No mesmo ritmo em que novas estratégias de combate à febre amarela ganharam forma nos últimos cem anos, a historiografia sobre o tema foi continuamente rejuvenescida; se Franco 11. Franco O. História da febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 1969. produziu um texto orientado pela história tradicional e restrito ao contexto nacional, Benchimol 22. Benchimol JL. Febre amarela: a doença e a vacina - uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. promoveu um significativo salto qualitativo no entendimento da presença da febre amarela e das condicionantes das ações sanitárias desenvolvidas em nome da enfermidade. O estudo aqui resenhado alcança um novo patamar de entendimento da questão sanitária porque explora o tema com um grau de complexidade maior que seus predecessores, resultando em um texto que foge de pontos convencionais e pouco precisos, durante um longo período acalentados pela historiografia nacional.
O eixo central do estudo reside nas condicionantes, primeiramente nacionais e, em seguida, continentais das campanhas que visavam à erradicação do Aedes aegypti (1917-1968), mosquito vetor da febre amarela e a atuação do sanitarista norte-americano Frederick Lowe Soper, que atuou nas campanhas entre 1927 e 1958. Para tanto, o autor explorou uma vasta documentação que o levou inclusive aos Estados Unidos, onde pôde consultar fontes até então raramente vistoriadas sobre a Fundação Rockefeller e, sobretudo, as que registram as ideias e embates sanitários vivenciados por Soper, que durante décadas atuou como funcionário daquela Fundação.
Inaugurada em 1918, a campanha de combate ao vetor da febre amarela na América e na África patrocinada pela Fundação Rockefeller chegou ao Brasil cinco anos depois, delonga justificada pela circunstância de o país já então desenvolver uma campanha própria, fato pouco comum em outros países do continente. Em 1927, Soper chegou ao Brasil para dirigir o Escritório Regional da Fundação Rockefeller, tornando-se o principal mentor das propostas erradicacionistas implantadas no território nacional e, em seguida, em todo o continente.
É com base na análise das atividades desenvolvidas pelo sanitarista estadunidense que Magalhães orienta sua pesquisa como também desvela novos horizontes para a historiografia da saúde pública. Nesse curso, o livro dialoga com a análise elaborada por Stepan 33. Stepan NL. Eradication: ridding the world of disease forever? London: Reaktion Books; 2011., que não só invoca a biografia profissional de Soper como exemplo de um “arquierradicacionista” como também adverte que a noção de erradicação não era e continua não sendo aceita por todos os especialistas, marmorizando-se como uma questão científica controversa.
Para além disso, Magalhães se afasta das caricaturas que focam as ações sanitárias promovidas pelos rockefellerianos como uma imposição imperialista aos colonizados que, nessa condição, limitariam suas atividades ao cumprimento das ordens dos norte-americanos. No decorrer do livro, o autor pontua seguidos momentos nos quais Soper dialogava em termos de igualdade com os médicos brasileiros e não raramente incorporava as propostas dos “nativos” na campanha de erradicação, sendo inclusive por isso definido como um personagem “transcultural”.
Incorporando essas orientações, a análise volta-se para os momentos iniciais das atividades de Soper no Brasil, baseadas na teoria dos focos-chave que advogava que a erradicação poderia ser alcançada com a eliminação do Ae. aegypti nos recintos públicos e privados das cidades mais populosas do país, localizadas sobretudo nas áreas litorâneas. No entanto, apesar de algumas das urbes que foram palco da intervenção sanitária ficaram livres do vetor, logo se percebeu que as cidades de menor porte, particularmente aquelas avizinhadas de áreas florestais, mantinham-se reféns da febre amarela, inclusive da forma silvestre da doença e, assim, poderiam reinfestar os centros urbanos maiores.
As críticas que tinham Soper como alvo, inclusive por parte da comunidade médica nacional, levaram à reorganização da campanha na década de 1930, dispondo-se então de novos procedimentos clínicos e epidemiológicos, tais como a realização de viscerotomias, isto é, a análise de amostras do fígado das vítimas fatais da febre amarela, o que permitia certificar que o óbito se deu em decorrência da enfermidade, e o exame de sangue da população interiorana, que por sua vez permitia o conhecimento da área de abrangência da ação do vetor da endemia. Mais ainda, administrou-se à população brasileira as primeiras vacinas antiamarílicas produzidas pela Fundação Rockefeller, já se sabendo que o macaco constituía-se no reservatório natural do vírus da febre amarela.
O novo padrão assumido pela campanha no Brasil foi reproduzido em outros países do continente, demonstrando maior eficiência da ação sanitária. Novas reorganizações, dessa vez administrativas, deram-se no encerramento dos anos 1930. O início da Segunda Guerra Mundial obrigou a Fundação Rockefeller a desviar seus recursos e seus profissionais para o teatro da beligerância. O financiamento e o gerenciamento da campanha de erradicação foram transferidos para o governo brasileiro e, ao mesmo tempo, Soper foi atuar no norte da África e, na sequência, na Itália.
A campanha de erradicação segmentada não mais em países, mas sim uma campanha de erradicação continental do Ae. aegypti foi ventilada pela primeira vez em 1942, durante a realização no Rio de Janeiro da XI Conferência Sanitária Pan-Americana, proposta que passou a ser concretizada em 1947. No decorrer da análise dessa nova Campanha, Magalhães confirma o papel central de Soper, que ocupou o cargo de diretor da Organização Pan-Americana da Saúde entre 1947 e 1959.
No cenário instituído no pós-guerra, o acompanhamento das atividades de Soper permite que o autor avalie a complexidade de uma campanha continental, afastando-se do comodismo de analisar as ações sanitárias em um único país. Se a doença seguia nas diversas regiões do continente o mesmo padrão epidemiológico, a ação se dava em diferentes contextos políticos e culturais, havendo a possibilidade de cada uma das nações adaptar parcialmente as atividades de erradicação do Ae. aegypti. Na década de 1950, quando o binômio saúde e desenvolvimento foi incorporado na agenda política das nações pobres do continente, Soper aflorou como um elemento fundamental nas negociações que permitiram a sincronia das ações nas repúblicas situadas abaixo do Rio Grande. Nesse sentido, o livro extrapola os limites das análises constantes em outras obras sobre o tema, clareando as circunstâncias políticas, econômicas e geoestratégicas que viabilizaram as atividades campanhistas, boa parte delas realizada fora dos interesses norte-americanos.
Os Estados Unidos se mantiveram pouco compromissados com a campanha de combate ao mosquito, mesmo que a febre amarela se mantivesse presente nos estados do sul do país. Somente em 1964, o país se voltou para a questão, não só por causa dos reclamos do México, que afirmava ser inútil a campanha em seu território se havia a possibilidade de reinstalação do Ae. aegypti pelo país vizinho, como também devido ao novo posicionamento que se viu obrigado a adotar em relação à América Latina após a ocorrência da Revolução Cubana. Mesmo assim, a campanha estadunidense foi precária e perdurou por apenas alguns anos, sendo aventado que uma das fontes de permanência da febre amarela no continente deve-se à “exportação” do Ae. aegypti pelos Estados Unidos. Nesse contexto, a própria noção de erradicação foi colocada em causa, frustrando Soper que, em diversas oportunidades, criticou a política sanitária de seu país.
- 1Franco O. História da febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 1969.
- 2Benchimol JL. Febre amarela: a doença e a vacina - uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001.
- 3Stepan NL. Eradication: ridding the world of disease forever? London: Reaktion Books; 2011.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
21 Nov 2017