Resumo:
Este artigo objetivou identificar a prevalência de insegurança alimentar em uma área rural do Nordeste do Brasil e investigar este desfecho de acordo com a residência em comunidades quilombolas e não quilombolas. Foi um estudo transversal com 21 comunidades rurais, sendo nove quilombolas, em 2014, utilizando a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Foram estimadas prevalências e razões de prevalência para insegurança alimentar, e a análise múltipla foi conduzida por regressão de Poisson com variância robusta. A situação de insegurança alimentar foi encontrada em 52,1% das famílias estudadas, sendo 64,9% entre quilombolas e 42% entre as demais. Insegurança alimentar foi associada a ser quilombola (RP = 1,25); ter nível econômico mais baixo (RP = 1,89; 2,98 e 3,22 para os níveis C2, D e E, respectivamente); ser beneficiário do Programa Bolsa Família (RP = 1,52); e ter quatro residentes ou mais no domicílio (RP = 1,20). A prevalência de insegurança alimentar foi elevada em toda a população, no entanto as comunidades quilombolas, apesar de pertencerem à mesma área de abrangência das outras comunidades, apresentaram uma prevalência ainda maior de insegurança alimentar, reforçando a vulnerabilidade dessa população.
Palavras-chave:
Segurança Alimentar e Nutricional; Grupo com Ancestrais do Continente Africano; Origem Étnica e Saúde; População Rural
Abstract:
This study aimed to measure the prevalence of food insecurity in a rural area of Northeast Brazil and investigate this outcome according to residence in quilombola communities (descendants of African slaves) versus non-quilombola communities. This was a cross-sectional study in 21 rural communities, 9 of which quilombolas, in 2014, using the Brazilian Food Insecurity Scale (EBIA). Prevalence rates and prevalence ratios were estimated for food insecurity, and Poisson multiple regression analysis with robust variance was performed. Food insecurity was found in 52.1% of the families: 64.9% in quilombola communities and 42% in the others. Food insecurity was associated with belonging to a quilombola community (PR = 1.25), lower economic status (PR = 1.89; 2.98, and 3.22 for status C2, D, and E, respectively), beneficiaries of Bolsa Família program (PR = 1.52), and four or more household members (PR = 1.20). Food insecurity prevalence was high in the entire population, but it was even higher in quilombola communities, even though they belonged to the same coverage area. The results emphasize this population’s vulnerability.
Keywords:
Food and Nutrition Security; African Continental Ancestry Group; Ethnicity and Health; Rural Population
Resumen:
Este artículo tuvo como objetivo identificar la prevalencia de la inseguridad alimentaria en un área rural del Nordeste de Brasil e investigar este resultado, de acuerdo con la residencia en comunidades quilombolas y no quilombolas. Fue un estudio transversal con 21 comunidades rurales, siendo 9 quilombolas, en 2014, utilizando Escala Brasileña de Inseguridad Alimentaria (EBIA). Se estimaron prevalencias y razones de prevalencia para inseguridad alimentaria, y el análisis múltiple fue dirigido por regresión de Poisson con variancia robusta. La situación de inseguridad alimentaria se encontró en un 52,1% de las familias estudiadas, siendo un 64,9% entre quilombolas y un 42% entre las demás. Inseguridad alimentaria se asoció a ser quilombola (RP = 1,25); tener un nivel económico más bajo (RP = 1,89; 2,98 y 3,22 para los niveles C2, D y E, respectivamente); ser beneficiario del programa Beca Familia (RP = 1,52); y la existencia de 4 residentes o más en el domicilio (RP = 1,20). La prevalencia de inseguridad alimentaria se elevó en toda la población, no obstante, las comunidades quilombolas, a pesar de pertenecer a la misma área de alcance de las otras comunidades, presentaron una prevalencia incluso mayor de inseguridad alimentaria, reforzando la vulnerabilidad de esa población.
Palabras-clave:
Seguridad Alimentaria y Nutricional; Grupo de Ascendencia Continental Africana; Origen Étnico y Salud; Población Rural
Introdução
As comunidades quilombolas, reconhecidas como comunidades tradicionais com presunção de ancestralidade negra, estão distribuídas em todo o território nacional, em maior concentração no Nordeste rural do Brasil. Apresentam características heterogêneas com trajetórias históricas próprias. Destaca-se que tais comunidades são redutos de sobrevivência e resistência física, social e cultural de grupos étnicos marginalizados, em sua maioria negros, desde a época da escravidão até os dias atuais 11. Brasil. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União 2003; 21 nov.,22. Fundação Cultural Palmares. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia. http://www.palmares.gov.br/?page_id=88# (acessado em 16/Jun/2014).
http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#... ,33. Silva VRR. Comunidades quilombolas, racismo ambiental e conflitos territoriais. In: Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS, organizadores. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p. 151-69. (Cadernos de Estudos de Desenvolvimento Social em Debate, 20)..
Historicamente, sofrem com a invisibilidade e a afronta aos direitos mais básicos de seus moradores. Somente nas últimas décadas, após lutas de vários atores sociais, a população quilombola passa a ser vista, de fato, como sujeitos de direitos, reconhecida na Constituição de 1988, regulamentada no Decreto nº 4.88711. Brasil. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União 2003; 21 nov. de 2003 e em outras políticas públicas voltadas para a essa população 44. Leite IB. O projeto político quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais. Revista Estudos Feministas 2008;16:965-77.,55. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: Editorial Abaré; 2005..
