A política de desenvolvimento produtivo da saúde e a capacitação dos laboratórios públicos nacionais

Ana Luiza d'Ávila Viana Hudson Pacifico da Silva Nelson Ibañez Fabíola Lana Iozzi Sobre os autores

Resumo:

As inovações tecnológicas jogam papel decisivo no processo de desenvolvimento das sociedades, visto que contribuem para gerar crescimento econômico e bem-estar da população. O Estado possui grande importância e centralidade nesse processo, pois pode induzir fortemente o comportamento, as estratégias e as decisões relativas à inovação. O presente artigo tem por objetivo investigar a atual política de desenvolvimento produtivo em saúde no Brasil e seus reflexos sobre a capacitação dos laboratórios públicos nacionais. Para essa finalidade, contextualiza os diferentes ciclos de interação entre a política de saúde e a sua base produtiva, discute a estratégia do governo brasileiro para o desenvolvimento, a transferência e a absorção de tecnologia na área da saúde (as parcerias para o desenvolvimento produtivo) e apresenta duas parcerias vigentes envolvendo laboratórios públicos para a produção de medicamentos e vacinas.

Palavras-chave:
Política de Inovação e Desenvolvimento; Laboratório Oficial; Sistema Único de Saúde; Desenvolvimento Sustentável; Inovação

Introdução

As inovações tecnológicas que geram novos produtos, novos processos de produção e novas formas organizacionais 11. Dosi G. The nature of the innovative process. In: Dosi G , Freeman C, Nelson R, Silverberg G, Soete L, editors. Technical change and economic theory. London: Pinter Publishers, 1988. p. 221-38. jogam papel decisivo no processo de desenvolvimento das sociedades, pois contribuem para o crescimento econômico e o bem-estar da população 22. Schumpeter JA. The theory of economic development. Cambridge: Harvard University Press; 1912.), (33. Arbix G. Inovar ou inovar: a indústria brasileira entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Papagaio; 2007.. O reconhecimento de sua importância atingiu um ponto de amplo consenso entre governantes, formuladores de políticas públicas, empresários e comunidade científica dos países desenvolvidos, onde as políticas de inovação se desenvolveram como um amálgama de políticas de ciência e tecnologia e com o assentimento de que a inovação é um fenômeno sistêmico e complexo 44. Organisation for Economic Co-operation and Development. Oslo manual: guidelines for collecting and interpreting innovation data. 3rd Ed. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development; 2005..

A natureza sistêmica dos processos de inovação refere-se à influência exercida por fatores externos às organizações, tais como instituições (leis, regulações, regras etc.), processo político, infraestrutura de pesquisa pública (universidades, institutos de pesquisa, agências de fomento etc.), instituições financeiras, qualificação dos profissionais, entre outros 55. Fagerberg J. Innovation: a guide to literature. In: Fagerberg J, Mowery DC, Nelson RR, editors. The Oxford handbook of innovation. New York: Oxford University Press; 2005. p. 1-26.. Estes elementos são os principais componentes de sistemas para criação e comercialização do conhecimento. Desse modo, as inovações emergem em tais sistemas de inovação, que reúnem fatores econômicos, políticos, sociais, organizacionais e institucionais que influenciam o desenvolvimento, a difusão e o uso das inovações 66. Edquist C. System of innovation: perspectives and challenges. In: Fagerberg J, Mowery DC, Nelson RR, editors. The Oxford handbook of innovation. New York: Oxford University Press; 2005. p. 181-208.. Estes aspectos tendem a atuar como incentivos e/ou obstáculos para o processo inovativo.

De modo geral, as inovações ocorrem nas empresas, mas o Estado pode induzir fortemente o comportamento, as estratégias e as decisões empresariais relativas à inovação 77. Salerno MS, Kubota LC. Estado e inovação. In: De Negri JA, Kubota LC, organizadores. Políticas de incentivo à inovação tecnológica no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2008. p. 13-64.. Mais que isso, o reconhecimento do caráter coletivo e social da inovação deve ensejar a adoção de políticas públicas focadas no papel específico do setor público nesse processo, de modo a contribuir para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que, de outra forma, não aconteceriam 88. Lin JY, Monga C. Growth identification and facilitation: the role of the state in the dynamics of structural change. Washington DC: World Bank; 2010. (Policy Research Working Paper, 5313).), (99. Mazzucato M. The entrepreneurial state: debunking public vs private sector myths. London: Anthem Press; 2013.. Diversos instrumentos de política são utilizados para essa finalidade, incluindo financiamento público a instituições de ensino e pesquisa, infraestrutura para inovação, mecanismos de transferência de tecnologia, demanda pública, compras governamentais etc. 1010. Kuhlmann S. Lógicas e evolução de políticas públicas de pesquisa e inovação no contexto da avaliação. In: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, organizador. Avaliação de políticas de ciência, tecnologia e inovação: diálogo entre experiências internacionais e brasileiras. Brasília: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos; 2008. p. 45-73.. Esses instrumentos possibilitam lidar com os riscos associados ao processo inovativo (custos elevados, prazos longos e incertezas). Além disso, contribuem para a geração de impactos diretos e indiretos, de curto e de longo prazo, nos campos científico, econômico e social 1111. Airaghi A, Busch NE, Georghiou L, Kuhlmann S, Ledoux MJ, van Raan AFJ, et al. Options and limits for assessing the socio-economic impact of European RTD Programmes. Report to the European Commission DG XII, Evaluation Unit. https://ec.europa.eu/research/evaluations/pdf/archive/other_reports_studies_and_documents/fp5_monitoring_assessing_socio_economic_impacts_report.pdf (accessed on 22/Apr/2015).
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Na área da saúde, o Estado pode concretamente orientar e sustentar projetos particulares de P&D e favorecer o uso apropriado das tecnologias mediante a adoção de um conjunto articulado de políticas públicas 1212. Lehoux P. Une analyse critique de la valeur des technologies et des processus innovants: peut-elle nous amener à concevoir de nouveaux instruments de régulation? Montréal: Université de Montréal; 2002.: políticas comerciais (que influem na criação e nas atividades das empresas), políticas de P&D (que promovem o desenvolvimento de tecnologias particulares que podem transformar os serviços de saúde) e políticas de saúde (que exercem um impacto direto sobre a oferta de cuidados em saúde, incluindo a regulação da entrada de novas tecnologias nos sistemas de saúde). Diversos exemplos ilustram a importância e a centralidade do Estado na geração de inovações no campo da saúde, tal qual: 75% de todas as moléculas aprovadas entre 1993 e 2004 pela agência federal norte-americana que regulamenta e fiscaliza alimentos e medicamentos contaram com financiamento público 99. Mazzucato M. The entrepreneurial state: debunking public vs private sector myths. London: Anthem Press; 2013..

