Resumo:
O objetivo do presente trabalho é compreender como os médicos do maior pronto-atendimento de uma metrópole brasileira orientam o cuidado aos pacientes graves com suspeita de morte encefálica e potenciais doadores de órgãos. Trata-se de uma etnografia, desenvolvida em um hospital de pronto-socorro, referência em trauma na América Latina, situado no hipercentro da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. A instituição, de modo pioneiro no Brasil, conta com um setor específico para onde são encaminhados os pacientes com suspeita de morte encefálica. O trabalho de campo foi realizado durante nove meses, baseado em observações empíricas e entrevistas junto a 43 médicos plantonistas - 25 homens e 18 mulheres, entre 28 e 69 anos. A análise dos dados foi orientada pelo modelo de “signos, significados e ações”. À etnografia, emergiu o processo de cuidado médico ao paciente em suspeita de morte encefálica que contempla: terapia intensiva; realização do protocolo e comunicação do fato à família do paciente. Nesse último caso, a interlocução perpassa as controvérsias no conceito de morte encefálica, o contexto sociocultural e o contexto do pronto-atendimento. Ficou claro que esse processo de cuidado médico ultrapassa questões meramente normativas e adentra uma complexidade de elementos, sobretudo o papel do profissional como mediador de uma miríade de elementos e tensões imbricados. Entre a constatação e a comunicação da morte encefálica emergem percepções ambivalentes dos médicos e dos familiares. O estudo evidenciou que a tênue definição do que seja a vida e a morte tangencia toda a atuação médica, tendo implicações diretas no cuidado ao paciente/potencial doador e aos familiares.
Palavras-chave:
Morte Encefálica; Atitude Frente à Morte; Relações Profissional-Família; Medicina de Emergência; Assistência à Saúde
Abstract:
The objective of this study was to understand how physicians at the largest emergency department in a large Brazilian city orient care for critical patients with suspected brain death and who are potential organ donors. This ethnographic study was conducted in an emergency care hospital, a reference in traumatology in Latin America, located in downtown Belo Horizonte, Minas Gerais State. The institution took pioneering steps in Brazil with a specific sector where patients with suspected brain death are referred. The fieldwork was performed over the course of nine months, based on targeted observations and interviews with 43 on-duty staff physicians (25 men and 18 women), from 28 and 69 years of age. Data analysis followed the “signs, meanings, and actions” model. The ethnography revealed the process of medical care for patients with suspected brain death, including: intensive care, adherence to protocol, and communicating the patient’s status to the family. In the latter case, the dialogue reveals the controversies in the concept of brain death, the sociocultural context, and the emergency care context. It became clear that this process of medical care extrapolates merely normative issues, entering into a complex web of elements, especially the professional’s role as mediator of a myriad of interwoven elements and tensions. Between confirmation of the brain death and communicating the situation to the family, ambivalent perceptions emerge, both for the physicians and the family members. The study evidenced how the tenuous definition of what constitutes life and death touches on all of the medical act, with direct implications on care for patients/potential donors and their families.
Keywords:
Brain Death; Attitude to Death; Professional-Family Relations; Emergency Medicine; Delivery of Health Care
Resumen:
El objetivo de este trabajo es comprender cómo los médicos del mayor servicio de urgencias de una metrópoli brasileña orientan en el cuidado a pacientes graves, con sospecha de muerte encefálica, y potenciales donadores de órganos. Se trata de un trabajo etnográfico, desarrollado en un hospital con servicio de urgencias, referente en casos de trauma en Latinoamérica, situado en la zona metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. La institución, de modo pionero en Brasil, cuenta con un sector específico, donde se dirigen los pacientes con sospecha de muerte encefálica. El trabajo de campo se realizó durante nueve meses, basado en observaciones empíricas y entrevistas, junto a 43 médicos de guardia - 25 hombres y 18 mujeres-, entre 28 y 69 años. El análisis de los datos se orientó por el modelo de “signos, significados y acciones”. Con la etnografía, emergió el proceso de cuidado médico al paciente con sospecha de muerte encefálica que contempla: terapia intensiva, realización del protocolo y comunicación del hecho a la familia del paciente. En ese último caso, la interlocución revela las controversias en el concepto de muerte encefálica, contexto sociocultural y contexto del servicio de urgencias. Quedó claro que este proceso de cuidado médico ultrapasa cuestiones meramente normativas y se adentra en una complejidad de elementos, sobre todo respecto al papel del profesional como mediador de una miríada de elementos y tensiones imbricados. Entre la constatación y la comunicación de la muerte encefálica emergen percepciones ambivalentes de médicos y familiares. El estudio evidenció que la tenue definición de lo que es vida y muerte es tangencial a toda la actuación médica, teniendo implicaciones directas en el cuidado al paciente/potencial donador y para los familiares.