Grupos étnicos de origem quilombola mostram padrões diferenciados de vulnerabilidade quando comparados com a população urbana e rural do país 66. Guerrero AFH, Oliveira e Silva D, Toledo LM, Guerrero JCH, Teixeira P. Mortalidade infantil em remanescentes de quilombos do Munícipio de Santarém - Pará, Brasil. Saúde Soc 2007; 16:103-10.. Apesar de alguns avanços, a melhoria das condições de vida nas comunidades quilombolas caminha a passos lentos. A configuração de vulnerabilidade social nesses territórios ainda vem sendo encontrada com bastante frequência em pesquisas recentes, mostrando a continuidade de um quadro propício para a ocorrência da insegurança alimentar 77. Brandão A, Jorge AL. Comunidades quilombolas, acesso a programas sociais e segurança alimentar e nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 213-25..
A insegurança alimentar é um indicador de iniquidade social e se relaciona à falta de acesso regular e permanente de alimentos em quantidade e qualidade suficientes, ou até mesmo à preocupação com a ausência desse acesso em um futuro próximo, comprometendo a aquisição de outros bens e serviços essenciais 88. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 15 set.,99. Panigassi G, Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Pérez-Escamilla R, Sampaio MFA, Maranha LK. Insegurança alimentar como indicador de iniquidade: análise de inquérito populacional. Cad Saúde Pública 2008; 24:2376-84.. Estudos evidenciam que a população rural brasileira possui uma maior prevalência de insegurança alimentar quando comparada à população urbana 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar, 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.,1111. Rocha EMB, Lima RT, Almeida PC. Insegurança alimentar relacionada à área de residência em município do Semiárido brasileiro. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2014; 22:205-11..
Em 2006, a Chamada Nutricional Quilombola, realizada com famílias com membros menores de cinco anos, foi a primeira pesquisa que evidenciou a insegurança alimentar vivenciada por essa população em nível nacional 1212. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Chamada nutricional quilombola 2006. http://www.mds.gov.br/gestaodainformacao/disseminacao/sumarios-executivos-de-pesquisas/2007/chamada-nutricional-quilombola-2006/chamada-nutricional-quilombola-2006 (acessado em 20/Jan/2013).
http://www.mds.gov.br/gestaodainformacao... . Essa realidade se perpetuou e foi reafirmada pela Avaliação da Situação de Segurança Alimentar e Nutricional em Comunidades Quilombolas Tituladas, realizada em 2011, abrangendo 169 comunidades. Foi encontrada uma elevada prevalência de insegurança alimentar (55,6%), além de precárias condições de vida nos domicílios pesquisados 1313. Sardinha LMV, Campos R, Pires OS, Jannuzzi P. Análise das condições de vida, segurança alimentar e nutricional e acesso a programas sociais em comunidades quilombolas tituladas. In: Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS, organizadores. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p. 31-52. (Cadernos de Estudos de Desenvolvimento Social em Debate, 20)..
Apesar dos estudos sobre insegurança alimentar com a população quilombola, ainda há lacunas do conhecimento a serem preenchidas. Assim, a realização desta pesquisa se orientou por duas questões: 1. Numa mesma região rural, há diferenças na insegurança alimentar entre comunidades quilombolas e não quilombolas? 2. Que fatores poderiam influenciar a ausência de segurança alimentar nesses povos?
Diante do exposto, este trabalho teve como objetivo identificar a prevalência de insegurança alimentar em uma zona rural do Nordeste do Brasil e investigar os fatores associados a esse desfecho, de acordo com a residência em comunidades quilombolas e não quilombolas de uma mesma área de abrangência.
Métodos
Este foi um estudo transversal, de abordagem domiciliar, que teve como população alvo famílias residentes em uma área rural do Município de Vitória da Conquista, no interior da Bahia. Localizado a 509km da capital, na macrorregião econômica do sudoeste. O município está situado numa região de transição entre a caatinga e a mata atlântica, com condições climáticas atípicas. É a terceira maior cidade do estado, com uma população de mais de trezentos mil habitantes, dos quais cerca de 10% residem na zona rural e, desses, 24,8% vivem em situação de extrema pobreza (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades@. Bahia: Vitória da Conquista. http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=293330, acessado em 30/Abr/2016) (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Relatório institucional segurança alimentar e nutricional. http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/portal, acessado em 30/Abr/2015).
A população total da área estudada foi estimada em 1.316 famílias, oriundas de 21 comunidades (sendo nove comunidades remanescentes de quilombos reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares - FCP) 22. Fundação Cultural Palmares. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia. http://www.palmares.gov.br/?page_id=88# (acessado em 16/Jun/2014).
http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#... . Essa estimativa foi retirada das fichas A (ficha de cadastramento das famílias) da unidade de saúde da família e confirmada em posterior mapeamento das comunidades.
No cálculo do tamanho amostral, foram considerados dois estratos populacionais: famílias quilombolas (residentes em comunidades certificadas pela FCP) e não quilombolas. Considerou-se uma prevalência esperada de 35,1% de insegurança alimentar, conforme resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2009) para a zona rural brasileira 1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004/2009: segurança alimentar. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2010.; precisão de 5%; intervalo de 95% de confiança (IC95%) e efeito de desenho igual a 1; ao número resultante foram acrescidos 20% para possíveis perdas, totalizando uma amostra de 248 e 294 famílias quilombolas e não quilombolas, respectivamente. As famílias foram selecionadas aleatoriamente, de acordo com a distribuição proporcional por comunidade.