No Brasil, a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 200, que compete ao Sistema Único de Saúde (SUS) incrementar o desenvolvimento científico e tecnológico em sua área de atuação. Entretanto, alguns aspectos evidenciam a desarticulação entre o sistema de saúde e o sistema de inovação brasileiros no período recente 1313. Gadelha CAG, Quental C, Fialho BC. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cad Saúde Pública 2003; 19:47-59.), (1414. Chaves CV, Albuquerque EM. Desconexão no sistema de inovação no setor saúde: uma avaliação preliminar do caso brasileiro a partir de estatísticas de patentes e artigos. Economia Aplicada 2006; 10:523-39.: (a) inexistência de relações orgânicas entre a rede de prestação de serviços e as empresas do complexo industrial da saúde (CIS); (b) política de saúde centrada na ampliação da oferta dos serviços, sem maiores considerações sobre a capacidade de inovação da indústria e, portanto, sobre o uso do poder de compra do Estado para uma política de desenvolvimento das empresas e laboratórios nacionais; (c) política de ciência e tecnologia focada no sistema científico, desprezando articulações com uma política industrial de inovação e com as necessidades do sistema de saúde; e (d) inexistência de políticas regulatórias convergentes no campo da propriedade intelectual e da vigilância sanitária.

Problemas na balança comercial e forte presença de patentes de não residentes são dois indicadores da desarticulação que caracteriza o sistema de inovação do setor de saúde no Brasil. De fato, pode-se constatar a forte dependência tecnológica externa no que diz respeito ao acesso a novas tecnologias em saúde, como mostra o resultado da balança comercial desses produtos: o déficit acumulado passou de, aproximadamente, US$ 3 bilhões ao ano, em 2003, para um patamar superior a US$ 10 bilhões em 2012 1515. Costa LS, Gadelha CAG, Maldonado J, Santo M, Metten A. O complexo produtivo da saúde e sua articulação com o desenvolvimento econômico nacional. Revista do Serviço Público 2013; 64:177-99.. Ao mesmo tempo, 87% das 2.972 patentes obtidas pelo país em 2013 pertenciam a não residentes (estrangeiros) 1616. World Intellectual Property Organization. World intellectual property indicators - 2014 edition. Geneva: World Intellectual Property Organization; 2014., o que demonstra o fraco desempenho do setor produtivo nacional em termos de geração de novas tecnologias e o caráter ainda imaturo do sistema de inovação brasileiro 1717. Albuquerque EM. Patentes de empresas transnacionais e fluxos tecnológicos com o Brasil: observações iniciais a partir de estatísticas de patentes depositadas e concedidas pelo INPI. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais; 2000..

O presente artigo tem por objetivo investigar a atual política de desenvolvimento produtivo da saúde e seus reflexos sobre a capacitação dos laboratórios públicos nacionais. Para essa finalidade, contextualiza os diferentes ciclos de interação entre a política de saúde e sua base produtiva; discute a estratégia do governo brasileiro para o desenvolvimento; a transferência e a absorção de tecnologia na área da saúde (as parcerias para o desenvolvimento produtivo); e apresenta duas parcerias vigentes envolvendo laboratórios públicos para a produção de medicamentos antirretrovirais e vacinas contra a influenza.

Os diferentes ciclos de interação entre a política de saúde e sua base produtiva

O padrão de desenvolvimento capitalista e a política de saúde interagem de forma a construir diferentes formatos de organização dos serviços, combinados com a constituição de uma base produtiva própria, integrada por indústrias voltadas para a produção de diferentes tecnologias (soros, vacinas, medicamentos, equipamentos, materiais etc.) em cada momento histórico 1313. Gadelha CAG, Quental C, Fialho BC. Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde. Cad Saúde Pública 2003; 19:47-59.), (1818. Viana ALd'A, Silva HP, Elias PEM. Economia política da saúde: introduzindo o debate. Divulg Saúde Debate 2007; 37:7-20.. O grau de dependência externa dessa base produtiva acompanha os padrões históricos de desenvolvimento capitalista, em que países de industrialização originária (Inglaterra) ou atrasada (Europa Ocidental e Estados Unidos) tiveram ‒ e ainda têm ‒ predomínio na produção e no desenvolvimento tecnológico em grande parte desse segmento industrial 1919. Oliveira CAB. Processo de industrialização: do capitalismo originário ao atrasado. São Paulo: Editora Unesp/Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2003.. Nos países periféricos ou de industrialização tardia 2020. Mello JMC. O capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense; 1982., como é o caso brasileiro, essa base industrial foi muito incipiente e dependente do modelo de desenvolvimento adotado.

