. 256). Para a maioria dos médicos, essas situações conotariam risco e instabilidade, porém para as mulheres "representaram positividade e fruição de seus desejos mais próprios de como parir" (p. 256).
Em Feminismos, Partos e Maternidades: História, Reversibilidade e Subjetivação, a autora parte da recusa das mulheres em identificar suas práticas como "feministas" e discute os novos modos de subjetivação, entendendo-a "como questão eminentemente política". Vasculhando práticas, saberes e noções que apartam e aproximam as feministas e as mulheres da pesquisa, conclui que há mais proximidades e intrincamentos do que as últimas imaginam - as mulheres são "a um só tempo efeitos e críticas dos feminismos que a precederam" (p. 289). É preciso atentar para as transformações que as subjetividades "maternas" e "feministas" têm passado e os alvos que lhes são comuns: corpo, sexualidade, integridade e direitos.
Em suma, em Cenas de Parto e Políticas do Corpo, desenvolve-se a hipótese de que outro paradigma corporal, que resiste às disciplinas somatopolíticas e às estratégias biopolíticas, apresenta-se em estado latente nas experiências das mulheres adeptas do parir diferente. Trata-se do "corpo [que] é integralidade e relação, a um só tempo, e que, por isso, dá contornos à noção de pessoa entre elas operante" (p. 303). Corpo e pessoa não estão cindidos e são constructos de relações intersubjetivas, produtos e produtores de cultura: essa seria a mensagem embutida nas práticas discursivas dessas mulheres, que recusam a despersonalização da assistência nos tradicionais serviços de saúde e reivindicam sua integralidade corporal, psíquica, emocional, sexual e espiritual. O grupo estudado é pequeno, contudo a riqueza do trabalho de Rosamaria não está na representatividade (ou falta dela) das experiências estudadas, mas sim na transcendência de sua produção teórico-analítica para uma análise crítica de formas de reapropriação reflexiva, resistência e disputa contra-hegemônica frente ao avassalador processo de medicalização da sociedade, empreendidas por outros grupos de sujeitos e envolvendo outras experiências sociais e humanas. Por isso, o livro interessa não só à comunidade acadêmica, mas a variados grupos que buscam refletir e transformar as formas como se nasce, vive e morre na atualidade.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Dez 2016