Estudo piloto foi realizado em junho de 2014 em uma comunidade rural não participante do estudo principal.
Anteriormente à coleta de dados, foram realizados mapeamento e identificação das famílias, com auxílio dos agentes comunitários de saúde (ACS). Nessa etapa, identificaram-se as coordenadas relativas aos domicílios e equipamentos da comunidade, obtidas em frente à porta principal dos locais. Para o mapeamento, foram utilizados aparelho GPS (Garmin eTrex-30), com precisão de 10m, máquina fotográfica digital, os dados do GPS foram extraídos com o programa EasyGPS (TopoGrafix, Stow, Estados Unidos), versão 5.21, e transferidos para o programa Google Earth (https://www.google.com/earth/), versão 7.1.2.2041.
Simultaneamente ao mapeamento, foi realizada sensibilização com as famílias com a distribuição de material impresso com informações sobre a pesquisa. A pesquisa também foi apresentada na reunião do Conselho Local de Saúde e do Conselho Territorial Quilombola, a fim de obter apoio para realização do estudo.
A coleta de dados ocorreu entre setembro de 2014 e janeiro de 2015. A equipe de entrevistadores foi composta por alunos de graduação, previamente treinados, utilizando computador portátil (HP Pocket Rx5710). Foi construído um manual para o entrevistador, visando padronizar a abordagem e procedimentos, bem como servir de suporte quando do aparecimento de quaisquer dúvidas durante as entrevistas. Para a programação e armazenamento dos dados, foi utilizado o software Questionnaire Development System (QDS; NOVA Research Company, Silver Spring, Estados Unidos), versão 2.6.1.
O indivíduo entrevistado foi o responsável pelo seu grupo familiar (chefe da família), desde que apresentasse idade maior que 18 anos e estivesse apto a responder ao questionário. Na impossibilidade do chefe da família, entrevistou-se outro morador maior de 18 anos. Foram realizadas reentrevistas em aproximadamente 5% da população amostral, selecionada por sorteio aleatório, para controle de qualidade dos dados.
Utilizou-se como instrumento de coleta um questionário sobre característica sociodemográfica do domicílio e do chefe da família baseado na Pesquisa Nacional de Saúde (http://www.pns.icict.fiocruz.br/arquivos/Domiciliar/Modulo%20A-PNS.pdf, acessado em 16/Jun/2014), e a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), adaptada de Segall-Corrêa & Marin-León 1515. Segall-Corrêa AM, Marin-León L. A segurança alimentar no Brasil: proposição e usos da escala brasileira de medida da insegurança alimentar (EBIA) de 2003 a 2009. Segurança Alimentar e Nutricional 2009; 16:1-19..
A insegurança alimentar, variável dependente deste estudo, foi obtida pela EBIA, que é uma escala psicométrica, composta por 15 perguntas fechadas, que une agrupamentos de conceitos, possibilitando estimar as prevalências de insegurança alimentar, e classificá-la de acordo com os níveis de gravidade (leve, moderada e grave). A EBIA avalia a percepção dos entrevistados sobre a alimentação em seu domicilio nos últimos três meses. Ela também possui diferenciação com a presença ou não de moradores menores de 18 anos de idade no domicílio 1515. Segall-Corrêa AM, Marin-León L. A segurança alimentar no Brasil: proposição e usos da escala brasileira de medida da insegurança alimentar (EBIA) de 2003 a 2009. Segurança Alimentar e Nutricional 2009; 16:1-19..
O estado de segurança alimentar foi definido pelas respostas “não”, “não sabe” ou “não se aplica” às primeiras oito perguntas. A presença de uma resposta do tipo “sim” definiu o estado de insegurança alimentar. Tal variável foi também calculada em seus diferentes níveis, segundo o escore obtido, conforme descrito na Tabela 1. Em relação aos pontos foi atribuído 1 ponto para respostas sim, e 0 para respostas não e não sabe 1515. Segall-Corrêa AM, Marin-León L. A segurança alimentar no Brasil: proposição e usos da escala brasileira de medida da insegurança alimentar (EBIA) de 2003 a 2009. Segurança Alimentar e Nutricional 2009; 16:1-19..
O estado de segurança alimentar também foi calculado conforme orientado por Hoffmann 1616. Hoffmann R. Brasil, 2013: mais segurança alimentar. Segurança Alimentar e Nutricional 2014; 21:422-36., para fins de comparabilidade com os dados da PNAD 2013 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar, 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014., utilizando a pontuação descrita na Tabela 1. Para tanto, a resposta à questão 15, “Nos últimos 3 meses, o(a) senhor(a) perdeu peso porque não tinha dinheiro suficiente para comprar comida?”, foi desprezada, considerando-se a EBIA com apenas 14 questões (Tabela 1).