No Brasil, é possível identificar três arranjos ou modelos emblemáticos de interação entre política e produção industrial na área da saúde no período recente 2121. Viana ALd'A, Silva HP. Relações Estado, mercado e sociedade no Brasil: arranjos assistenciais produtivos na saúde. In: Viana ALd'A, Ibañez N, Bousquat A, organizadores. Saúde, desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. p. 105-32.: (i) a era do saneamento, na Primeira República (1889-1930), quando o país conformou uma base produtiva pública voltada para a produção de soros e vacinas pelos institutos públicos (Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Butantan); (ii) a era previdenciária ou do seguro coletivo, no período de 1930-1988, quando a base produtiva da política passou a ser exercida pela importação de quase todos os insumos necessários, ao lado de uma produção interna de medicamentos e equipamentos de baixa densidade tecnológica; e (iii) a era do SUS, no pós-1988, quando houve a combinação da expansão da base produtiva pública de laboratórios públicos, articulada a um modelo de parceria público-privado na saúde, configurando uma sinergia entre expansão do acesso e capacitação tecnológica e produtiva das instituições públicas e privadas.

O primeiro modelo (era do saneamento) teve como características principais o fato de ser público e nacional, pois foi composto por instituições e serviços públicos, contou com financiamento público e apresentou baixo grau de dependência externa 2222. Santos LAC. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados 1985; 28:193-210.), (2323. Hochman G. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec/Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1998.), (2424. Campos CEA. As origens da rede de serviços de atenção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Administração Sanitária. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2007; 14:877-906.. Além disso, abriu caminho para um desenvolvimento científico genuinamente nacional na área de biotecnologia (soros e vacinas) 2525. Ponte CF. Bio-Manguinhos 30 anos: a trajetória de uma instituição pública de ciência e tecnologia. Cadernos de História da Ciência 2007; 3:35-138.), (2626. Ibañez N. Instituto Butantan, pesquisa, produção e difusão científica na esfera pública: síntese da trajetória histórica. In: Viana ALd'A, Ibañez N, Bousquat A, organizadores. Saúde, desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. p. 220-31.. Esse primeiro arranjo, cujo foco era voltado para o combate das grandes endemias e epidemias, foi construído e se desenvolveu a partir da Primeira República (1889-1930). Teve, como protagonistas, as instâncias governamentais de formulação e coordenação de ações na área da saúde (federal e estadual) e os institutos públicos de ciência e tecnologia, criados no final do século XIX e início do século XX.

O segundo modelo (previdenciário) desenvolveu-se junto com o modelo de saúde previdenciário, a partir dos anos 1930 2727. Braga JCS, Paula SG. Saúde e previdência: estudos de política social. São Paulo: Editora Hucitec; 1981.), (2828. Cordeiro H. As empresas médicas. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984.), (2929. Oliveira JAAA, Teixeira SMF. (In)Previdência Social: 60 anos de história da previdência no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; 1986.. Ao contrário do modelo anterior, esse arranjo foi essencialmente de natureza privada e internacional. Seu financiamento era misto (público e privado), com predomínio da oferta de serviços privados (hospitais e laboratórios) e uma cadeia internacionalizada de produtores e fornecedores de insumos, medicamentos e equipamentos médicos. Tudo isso se traduziu num quadro de grande dependência externa, com déficits crescentes da balança comercial desses produtos.

O terceiro modelo (era do SUS) apresentou um incremento importante na última década, quando se consolidou um novo modelo de interação entre Estado e mercado voltado para o desenvolvimento nacional 3030. Viana ALd'A, Silva HP. Desenvolvimento e institucionalidade da política social no Brasil. In: Machado CV, Baptista TW, Lima LD, organizadores. Políticas de saúde no Brasil: continuidades e mudanças. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 31-60.. Foram criadas diversas políticas públicas com vistas a um novo ciclo de investimentos em infraestrutura e alguns segmentos industriais, com crédito subsidiado e linhas de financiamento para fomento à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico de áreas específicas, com destaque para a saúde 3131. Iozzi FL. Ciência, tecnologia e inovação no Brasil: panorama atual das políticas federais para a saúde. In: Viana ALd'A, Ibañez N, Bousquat A, organizadores. Saúde, desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. p. 150-73..

Na história da política de saúde, os dois primeiros modelos conviveram lado a lado no período desenvolvimentista (1930-1980). No entanto, o predomínio do modelo público e nacional foi sendo substituído, aos poucos, pelo arranjo privado internacional, em função de diversos fatores: mudança tecnológica (de produtos biotecnológicos para a química fina e síntese de moléculas no setor farmacêutico); criação dos laboratórios privados produtores de soros e vacinas (como o Laboratório Pinheiros, em São Paulo); protagonismo da indústria de base e dos investimentos em infraestrutura na agenda de desenvolvimento; e internacionalização do capital com a vinda das indústrias multinacionais para o Brasil.

