A obra organizada por Telma Menicucci & José Geraldo Gontijo apresenta um fato difícil de alcançar dentro da produção acadêmica: a densidade e a simplicidade. Densidade no teor da reflexão e da análise e simplicidade na decodificação de assuntos tão complexos, atuais, interessantes e de grande relevância no cenário político-contemporâneo. A leitura de suas páginas permite identificar grandes mazelas na gestão e estruturação de políticas públicas que, particularmente no cenário brasileiro, impedem que, de fato, essas políticas cumpram o que deveria ser seu principal objetivo: apresentar propostas que, com base na equidade, no respeito ao público e à dignidade humana, reconheçam o direito a melhores condições de vida da sociedade, e que visem à superação das desigualdades sociais, históricas e insepultas, tanto no cenário nacional quanto no internacional.
A participação de um grupo seleto de autores com origens em diferentes áreas do conhecimento e com fundamentos teórico-metodológicos bem estruturados, conferiu ao texto diversos matizes e visões de mundo que confluem de forma coerente nas análises e nas conclusões. Assim, estruturado em cinco partes, cada uma com um número variável de capítulos, e tendo como comum denominador a análise das políticas públicas em diversas escalas territoriais, este livro constitui-se numa importante fonte de consulta e um estímulo para futuras análises.
A primeira parte do livro é um convite à reflexão sobre a governança e, portanto, sobre as tensões geradas no Estado para, por um lado atender às crescentes demandas sociais advindas das assimetrias e contradições geradas pela globalização e glocalização, e por outro, seu compromisso precípuo de gerar desenvolvimento econômico a baixo custo. Nesse contexto, evidencia-se que a formulação de políticas públicas fica submetida à configuração de arranjos para a tomada de decisões, visando minimizar a geração de conflitos e a otimização dos resultados. No entanto, os autores chamam a atenção para o fato de que num contexto neoliberal e de interesses difusos, a governança e colaboração entre os atores envolvidos nesse processo, mesmo quando na estruturação de redes, que em princípio deveriam obedecer a formas mais horizontalizadas e plurais de participação de tais atores, terminam muitas vezes criando espaços de disputa de poder que se sobrepõem e dão lugar a um emaranhado de relações que se tensionam e competem entre si permanentemente, mas que de forma conveniente para todos, mantém o Estado como figura central.
Dessa forma, no Brasil, por exemplo, mesmo num contexto democrático, a definição das prioridades nem sempre são aquelas que atendem às expectativas e demandas necessárias para saldar a histórica dívida social que esse Estado tem com sua população. Um contraponto nesse caso, parece ser a análise que apresenta Volker Schneider sobre redes, políticas públicas e a partilha de poder, num contexto em que o autor, utilizando-se de outra base, denominou de pós-democracia 11. Crouch C. Post-democracy. Malden: Polity Press; 2004., analisa aspectos da política ambiental alemã. O contraponto ocorre pelo fato de, embora no contexto alemão tenham sido incorporadas características desse modelo pós-democrático, segundo Schneider, tem havido avanços na distribuição do poder naquele país, diferente do que tem acontecido em outros contextos do cenário internacional e de capitalismo avançado.
Essa primeira parte do livro se articula de forma coerente com sua segunda parte, que trata do Federalismo, descentralização e gestão de políticas públicas, à medida que ambas as partes apresentam tanto as aproximações quanto os paradoxos e contradições entre os aspectos conceituais e referenciais que dão a base de sustentação para a análise da governança, da liderança e da formulação de políticas públicas na esfera federativa.
Embora se faça um grande esforço, por parte dos autores, para evidenciar os diversos sentidos dados ao termo Federalismo, chega-se à conclusão de que não há como tipificar o federalismo brasileiro dentro daqueles conceitos, em razão da pouca margem de manobra que os entes subnacionais têm, no Brasil, para propor e atender suas próprias prioridades. Isso gera inúmeros problemas de gestão para as políticas públicas em diversas escalas territoriais, entre elas a metropolitana, que aglutina grandes contingentes de cidadãos insatisfeitos e expostos a riscos de diversa índole, sendo que muitos deles poderiam ser evitados.
A terceira parte deste livro chama a atenção sobre as relações entre Estado, política social e desigualdades, e se apresenta, portanto, como um espelho que reflete um “retrato falado” da injustiça estrutural na América Latina em geral e no Brasil em particular. Nesse contexto, uma provocação: é possível pensar num welfare state latino-americano? Os diferentes autores dessa parte do livro nos apresentam um cenário que não possui grandes novidades em matéria diagnóstica da situação de desigualdades, iniquidades, injustiças sustentadas, inclusive, pela política social no território latino-americano, mas que deixa claro que uma das grandes dificuldades na região para superar esse histórico panorama está nos obstáculos ao reconhecimento e garantia dos direitos sociais como inerentes à condição de cidadãos desse território.
Por outro lado, não se leva em consideração que os recursos destinados às políticas sociais, longe de serem um “gasto” que onera os cofres públicos, são na verdade investimentos que geram retornos que se expressam de forma quantitativa, por meio de indicadores sociais, e qualitativamente pela satisfação e geração de maior expectativa de vida, não somente no sentido cronológico mas de sua qualidade, dignidade e sustentabilidade em todas as suas formas e estágios.
A quarta parte do livro desperta interesse acerca de um assunto, a meu ver, bastante negligenciado, tanto no contexto acadêmico como das próprias políticas públicas: a análise da questão urbana. Na contribuição dos autores que aqui subsidiam essa reflexão, e que tem como base as trajetórias das políticas de urbanização e de saneamento básico no cenário brasileiro, fica clara que, para além das dificuldades em matéria de investimentos em ambos os setores, evidenciam-se as tensões e travas, ocultas ou não, no reconhecimento do direito à terra e mais recentemente à cidade, o que pressupõe o reconhecimento de outros direitos correlatos como direito a saneamento, a meio ambiente, à moradia, à saúde, e a um mínimo de existência digna. Isso é mais uma expressão das relações assimétricas de poder que ameaçam a vida e a sustentabilidade num país de dimensões continentais e exuberância socioambiental.
O livro se encerra na quinta parte, quando estimula a reflexão sobre a gestão pública, as reformas e as formas de controle, e reflete o caráter realista e não pessimista que se expressa no livro como um todo, ao tempo em que se faz um convite para que, além das questões conceituais ou metodológicas da argumentação acadêmica, seja definido um pacto social que tenha como base a ética na política e em todas as atuações do Estado.
Por todo o aqui exposto, considero que o livro em tela, do ponto de vista acadêmico, é um valioso instrumento para a produção de novos conhecimentos na gestão das políticas públicas e, do ponto de vista político, é um chamado à reflexão profunda sobre a necessidade de um pacto transgeracional com a mudança.
- 1Crouch C. Post-democracy. Malden: Polity Press; 2004.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Dez 2017