As variáveis independentes para a avaliação da insegurança alimentar foram: residência em comunidade quilombola (sim ou não), nível econômico (classificação econômica definida pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, níveis B1, B2 e C1, C2, D ou E) 1717. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de classificação econômica no Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa; 2014., participação no programa Bolsa Família (sim ou não), recebimento de benefício de prestação continuada e/ou de outros programa sociais do governo (sim ou não), trabalho mensal fixo de pelo menos um dos moradores do domicílio (sim ou não), escolaridade do chefe da família (não alfabetizado/Fundamental 1 incompleto, Fundamental 1 completo/Fundamental 2 incompleto, Fundamental 2 completo/Médio incompleto ou Médio completo/Ensino Superior), presença de menores de 18 anos no domicílio (sim ou não), número de residentes no domicílio (1 a 3 residentes ou 4 residentes e mais), revestimento das paredes externas do domicílio (alvenaria com revestimento ou outros), tipo de piso (cerâmica/lajota/pedra ou cimento/terra/outros), abastecimento de água (rede geral de distribuição ou outras formas), água canalizada (sim ou não), tratamento da água para beber (filtrada e outras formas ou sem tratamento), número de cômodos no domicílio (1 a 6 cômodos ou 7 cômodos e mais), tipo de fogão utilizado predominantemente (gás de botijão ou lenha e outras formas), existência de geladeira no domicílio (sim ou não), quantidade de banheiro (nenhum, 1 ou 2 e mais), destino do lixo (coletado por serviço de limpeza ou queimado/enterrado/jogado em terreno baldio ou logradouro).
As diferenças entre as proporções foram testadas com a distribuição qui-quadrado de Pearson, qui-quadrado de tendência linear ou teste exato de Fisher para a amostra total e cada estrato (quilombola e não quilombola), como também para comparar os resultados dos níveis de insegurança alimentar obtidos pelas duas escalas (EBIA com 14 questões e EBIA com 15 questões). A prevalência da insegurança alimentar foi estimada em seus diferentes níveis (leve, moderada e grave), no entanto, para as análises bivariadas e multivariadas, a variável ‘insegurança alimentar’ foi dicotomizada em presença de insegurança alimentar (em qualquer grau: leve, moderada ou grave) e ausência de insegurança alimentar. A razão de prevalência (RP) foi utilizada para estimar a associação da insegurança alimentar e as variáveis explicativas de interesse. Utilizou-se regressão de Poisson com variância robusta, para estimar as RP para a insegurança alimentar, ajustadas por potenciais fatores de confusão para a amostra total e para os estratos quilombola e não quilombola. Foram incluídas no modelo inicial todas as variáveis que, na análise bivariada, apresentaram associação com a insegurança alimentar em nível de significância inferior a 20%. Para todos os testes e para permanência das variáveis no modelo final, foi utilizado o nível de 5% de significância. Os modelos foram comparados pelo critério de Akaike. A adequação do modelo foi avaliada pelo qui-quadrado. Utilizou- se o programa Stata (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos), versão 12.0 para análise dos dados.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (CAAE 27003614000005556, em 20 de junho de 2014). Para a coleta dos dados, os participantes foram previamente informados sobre os objetivos da pesquisa, procedimentos e sigilo dos dados com leitura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, expressando sua concordância em participar do estudo pela assinatura ou impressão dactiloscópica.
Resultados
Participaram do estudo 459 famílias, sendo 202 quilombolas (44%) e 257 não quilombolas (56%). A proporção de perdas (18,5% para o estrato quilombola e 12,6% para o não quilombola) foi inferior à prevista inicialmente; o principal motivo foi a ausência de moradores no domicílio após três visitas (62,2%). Não houve perdas diferenciais em relação ao número de residentes no domicílio (valor de p de 0,950 e de 0,952 para os estratos quilombola e não quilombola, respectivamente).
A situação de insegurança alimentar foi encontrada em 52,1% da população estudada, sendo 30,9% leve, 15,7% moderada e 5,4% grave. Considerando a EBIA com 14 questões, a prevalência de insegurança alimentar foi a mesma, no entanto com 31,4% leve, 13,1% moderada e 7,6% grave. O estrato quilombola exibiu prevalências superiores em todos os níveis de insegurança alimentar quando comparado ao não quilombola. Não houve diferença estatisticamente significativa entre as prevalências de insegurança alimentar de acordo com as escalas (Figura 1).
Prevalência de insegurança alimentar na amostra total e nos estratos quilombola e não quilombola. Bahia, Brasil, 2015.
A maioria das famílias encontrava-se no nível econômico D (48,6%), 48% eram beneficiárias do programa Bolsa Família e 6,3% recebiam Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou de outros programas sociais do governo. Cerca de 54,3% dos domicílios tinham pelo menos um morador com renda proveniente de trabalho mensal fixo e 57,8% dos chefes das famílias eram não alfabetizados ou tinham nível Fundamental 1 incompleto. Foram identificados 60,4% dos domicílios com menores de 18 anos e 52% com 1 a 3 residentes (Tabela 2).
Características do domicílio e sociodemográficas da amostra total e dos estratos quilombolas e não quilombolas. Bahia, Brasil, 2015.
A maior parte das famílias visitadas possuía domicílios com paredes externas de alvenaria com revestimento (72,1%), piso de cerâmica, lajota ou pedra (63,4%), principal forma de abastecimento de água proveniente da rede geral de distribuição (80,6%), água canalizada em pelo menos um cômodo (69,7%), água para beber tratada (83%), 1 a 6 cômodos (54,7%), fogão que utilizava como fonte de energia gás de botijão (64,1%), geladeira (88,9%), 1 banheiro (73,9%) e o lixo era queimado, enterrado ou jogado em terreno baldio (53,6%) (Tabela 2).
As famílias quilombolas e não quilombolas diferiram significativamente em relação ao: nível econômico, participação no Bolsa Família, ter algum membro com trabalho mensal fixo, escolaridade do chefe da família, tipo de piso no domicílio, existência de água canalizada, tratamento de água para beber, números de cômodos, tipo de fogão utilizado predominantemente, existência de geladeira, quantidade de banheiros e destino do lixo (Tabela 2).