A convivência entre os dois modelos permaneceu durante as décadas de 1980 e 1990, quando políticas neoliberais foram adotadas. De um lado, havia iniciativas para fomentar o modelo público via políticas públicas, como a expansão da imunização (Programa Nacional de Imunizações ‒ PNI), o incentivo à produção pública de insumos (Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos, por exemplo) e, ainda, o estímulo à assistência à saúde baseada na atenção primária (com a emergência do Programa Saúde da Família). De outro, houve fortalecimento das empresas de seguros e planos de saúde privados, o que ajudava a consolidar as características do modelo previdenciário 3232. Menicucci TMG. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.: oferta de leitos e de exames privados baseada no forte incremento da importação de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares, contando com financiamento privado e subsídios públicos para a expansão da oferta e a compra de serviços de atenção à saúde.

No período atual, o primeiro modelo (público e nacional) ganha nova centralidade na agenda governamental. Ilustram esse momento as políticas específicas de fomento às atividades de ciência e tecnologia (C&T) e de apoio às empresas nacionais do complexo industrial da saúde, ao lado da expansão da capacidade hospitalar e ambulatorial pública, principalmente nas regiões Nordeste e Centro-oeste. No entanto, observa-se também a expressiva expansão do segundo modelo (privatista e internacionalizado) via incremento dos níveis de cobertura da saúde suplementar, o que vem favorecendo e incentivando a expansão concentrada e a capitalização das empresas operadoras de seguros e planos de saúde.

A conformação dos dois arranjos assistenciais produtivos na saúde ilustra as tensões históricas entre saúde e desenvolvimento no Brasil 2121. Viana ALd'A, Silva HP. Relações Estado, mercado e sociedade no Brasil: arranjos assistenciais produtivos na saúde. In: Viana ALd'A, Ibañez N, Bousquat A, organizadores. Saúde, desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. p. 105-32.. Ao mesmo tempo em que esses arranjos contribuíram para a desmercantilização do acesso aos serviços de saúde mediante a construção do SUS, eles também possibilitaram o adensamento da mercantilização da oferta (assalariamento dos profissionais, constituição das empresas médicas etc.) e a constituição da saúde como um campo próprio de acumulação de capital 1818. Viana ALd'A, Silva HP, Elias PEM. Economia política da saúde: introduzindo o debate. Divulg Saúde Debate 2007; 37:7-20.. Esses arranjos não foram constituídos em um mesmo momento histórico, nem tampouco de forma combinada, mas eles convivem hoje de maneira complexa no sistema de saúde brasileiro (Tabela 1).

Tabela 1:
Características dos arranjos assistenciais produtivos na saúde.

Parcerias para o desenvolvimento produtivo em saúde: um breve panorama institucional

Em março de 2004, o governo brasileiro lançou a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) que estabeleceu um marco na retomada das políticas de indução da produção e desenvolvimento tecnológico no país. A área da saúde foi contemplada, fundamentalmente, no setor de fármacos e medicamentos. Entretanto, a estruturação e a implantação da PITCE foram embrionárias e continham significativas lacunas institucionais, além da desarticulação com a política macroeconômica da época, desfavorável ao crescimento sustentado 3333. Laplane M, Sarti F. Prometeu acorrentado: o Brasil na indústria mundial no início do século XXI. Política Econômica em Foco 2006; 7:271-91.. Nos anos seguintes, com a instituição do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS) e a criação do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (DECIIS) na estrutura do Ministério da Saúde, a interação entre política de saúde e política industrial adquiriu mais densidade institucional, o que permitiu incluir, na agenda governamental, a importância do complexo industrial da saúde e a produção pública de tecnologias estratégicas para o SUS.

A PITCE foi sucedida pela Política de Desenvolvimento Produtivo, lançada em maio de 2008, que propunha superar as limitações de sua antecessora e ampliar o escopo de ação para um grande número de setores. A saúde foi incluída como uma das áreas estratégicas, com metas explícitas relacionadas à produção local de produtos estratégicos para o SUS e à redução do déficit comercial dos segmentos que conformam o complexo industrial da saúde. Apesar de avanços no modelo de governança proposto no âmbito da política, com definição clara de funções e responsabilidades, sua execução foi comprometida pelo aprofundamento da crise econômica internacional, que reverteu as condições favoráveis que haviam pautado sua formulação, limitando o cumprimento das metas propostas 3434. Guerriero IA. A recente política industrial brasileira: Política de Desenvolvimento Produtivo e Plano Brasil Maior. In: XVIII Encontro Nacional de Economia Política. http://www.sep.org.br/artigos/download?id=2043 (accessed on 02/Oct/2015).
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Partindo do reconhecimento de uma conjuntura desfavorável para a indústria brasileira, foi lançado o Plano Brasil Maior (PBM), em agosto de 2011, que substituiu a política anterior. Com o objetivo geral de sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto econômico adverso, o PBM estabeleceu dez macrometas programáticas e adotou instrumentos para reduzir os custos do trabalho e do capital (desonerações tributárias) e apoiar a inovação e defesa do mercado interno (marco regulatório, linhas de financiamento e compras governamentais). O plano contemplou o complexo industrial da saúde como uma das 19 agendas estratégicas setoriais, com a definição de objetivos prioritários e medidas a serem implementadas. Embora a maioria das medidas sistêmicas e setoriais tenha sido implementada 3535. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Relatório de acompanhamento das medidas sistêmicas: outubro 2014. Brasília: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial; 2014.), (3636. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. Relatório de acompanhamento das agendas estratégicas setoriais: novembro de 2014. Brasília: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial; 2014., avaliações preliminares sugerem que o PBM não logrou apresentar os resultados esperados 3737. Jungerfeld V, Mota CV. Brasil Maior deixa de cumprir metas. Valor Econômico 2015; 26 jan. http://www.valor.com.br/brasil/3877560/brasil-maior-deixa-de-cumprir-grandes-metas (accessed on 22/Apr/2015).
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), (3838. Biancarelli A, Rossi P. Do industrialismo ao financismo. Plataforma Política Social 2015; 2 fev. http://plataformapoliticasocial.com.br/do-industrialismo-ao-financismo/ (accessed on 22/Apr/2015).
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Articuladas com essas políticas de desenvolvimento econômico, algumas medidas foram adotadas pelo Ministério da Saúde para estimular a produção nacional de itens considerados estratégicos e prioritários para o SUS. São exemplos dessas medidas a criação do Programa de Investimento no Complexo Industrial da Saúde (Procis), o uso do poder de compra do Estado, com aplicação de margem de preferência de até 25% em licitações realizadas no âmbito da administração pública federal para aquisição de produtos médicos, e a formação das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre instituições públicas e entidades privadas para produção de produtos estratégicos ao atendimento das demandas do SUS, com previsão de transferência e absorção de tecnologia.

A institucionalização dessas medidas ocorreu por meio de um conjunto amplo de normas adotadas na última década (Tabela 2). Trata-se de um arcabouço regulatório que não foi construído de uma só vez, mas por camadas, refletindo a forma como o tema ganhou centralidade na agenda governamental no período recente.

Tabela 2:
Política e produção industrial em saúde: principais medidas normativas.

Dados apresentados pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2014 apontam 103 PDP em execução, com 33 produtos com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e 26 produtos adquiridos pelo Ministério da Saúde por meio dessas parcerias 3939. Gadelha CAG. 7ª Reunião do Comitê Executivo e Conselho de Competitividade do Complexo da Saúde no PBM (GECIS). http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/janeiro/20/Apresentacao-Gecis-2014-VF---15-01-2014.pdf (accessed on 20/Apr/2015).
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. Ainda segundo o Ministério da Saúde, são 74 instituições envolvidas, sendo 19 laboratórios públicos e 55 entidades privadas. Tal cenário propiciou um faturamento de R$ 3,8 bilhões para as instituições públicas e uma economia de R$ 1,6 bilhão no período de 2011-2014. Ao final dos projetos em fase PDP, estima-se uma economia de recursos em torno de R$ 5,3 bilhões.

Não obstante os avanços proporcionados pelas PDP, alguns limites e necessidades de aperfeiçoamento são apontados por estudiosos 4040. Athayde Jr. A. Parcerias sustentam desenvolvimento na área da saúde. Revista Facto - Abifina 2014; 39:9-13.), (4141. Guimarães R. O SUS e a farma nacional. Revista Facto - Abifina 2014; 39:18-9.), (4242. Temporão JG. Política industrial para o complexo de química fina. Revista Facto ? Abifina 2014; 39:20-2.: restrista capacidade orçamentária do Ministério da Saúde para impulsionar o mercado por meio de seu próprio poder de compra; premência em se ultrapassar os aspectos meramente regulatórios e sustentar um papel ativo do Estado na promoção do desenvolvimento; importância de maximizar a taxa de sucesso das parcerias estabelecidas quanto à entrega de produtos e à efetiva transferência de tecnologia aos produtores nacionais; pertinência de verticalizar o processo produtivo dos componentes farmoquímicos e farmacêuticos envolvidos nas parcerias; imprescinbilidade de garantir a qualidade dos produtos envolvidos nas parcerias estabelecidas; e necessidade de interromper as parcerias que não estiverem cumprindo as metas acordadas. Outros aspectos que obstam a efetividade das PDP foram apontados por Gadelha & Costa 4343. Gadela CAG, Costa L. Saúde e desenvolvimento no Brasil: avanços e desafios. Rev Saúde Pública 2012; 46 Suppl:13-20.: carência de expertise em relação aos processos de transferência tecnológica do setor privado para o público e limitação dos produtores públicos em relação à competência técnica, à capacidade de gestão dos laboratórios e às boas práticas de fabricação da Anvisa.

Lacunas e imperfeições também foram apontadas na nova legislação que regulamenta as PDP 4444. Queiroz JAM. Parcerias para o desenvolvimento produtivo. Valor Econômico 2014; 25 nov. http://www.valor.com.br/legislacao/3791796/parcerias-para-o-desenvolvimento-produtivo#ixzz3K53Oxg9D (accessed on 23/Apr/2015).
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: regras obscuras em relação à escolha do parceiro privado; falta de transparência das informações relativas às PDP celebradas; e insegurança jurídica quanto à proteção dos direitos de propriedade intelectual. Outras questões igualmente controversas dizem respeito à contratação direta das parcerias (sem necessidade de licitação), à possibilidade de as parcerias travestirem simples compras de medicamentos em acordos de transferência de tecnologia; e ao fato de parte dos produtos objetos das PDP serem produtos em estágio de desenvolvimento maduro, com patentes vencidas ou perto de vencer, o que garantiria mercados para as empresas farmacêuticas transnacionais envolvidas nos acordos até a produção nacional se efetivar de fato.