A prevalência de insegurança alimentar em quilombolas foi significativamente superior à observada entre os não quilombolas, sendo de 64,9% e 42%, respectivamente (Tabela 3). Encontrou-se associação positiva e significativa entre a insegurança alimentar e residir em comunidade quilombola, menor nível econômico (com relação dose-resposta), ser beneficiário do Bolsa Família, presença de menores de 18 anos entre os membros da família, residir em domicílio com quatro residentes e mais, piso de cimento, terra ou outros, ter outras formas de abastecimento de água que não seja a rede geral de distribuição, não ter água canalizada, possuir fogão com fonte de energia de lenha ou outras formas, não ter banheiro, ter lixo queimado, enterrado ou jogado em terreno baldio. Associação negativa e significativa foi constatada com ter trabalho mensal fixo, maior nível de escolaridade do chefe da família (Ensino Fundamental 2 completo e outros), consumir água tratada, domicílio ter 7 cômodos e mais (Tabela 3).
Prevalência, razão de prevalência e intervalo de 95% de confiança (IC95%) da insegurança alimentar, segundo variáveis avaliadas. Bahia, Brasil, 2015.
Entre as famílias quilombolas, foi observada associação positiva e significativa com o nível econômico E e ser beneficiário do Bolsa Família, e negativa com residir em domicílio com 7 cômodos ou mais. Entre as famílias não quilombolas, os fatores associados com a insegurança alimentar foram os mesmos que para a amostra total (Tabela 3).
Os seguintes fatores mostraram-se independentemente associados à insegurança alimentar na amostra total: ser quilombola (RP = 1,25); ter nível econômico mais baixo, com gradiente dose-resposta (RP = 1,89; RP = 2,98 e RP = 3,22 para os níveis C2, D e E, respectivamente); ser beneficiário do Bolsa Família (RP = 1,52); e ter 4 residentes e mais no domicílio (RP = 1,20). Para o estrato quilombola, ter nível econômico D ou E (RP = 1,81 e RP = 1,95, respectivamente) e ser beneficiário do Bolsa Família (RP = 1,28) estiveram positivamente associados. Para o não quilombola, verificou-se associação positiva e significativa com nível econômico mais baixo, com gradiente dose-resposta (RP = 2,25; RP = 3,69 e RP = 4,09 para os níveis C2, D e E, respectivamente); ser beneficiário do Bolsa Família (RP = 1,76); ter 4 residentes e mais no domicílio (RP = 1,35) e ter fogão que utilizava como fonte de energia lenha e outras formas (RP = 1,36); e associação negativa com consumir água tratada por filtragem ou outra forma (RP = 0,69) (Tabela 4).
Razões de prevalências (RP) ajustadas para insegurança alimentar das variáveis incluídas no modelo final de regressão. Bahia, Brasil, 2015.
Discussão
A insegurança alimentar esteve presente na maior parte dos domicílios pesquisados, especialmente nas comunidades quilombolas, com prevalências superiores às das populações rurais brasileiras (35,3%), da Região Nordeste (38,1%) e da Bahia (37,8%) 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar, 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.. Tal fato reforça o contexto de vulnerabilidade apresentado por essas famílias, demonstrado pelos baixos níveis econômicos e de escolaridade, grande participação em programas sociais de transferência de renda e precariedade das condições de moradia.
Estudos demostram que as famílias residentes em comunidades rurais têm maior prevalência de insegurança alimentar quando comparadas às famílias residentes na zona urbana 1111. Rocha EMB, Lima RT, Almeida PC. Insegurança alimentar relacionada à área de residência em município do Semiárido brasileiro. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2014; 22:205-11.,1818. Vianna RPT, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar das famílias residentes em municípios do interior do estado da Paraíba, Brasil. Rev Nutr 2008; 21 Suppl:111s-22s.,1919. Ferreira HS, Souza MEDCA, Moura FA, Horta BL. Prevalência e fatores associados à insegurança alimentar e nutricional em famílias dos municípios do norte de Alagoas, Brasil, 2010. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1533-42.. No entanto, Hoffmann 1616. Hoffmann R. Brasil, 2013: mais segurança alimentar. Segurança Alimentar e Nutricional 2014; 21:422-36. discute que apenas o fato de residir na área rural não implica necessariamente maior ocorrência de insegurança alimentar, uma vez que as condições de vida enfrentadas por essa população, que em sua maioria apresenta uma menor renda per capita e escolaridade, podem ser consideradas os principais determinantes desse estado de insegurança.
Um ponto importante a se destacar é que a área rural estudada apresenta condições climáticas desfavoráveis à produção de alimentos, tanto para autoconsumo quanto como fonte de renda. Há chuvas concentradas em curtos períodos do ano, que, aliadas à falta de proteção dos solos, favorece a erosão, e solos bastante degradados, com áreas pedregosas e outras argilosas 2020. Maia MR. Sustentabilidade e agricultura familiar em Vitória da Conquista - BA [Tese de Doutorado]. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe; 2012.. A produção também é prejudicada pelo uso de técnicas rudimentares e a quase inexistência de assistência técnica, dificultando o enfrentamento das condições climáticas desfavoráveis. Outro fator relevante é o fato de a maioria das propriedades ser adquirida por meio de herança familiar, portanto repartidas ao longo do tempo, resultando em pequenas propriedades com até 3 hectares, nas quais se produz em pequena quantidade feijão, milho e mandioca. Outra dificuldade é com o transporte, tanto de pessoas para o acesso a bens e serviços, como também para escoamento da produção 20. Como as atividades agrícolas são uma das principais fontes de renda dessas famílias, essas características influenciam no aumento da vulnerabilidade delas.
A insegurança alimentar acontece desde a preocupação com a possível falta de alimentos em um futuro próximo até a fome propriamente dita. Com essa amplitude de possibilidades, faz-se a necessidade da classificação em níveis de insegurança alimentar. A insegurança alimentar leve é caracterizada pela preocupação quanto ao acesso aos alimentos no futuro e a qualidade inadequada da alimentação. Já a moderada, pela restrição quantitativa de alimentos entre os adultos; e a grave, com a redução da quantidade de alimentos entre as crianças e a presença da fome (quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos) 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar, 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014..
Nas famílias estudadas, percebe-se que uma porcentagem considerável da população convive com a fome. Ao comparar com a PNAD 2013 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar, 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014., as frequências de insegurança alimentar leve, moderada e grave para a zona rural brasileira (21,4%, 8,4% e 5,5%, respectivamente), para a população da Região Nordeste (23,6%, 8,9% e 5,6%) e para a Bahia (21,8%, 9,4% e 6,6%) foram inferiores às encontradas neste estudo, demostrando que a população estudada não alcançou os mesmos avanços na melhoria da segurança alimentar, encontrados em nível nacional. Essa situação é ainda mais grave entre os quilombolas, nos quais a insegurança alimentar grave atinge o valor de 12%.
As famílias quilombolas apresentaram prevalência 25% maior de insegurança alimentar que as não quilombolas. A estratificação de famílias pertencentes a uma mesma área de abrangência evidencia que as famílias quilombolas, mesmo na atualidade, possuem desigualdades nas condições de vida e acesso aos alimentos em relação a famílias não quilombolas. Esse fato leva a concluir que outros fatores que não apenas a localização em zona rural e o difícil acesso a essas comunidades podem influenciar nas condições inadequadas de vida e alimentação. Em 2011, Bezerra et al. 2121. Bezerra VM, Medeiros DS, Gomes KO, Souzas R, Giatti L, Steffens AP, et al. Inquérito de saúde em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil (Projeto COMQUISTA): aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1835-47., em pesquisa com comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, já relatavam menor cobertura de abastecimento de água por rede geral de distribuição e de coleta regular de lixo, baixo grau de escolaridade e renda per capita familiar, quando comparada com a população total do município, do estado e do país. Condições de vida desiguais são reafirmadas no presente estudo. O distinto grau de vulnerabilidade encontrado pela medida da insegurança alimentar, reforça a possibilidade da utilização da insegurança alimentar como um indicador de iniquidade social, conforme ressaltaram Panigassi et al. 99. Panigassi G, Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Pérez-Escamilla R, Sampaio MFA, Maranha LK. Insegurança alimentar como indicador de iniquidade: análise de inquérito populacional. Cad Saúde Pública 2008; 24:2376-84..
A renda familiar é entendida como um dos determinantes mais importantes da insegurança alimentar 1616. Hoffmann R. Brasil, 2013: mais segurança alimentar. Segurança Alimentar e Nutricional 2014; 21:422-36., tanto que a própria EBIA é um instrumento que, na sua construção, já identifica a insegurança alimentar ocasionada pela falta de dinheiro. Isso se dá porque, no Brasil, o acesso aos alimentos ocorre geralmente por meio da compra 1616. Hoffmann R. Brasil, 2013: mais segurança alimentar. Segurança Alimentar e Nutricional 2014; 21:422-36..
As famílias de zona rural geralmente não possuem renda fixa, assim a classificação em nível econômico expressa uma forma mais apropriada à situação delas, pois estima a condição econômica da família baseada nos bens do domicílio (geladeira, rádio, motocicleta, máquina de lavar roupas, dentre outros), na presença de empregado doméstico mensalista e na escolaridade do chefe da família. Os níveis econômicos apresentaram associação independente com a insegurança alimentar, com efeito de dose-resposta, reforçando a sua relação de causalidade, quanto menor o nível econômico maior a prevalência de insegurança alimentar. No estrato quilombola, esse efeito foi observado apenas para os níveis D e E e com magnitude menor que o estrato não quilombola, provavelmente em função da maior homogeneidade dos dados. Além disso, a EBIA, por ser uma escala psicométrica com elementos subjetivos, pode sofrer alterações na medida de insegurança alimentar em famílias extremamente pobres, dentre as quais a ausência de alimentos pode não ser declarada, por ter se tornado “comum” 33. Silva VRR. Comunidades quilombolas, racismo ambiental e conflitos territoriais. In: Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires PS, organizadores. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014. p. 151-69. (Cadernos de Estudos de Desenvolvimento Social em Debate, 20).. Outros estudos 2222. Santos JV, Gigante DP, Domingues MR. Prevalência de insegurança alimentar em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, e estado nutricional de indivíduos que vivem nessa condição. Cad Saúde Pública 2010; 26:41-9.,2323. Peixoto MRG, Ramos K, Martins KA, Schincaglia RM, Braudes-Silva LA. Insegurança alimentar na área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara, Goiás. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:327-36.,2424. Bastos CMM, Pinheiro ARO, Gubert MB. Insegurança alimentar e nutricional e fatores associados em famílias do Núcleo Rural Agrícola Lamarão, no Distrito Federal. Tempus (Brasília) 2014; 8:133-56.,2525. Nascimento AL, Gonçalves FCLSP, Maia SR, Schneider S, Lira PIC. A construção de capacidades e meios de vida na garantia da segurança alimentar do rural pernambucano. Segurança Alimentar e Nutricional 2012; 19:50-62. também encontraram essa relação da insegurança alimentar com os níveis econômicos.