Apesar das fragilidades apontadas, diversas entidades representativas do complexo industrial da saúde (Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades ‒ ABIFINA, Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios ‒ ABIMO, Associação Laboratórios Farmacêuticos Nacionais ‒ Alanac, Pró-Genéricos) e do campo da saúde coletiva (Associação Brasileira de Saúde Coletiva ‒ Abrasco e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ‒ Cebes) se manifestaram recentemente favoráveis à política de desenvolvimento produtivo do Governo Federal implementada pelo Ministério da Saúde 4545. Pacheco O, Pallamolla F, Souza LE, Tada H, Costa AM, Arcuri R, et al. Manifesto em defesa das PDP, 2014. http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/08/Manifesto-entidades-CIS-jun-2014.pdf (accessed on 23/Apr/2015).
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O papel dos laboratórios públicos nas parcerias para o desenvolvimento produtivo

Um dos aspectos importantes das PDP é a capacitação dos laboratórios públicos, envolvendo os diferentes aspectos já referidos para a inovação e a autossuficiência do setor saúde. De acordo com o Ministério da Saúde 4646. Ministério da Saúde. Laboratórios oficiais. http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/849-sctie-raiz/daf-raiz/cgafme/l4-cgafme/12017-processos-de-aquisicao-e-laboratorios-oficiais (accessed on 29/Apr/2015).
http://portalsaude.saude.gov.br/index.ph...
, são 21 laboratórios oficiais no país que, juntos, produzem cerca de 80% das vacinas e 30% dos medicamentos utilizados no SUS 4747. De Lavor A, Dominguez B, Machado K. O SUS que não se vê. Radis 2011; 104:9-17.. Esses laboratórios têm papéis relevantes de reguladores de preços; de suporte em situações emergenciais; de fornecedores a programas estratégicos no campo da saúde coletiva, como o DST/AIDS e o PNI; e de parceiros para o desenvolvimento de novos produtos e formulações farmacêuticas 4848. Magalhães JG, Antunes AMS, Boechat N. Laboratórios farmacêuticos oficiais e sua relevância para saúde pública do Brasil. RECIIS (Online) 2011; 5:85-99.), (4949. Rezende KS. As parcerias para o desenvolvimento produtivo e estímulo à inovação em instituições farmacêuticas públicas e privadas [Master Thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2013..

Apesar da relevância dos laboratórios públicos no atendimento das necessidades do SUS, alguns estudos 5050. Oliveira EA, Labra ME, Bermudez J. A produção pública de medicamentos no Brasil: uma visão geral. Cad Saúde Pública 2006; 22:2379-89.), (5151. Hasenclever L, Oliveira MA, Bermudez JAZ, Fialho BC, Silva HF. Diagnóstico e papel dos laboratórios públicos na capacitação tecnológica e atividade de P&D da indústria farmacêutica brasileira. In: Buss PM, Carvalheiro JR, Casas CPR, organizadores. Medicamentos no Brasil: inovação e acesso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 199-234. evidenciam a existência de problemas de ordem política, administrativa e de funcionamento, aliados à baixa capacitação tecnológica e à escassez de recursos humanos qualificados. Além disso, o baixo grau de utilização da capacidade instalada e a falta de agilidade no atendimento das demandas do SUS, em virtude da necessidade de seguir as regras do processo de compras do setor público, principalmente para aquisição de matéria-prima importada, também constituem entraves à atuação dos laboratórios públicos 5252. Leão CJS. Produção pública de medicamentos: uma estrutura de governança possível [Doctoral Dissertation]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia; 2011..

Para discutir a influência das PDP na capacitação dos laboratórios públicos, foram selecionadas duas parcerias, uma ligada ao programa de controle do HIV/AIDS (medicamentos antirretrovirais) e outra ao PNI (vacinas contra o influenza). Os critérios para escolha dessas parcerias consideraram a vinculação dos produtos a programas estratégicos, a participação de diferentes laboratórios públicos na sua execução e a dois estudos recentes que possibilitam uma visão mais crítica desse processo 4949. Rezende KS. As parcerias para o desenvolvimento produtivo e estímulo à inovação em instituições farmacêuticas públicas e privadas [Master Thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2013.), (5353. Ibañez N, Alves OSF, Dias CEB. Transferência tecnológica da vacina de influenza. In: Viana ALd'A, Ibañez N, Bousquat A, organizadores. Saúde, desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. p. 232-65.. No caso dos medicamentos antirretrovirais, a existência de efeitos visíveis provocados no curto prazo em termos de crescimento do faturamento, maior disponibilidade de insumos farmacêuticos ativos (IFA) produzidos localmente e economia para as compras públicas e de divisas. No segundo caso, destaca-se a amplitude das mudanças envolvidas: construção de novas instalações; compra e adaptação de equipamentos; e processo de fabricação em larga escala, envolvendo forte participação do ente público em todas as fases.

PDP ligadas ao programa de controle do HIV/AIDS

O Brasil é referência mundial no combate ao HIV/AIDS. Há 16 anos, o SUS garante acesso universal aos medicamentos necessários para o combate ao HIV, além de exames e acompanhamento médico, que beneficiam 217 mil pessoas, correspondentes a 97% dos brasileiros diagnosticados com AIDS. A produção de medicamentos antirretrovirais (ARV) no Brasil possui marcos importantes, como o caso do Efavirenz, em que o país decretou, pela primeira vez, o licenciamento compulsório, garantindo melhores preços a partir da produção nacional desse medicamento 5454. Rodrigues WCV, Soler O. Licença compulsória do efavirens no Brasil em 2007: contextualização. Rev Panam Salud Pública 2009; 26:553-9..

Atualmente, o Ministério da Saúde investe R$ 850 milhões na aquisição de 21 antirretrovirais. Dos 21 produtos, oito foram objetos de PDP entre 2009 e 2012. Os laboratórios públicos envolvidos com a produção de ARV são: Fundação Ezequiel Dias ‒ Funed (Tenofovir 300mg, Entecavir), Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco ‒ LAFEPE (Tenofovir, Ritonavir termoestável, Raltegravir) e Instituto de Tecnologia em Fármacos ‒ Farmanguinhos em parcerias com Funed, Fundação para o Remédio Popular ‒ FURP e LAPEDE [Sulfato de Atazanavir, Lopinavir + Ritonavir, Tenofovir + Lamivudina (2 em 1) e Tenofovir + Lamivudina + Efavirenz (3 em 1)]. Em relação ao Tenofovir, dois laboratórios públicos (Funed e LAFEPE) participaram com parceria estrangeira (Blanver/Nortec) e nacional (Cristália).

No que tange às dimensões que podem traduzir o impacto das PDP nos processos de capacitação dos laboratórios públicos, alguns dos aspectos identificados convergem com os resultados apresentados por Rezende 4949. Rezende KS. As parcerias para o desenvolvimento produtivo e estímulo à inovação em instituições farmacêuticas públicas e privadas [Master Thesis]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2013.:

a) Faturamento anual: todos os envolvidos apresentaram aumento de faturamento de duas a três vezes depois da implantação da PDP;

b) Impactos inovativos: aumento da capacidade de produção ou prestação de serviços; abertura de novos mercados e ampliação de participação e melhoria da qualidade dos bens ou serviços;

c) Atividades internas de P&D: relaciona o número de pessoas ocupadas nessas atividades, tendo, nos laboratórios públicos, um crescimento relativo menor que nos laboratórios privados, mas com uma dedicação exclusiva significativamente maior;

d) Inovações organizacionais: adoção de novas técnicas de gestão (revisão dos processos de negócio, conhecimento, controle da qualidade total e sistemas de formação), conceitos e estratégias de marketing e programa de farmacovigilância;

e) Inovações de produto: a maioria dos laboratórios que inovaram seus produtos tributa principalmente as parceiras nesse tipo de inovação;

f) Inovação de processo: menor desempenho dos laboratórios públicos frente aos privados.

Muitos dos problemas e obstáculos encontrados remetem a situações historicamente construídas com aspectos culturais e organizacionais importantes: dificuldade para se adequar a padrões, normas e regulamentações; rigidez organizacional; falta de pessoal qualificado; custos elevados para a inovaç; e escassez de fontes apropriadas de financiamento. Soma-se a isso a existência de dificuldades relacionadas à falta de cultura empreendedora (estabelecimento de uma nova visão de seu papel na política nacional de C&T) e posicionamento em termos de agilidade de processos, rede de relacionamentos com outras empresas e instituições de pesquisa 5151. Hasenclever L, Oliveira MA, Bermudez JAZ, Fialho BC, Silva HF. Diagnóstico e papel dos laboratórios públicos na capacitação tecnológica e atividade de P&D da indústria farmacêutica brasileira. In: Buss PM, Carvalheiro JR, Casas CPR, organizadores. Medicamentos no Brasil: inovação e acesso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 199-234..

PDP ligada ao PNI

O Brasil tem uma longa história de sucesso na área de imunização. Destacam-se, nas décadas de 1970 e 1980, duas expressivas estratégias traçadas pelo Ministério da Saúde: a criação do PNI, em 1973, e o Programa de Autossuficiência Nacional (PASNI), em 1985. Essas estratégias, notadamente a implantação do PNI, contribuíram, de modo significativo, para a consolidação do sistema de saúde brasileiro, sobretudo no que se refere aos seguintes aspectos 5555. Temporão JG, Nascimento MVL, Maia MLS. Programa Nacional de Imunizações (PNI): história, avaliação e perspectivas. In: Buss PM, Temporão JG, Carvalheiro JR, organizadores. Vacinas, soros & imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 101-23.: planejamento em saúde pública; metodologia de operacionalização de grandes mobilizações; criteriosa metodologia de capacitação dos profissionais de saúde do setor público; avanço na ciência e tecnologia; promoção da qualidade de vida e longevidade; olhar diferenciado para grupos de maior vulnerabilidade; e garantia da cidadania.

Uma redefinição importante no calendário vacinal foi a introdução da vacina contra a influenza. Decidida em 1999, adotou duas vertentes epidemiológicas: a de beneficiar a crescente população idosa do país e a de incluir a transferência da tecnologia de produção de um laboratório estrangeiro (Sanofi) para um laboratório público, no caso, o Instituto Butantan.