A escolaridade do chefe da família se mostrou significativa na primeira análise, porém essa variável não permaneceu no modelo final. Esse resultado difere do encontrado em estudo com famílias dos municípios do norte de Alagoas 1919. Ferreira HS, Souza MEDCA, Moura FA, Horta BL. Prevalência e fatores associados à insegurança alimentar e nutricional em famílias dos municípios do norte de Alagoas, Brasil, 2010. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1533-42. e entre trabalhadores de restaurantes populares do Rio de Janeiro 2626. Falcão ACML, Aguiar OB, Fonseca MJM. Association of socioeconomic, labor and health variables related to food insecurity in workers of the Popular Restaurants in the city of Rio de Janeiro. Rev Nutr 2015; 28:77-87.; contudo se assemelha ao achado entre beneficiários do Bolsa Família em Toledo (Paraná) 2727. Anschau FR, Matsuo T, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar entre beneficiários de programas de transferência de renda. Rev Nutr 2012; 25:177-89., famílias com adolescentes na Amazônia Legal Brasileira 2828. Guerra LDS, Espinosa MM, Bezerra ACD, Guimarães LV, Lima-Lopes MA. Insegurança alimentar em domicílios com adolescentes da Amazônia Legal Brasileira: prevalência e fatores associados. Cad Saúde Pública 2013; 29:335-48., usuários de restaurantes populares no Brasil 2929. Godoy KC, Sávio KEO, Akutsu RC, Gubert MB, Botelho RBA. Perfil e situação de insegurança alimentar dos usuários dos Restaurantes Populares no Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30:1239-49. e famílias residentes em uma área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara (Goiás) 2323. Peixoto MRG, Ramos K, Martins KA, Schincaglia RM, Braudes-Silva LA. Insegurança alimentar na área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara, Goiás. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:327-36.. Como neste trabalho, foi utilizado o nível econômico do domicílio, o qual considera a escolaridade do chefe da família para a sua construção. Isso pode ter contribuído para a não manutenção dessa última na análise ajustada. Outra questão importante é a homogeneidade dessa variável (84,9% não tinham o Ensino Fundamental completo, proporção mais alta entre as famílias quilombolas - 93%).
A prevalência de insegurança alimentar foi mais elevada em domicílios com 4 residentes e mais, sendo 20% mais prevalente que em domicílios com 1 a 3 residentes, resultado que pode ser corroborado por outros estudos 1919. Ferreira HS, Souza MEDCA, Moura FA, Horta BL. Prevalência e fatores associados à insegurança alimentar e nutricional em famílias dos municípios do norte de Alagoas, Brasil, 2010. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1533-42.,2323. Peixoto MRG, Ramos K, Martins KA, Schincaglia RM, Braudes-Silva LA. Insegurança alimentar na área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara, Goiás. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:327-36.,2727. Anschau FR, Matsuo T, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar entre beneficiários de programas de transferência de renda. Rev Nutr 2012; 25:177-89.. Aschau et al. 2727. Anschau FR, Matsuo T, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar entre beneficiários de programas de transferência de renda. Rev Nutr 2012; 25:177-89. explicam que famílias numerosas necessitam de mais recursos para a aquisição de alimentos e que o aumento da renda nem sempre acompanha o crescimento familiar.
A participação no Bolsa Família, programa brasileiro de transferência condicionada de renda, mostra-se uma importante forma de redução da desigualdade social 3030. Hoffmann R. Transferências de renda e desigualdades no Brasil (1995-2011). In: Campello T, Neri MC, organizadores. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2013. p. 207-16. e contribui para o aumento do acesso aos alimentos e variedade deles nos lares dos beneficiários 3131. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas; 2008.. Cabral et al. 3232. Cabral CS, Lopes AG, Lopes JM, Vianna RPT. Segurança alimentar, renda e Programa Bolsa Família: estudo de coorte em municípios do interior da Paraíba, Brasil, 2005-2011. Cad Saúde Pública 2014; 30:393-402., em uma coorte que avaliou a participação no Bolsa Família e a segurança alimentar nos anos de 2005 e 2011, em municípios do interior da Paraíba, apontaram que o programa contribui no incremento da renda e no aumento da segurança alimentar e insegurança leve em detrimento da insegurança moderada ou grave, mas, ainda assim indica que outras variáveis sociais podem estar relacionadas com esse resultado.
Entretanto, estudos ainda encontram altas prevalências de insegurança alimentar entre as famílias beneficiárias 1919. Ferreira HS, Souza MEDCA, Moura FA, Horta BL. Prevalência e fatores associados à insegurança alimentar e nutricional em famílias dos municípios do norte de Alagoas, Brasil, 2010. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1533-42.,2323. Peixoto MRG, Ramos K, Martins KA, Schincaglia RM, Braudes-Silva LA. Insegurança alimentar na área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara, Goiás. Epidemiol Serv Saúde 2014; 23:327-36.,2727. Anschau FR, Matsuo T, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar entre beneficiários de programas de transferência de renda. Rev Nutr 2012; 25:177-89.,3131. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas; 2008.,3333. Fachine LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniquidades. Cad Saúde Pública 2014; 30:161-74.. Da mesma forma, prevalência elevada de insegurança alimentar (69%) foi encontrada entre os beneficiários do presente estudo, tanto para famílias quilombolas quanto para não quilombolas, e a participação no Bolsa Família mostrou-se independentemente associada à insegurança alimentar nessas famílias, mesmo após ajuste. Como este foi um estudo transversal em que as variáveis explicativas e o desfecho são mensurados num mesmo momento, não se pode descartar a possibilidade de causalidade reversa, dado que o estado de insegurança alimentar pode ter antecedido o recebimento do benefício. Assim, as famílias em situação de maior vulnerabilidade, e consequente insegurança alimentar, podem, por esse motivo, ter sido contempladas no programa.
Ainda assim, esses fatos evidenciam que o programa, mesmo melhorando as condições de vida das famílias, por si só, não consegue garantir a segurança alimentar delas. Outra questão é que apesar de o Bolsa Família aumentar o acesso e a variedade quantitativa dos alimentos, não é necessariamente acompanhado de melhoria na qualidade nutricional da alimentação 3131. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas; 2008.,3434. Cotta RMM, Machado JC. Programa Bolsa Família e segurança alimentar e nutricional no Brasil: revisão crítica da literatura. Rev Panam Salud Pública 2013; 33:54-60.,3535. Lignani JB, Sichieri R, Burlandy L, Salles-Costa R. Changes in food consumption among the Programa Bolsa Família participant families in Brazil. Public Health Nutr 2010; 14:785-92..
Os programas de transferência condicionada de renda são importantes para a garantia da segurança alimentar. Todavia, devem ser associados com outras políticas públicas de educação alimentar e nutricional, programas de infraestrutura e ações que impactem o sistema produtivo (como geração de emprego, formalização do trabalho, estabilidade dos preços dos alimentos e apoio à agricultura familiar), entre outras ações 3434. Cotta RMM, Machado JC. Programa Bolsa Família e segurança alimentar e nutricional no Brasil: revisão crítica da literatura. Rev Panam Salud Pública 2013; 33:54-60., visando à melhoria no acesso quantitativo aos alimentos, mas também à possibilidade de escolha de uma alimentação saudável e adequada, respeitando o meio ambiente e a cultura alimentar, com valorização dos alimentos regionais.
O presente estudo apresenta algumas limitações. Em razão do baixo grau de escolaridade de uma grande parcela da população estudada, pode ter ocorrido dificuldades na compreensão das questões da EBIA, levando a um viés de informação. A fim de minimizar esse efeito, foram realizados treinamento dos entrevistadores, estudo piloto e a utilização de um manual para o entrevistador, contendo maiores explicações sobre as questões para um melhor entendimento e padronização da coleta de dados.
Como este estudo foi realizado no meio rural, a prevalência de insegurança alimentar também pode sofrer influências da sazonalidade, por conta da maior oferta de trabalho temporário em períodos de colheitas e da maior produção de alimentos pelas famílias. Contudo, é razoável supor que a vulnerabilidade da ocorrência de insegurança alimentar nessa população não seja alterada.
Considerações finais
As famílias da zona rural estudada vivenciam uma situação de elevada prevalência de insegurança alimentar. Nesse contexto, dada a sua vulnerabilidade, as famílias quilombolas ganham destaque que se reflete inclusive no estado de insegurança. Ser quilombola não apenas está associado a um aumento da prevalência da insegurança alimentar, mas também à maior gravidade de seus níveis, em comparação com famílias não quilombolas que residem numa mesma área geográfica.
Apesar dos avanços nas ações afirmativas e de políticas públicas voltadas para essa população, ainda há muito a ser conquistado. Os resultados deste trabalho demonstram a maior vulnerabilidade econômica, social e de moradia das famílias quilombolas.
Considerando ser uma população residente na área rural, esse pode ser um ambiente favorável para a produção de alimentos de forma social, econômica e ambientalmente sustentável, que favoreceria o acesso regular e permanente aos alimentos em quantidade e qualidade suficientes, baseada em práticas alimentares seguras. No entanto, é necessária a melhoria das condições de vida dessas populações com maior acesso a serviços de educação e saúde. Políticas públicas de incentivo à produção agroecológica (regulamentação fundiária, assistência técnica, distribuição de sementes, acesso à água, entre outros) e de educação alimentar e nutricional que valorizem os alimentos regionais, são também importantes.
A atuação da equipe de saúde da família, no âmbito da atenção primária em saúde, é uma estratégia de grande valia para o fortalecimento e qualificação do cuidado alimentar e nutricional nas comunidades rurais e quilombolas. Todavia, é importante destacar que as ações devem ser planejadas com intuito de atender às especificidades dessas populações.
Agradecimentos
Aos entrevistadores, agentes comunitários de saúde e demais profissionais das equipes de saúde da família, fundamentais para a execução deste trabalho. Às famílias que participaram da pesquisa pela receptividade e colaboração. Ao Pró-Saúde/PET Saúde - Edital nº 24, de 15 de dezembro de 2011, Ministério da Saúde.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Jun 2017
Histórico
- Recebido
13 Jan 2016 - Revisado
25 Maio 2016 - Aceito
24 Jun 2016