O contrato de assistência técnica para realização da transferência de tecnologia foi assinado em 1º de outubro de 1999. O contrato estava previsto para terminar em fevereiro de 2004, mas teve de ser prorrogado em virtude do atraso para a construção da fábrica, que ficou pronta somente em maio de 2007, decorrente de problemas no processo licitatório 5555. Temporão JG, Nascimento MVL, Maia MLS. Programa Nacional de Imunizações (PNI): história, avaliação e perspectivas. In: Buss PM, Temporão JG, Carvalheiro JR, organizadores. Vacinas, soros & imunizações no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 101-23.. Considerando o desenvolvimento do processo e os contextos externo e interno, é possível identificar três períodos distintos na execução da parceria: (i) 1994-2004: início do processo de transferência e construção da fábrica; (ii) 2005-2008: término das instalações civis e início da transferência propriamente dita; e (iii) 2009-2011: certificação da transferência, com destaque para a formalização de uma PDP no ano de 2010.

De modo resumido, é possível apontar os seguintes aspectos como efeitos positivos da parceria na capacitação do Instituto Butantan: ampliação da capacidade do instituto para transferência de tecnologia; capacitação para a produção da vacina em larga escala; melhoria das boas práticas de fabricação; domínio de novas tecnologias; e possibilidade de desenvolvimento de inovações (no caso, introdução de adjuvante testado na instituição e desenvolvimento institucional capaz de influir na produção de outras vacinas).

Do ponto de vista institucional, o estudo apresenta, de um lado, a possibilidade de levar adiante esse processo amparado pelas precondições encontradas, mas, de outro, aponta para fragilidades relacionadas, de um lado, com as estratégias políticas de ciência, tecnologia e inovação, em curso no apoio às instituições públicas e, de outro, com a estrutura dessas instituições (no caso, o Instituto Butantan) e seus limites dados por entraves estruturais sérios para seu desenvolvimento.

No caso das estruturas administrativas, quase todas têm forte presença das normas de administração direta, pouco ágeis frente às demandas das transferências, desde a compra de insumos até a reformulação de instalações. Outro aspecto é a questão dos recursos humanos, dado que as políticas nessa área obedecem a carreiras e cargos não compatíveis com as atividades de produção (os comandos e a tecnoestrutura devem ser claramente definidos, com flexibilização de gestão e desenvolvimento nessa área).

Conclusões

Durante muito tempo, o Brasil foi marcado pela ausência de políticas públicas voltadas para formar um sistema nacional de inovação na área da saúde, fortalecer os laboratórios públicos e ampliar a capacidade instalada de empresas inseridas em setores estratégicos do complexo industrial da saúde. O resultado é uma grande dependência tecnológica do exterior, que faz do país um exemplo de modelo não virtuoso de associação entre saúde e desenvolvimento 5656. Viana ALd'A, Elias PEM. Saúde e desenvolvimento. Ciênc Saúde Coletiva 2007; 12 Suppl:1765-77.. Entretanto, a recente adoção de políticas e programas indutores do desenvolvimento nacional, com iniciativas específicas para a área da saúde, sugere o surgimento de um novo modelo. As PDP representam um exemplo emblemático cujo desenho privilegia uma conjugação de forças positivas no sentido de superar o quadro de dependência externa do sistema de saúde e expandir o acesso da população a produtos considerados prioritários.

Não obstante os avanços proporcionados pelas PDP para a interação entre a política e a produção em saúde, é necessário apontar a existência de desafios históricos enfrentados pelos laboratórios públicos, os quais foram deixados em segundo plano durante o longo predomínio do modelo privado internacional. Nesse sentido, o processo de transferência de tecnologia incentivado pelas PDP ganha destaque e pode conformar um elemento dinamizador para que inovações incrementais surjam de forma mais efetiva nos laboratórios públicos, como demonstram os dois exemplos de parcerias mencionados no trabalho.

Dentre os desafios a serem superados, cabe destacar a adoção de processos decisórios mais transparentes, a realização de investimentos em infraestrutura e na qualificação dos profissionais que atuam nos laboratórios públicos, a adoção de mecanismos de monitoramento e avaliação dos resultados e a garantia da continuidade do foco da política de saúde e o diálogo com a base produtiva, mesmo em momentos de troca de gestão. Dada a diversidade de instituições envolvidas na gestão dos laboratórios públicos, pode-se dizer que um desafio adicional é estabelecer uma política diferenciada de apoio, levando, em conta, as diferentes realidades existentes e estabelecendo metas proporcionais aos estágios encontrados, além de uma política contínua de incentivos.

A questão que se coloca frente a esse cenário é a seguinte: como garantir que o atual arranjo assistencial produtivo no campo da saúde seja capaz de compatibilizar, ao mesmo tempo, a lógica pública e coletiva de bem-estar e inclusão social com a lógica privada e individual de mercado? A resposta para essa questão passa necessariamente pelo reconhecimento de que cabe ao Estado definir e articular políticas públicas de integração entre as múltiplas dimensões do desenvolvimento, de modo a contribuir para conjugar os interesses de mercado com as preocupações e necessidades da saúde pública.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos entrevistados, que se dispuseram a colaborar com a pesquisa, aos pareceristas, que realizaram contribuições significativas para o aprimoramento da versão final do artigo, e ao CNPq, pela concessão de bolsa de produtividade em pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2014
  • Revisado
    02 Out 2015
  • Aceito
    06 Out 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br