Palabras-clave:
Muerte Encefálica; Actitud Frente a la Muerte; Relaciones Profesional-Familia; Medicina de Emergencia; Prestación de Atención de Salud
Introdução
Doenças provocadas por causas externas, especialmente oriundas de trauma, assumem expressiva relevância no âmbito das internações hospitalares no Sistema Único de Saúde (SUS) 11. Pessôa LR, Santos IS, Machado JP, Martins ACM, Lima CRA. Realocar a oferta do SUS para atender problemas do futuro: caso do trauma no Brasil. Saúde Debate 2016; 40:9-19.. O aumento da violência urbana 22. Diniz EPH, Pinheiro LC, Proietti FA. Quando e onde se acidentam e morrem os motociclistas em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública 2015; 31:2621-34. repercute na morbimortalidade da população brasileira e configura grave problema de saúde pública 11. Pessôa LR, Santos IS, Machado JP, Martins ACM, Lima CRA. Realocar a oferta do SUS para atender problemas do futuro: caso do trauma no Brasil. Saúde Debate 2016; 40:9-19.. Somam-se ao trauma, as doenças crônicas não transmissíveis que também concorrem para um número crescente de hospitalizações na urgência 33. Coelho MF, Goulart BF, Chaves LDP. Urgências clínicas: perfil de atendimentos hospitalares. Rev Rene (Online) 2013; 14:50-9..
Nesse contexto, para evitar a morte, desfecho que contraria e desafia os ditames biomédicos, adotam-se diferentes dispositivos médicos e institucionais a serviço da manutenção da vida 44. Aredes JS, Modesto AL. "Entre vidas e mortes, entre máscaras e fugas": um estudo sobre a prática médica hospitalar. Physis (Rio J.) 2016; 26:435-53.. Nesse sentido, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e os Centros de Terapia Intensiva (CTI) assumem um importante papel: o primeiro assegura maior agilidade no processo de atendimento 55. O'Dwyer G, Konder MT, Reciputti LP, Macedo C, Lopes MGM. O processo de implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência no Brasil: estratégias de ação e dimensões estruturais. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00043716., e os segundos oferecem condições para a sustentação da vida 66. Magalhães ALP, Lanzoni GMM, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017; 22:e45621.,77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67.,88. Moraes EL, Neves FF, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experiências e expectativas de enfermeiros no cuidado ao doador de órgãos e à sua família. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(Esp 2):129-35..
O cuidado médico pré- 55. O'Dwyer G, Konder MT, Reciputti LP, Macedo C, Lopes MGM. O processo de implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência no Brasil: estratégias de ação e dimensões estruturais. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00043716. e per-hospitalar 66. Magalhães ALP, Lanzoni GMM, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017; 22:e45621.,77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67. tem postergado a possibilidade da morte para o hospital 77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67., incluindo a morte encefálica, cujas causas mais frequentes são o traumatismo cranioencefálico e o acidente vascular encefálico 99. Magalhães JV, Veras KN, Mendes CMM. Avaliação do conhecimento de médicos intensivistas de Teresina sobre morte encefálica. Rev Bioét 2016; 24:156-64.. Todavia essas condições graves permitem a preservação da vida de outras pessoas por meio da doação de órgãos 1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55..
Assume-se cuidado médico como um modo de reconstruir a atenção integral à saúde dos indivíduos, com base nos problemas e tensões identificados na prática profissional. Para tanto, sua compreensão deve estar relacionada ao encontro alteritário de quem cuida e de quem é cuidado, resultante das experiências de ambos 1111. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Abrasco; 2011..
Na literatura internacional, estudos sobre o cuidado médico ao paciente em suspeita de morte encefálica focam no envolvimento da família neste processo, sobretudo durante a realização do protocolo de morte encefálica 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607.,1313. Tawil I, Brown LH, Comfort D, Crandall CS, West SD, Rollstin AD, et al. Family presence during brain death evaluation: a randomized controlled trial. Crit Care Med 2014; 42:934-42.; nos desafios enfrentados pelos médicos durante a abordagem sobre a doação de órgãos 1414. Escudero D, Otero J. Intensive care medicine and organ donation: exploring the last frontiers? Med Intensiva 2015; 39:373-81.,1515. Birtan D, Arslantas MK, Dincer PC, Altun GT, Bilgili B, Ucar FB, et al. Effect of interviews done by intensive care physicians on organ donation. Transplant Proc 2017; 49:396-8.; e nas próprias dificuldades destes profissionais referentes ao conceito de morte encefálica 1616. Johnson LS. The case for reasonable accommodation of conscientious objections to declarations of brain death. J Bioeth Inq 2016; 13:105-15.,1717. Camut S, Baumann A, Dubois V, Ducrocq X, Audibert G. Non-therapeutic intensive care for organ donation: a healthcare professionals' opinion survey. Nurs Ethics 2016; 23:191-202..
No Brasil, de forma distinta, os estudos privilegiam, especialmente, a perspectiva do enfermeiro 66. Magalhães ALP, Lanzoni GMM, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017; 22:e45621.,88. Moraes EL, Neves FF, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experiências e expectativas de enfermeiros no cuidado ao doador de órgãos e à sua família. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(Esp 2):129-35.,1818. Cisne MSV, Netto JM, Santos TC, Brito MC, Soares JSA, Goyanna NT. Percepção de acadêmicos de enfermagem e medicina sobre fragilidades na atenção ao potencial doador de órgãos. Rev Enferm Atenção Saúde 2016; 5:64-73., fatores relacionados à não-doação 1919. Barreto BS, Santana RJB, Nogueira EC, Fernandez BO, Brito FPG. Fatores relacionados a não doação de órgãos de potenciais doadores no Estado de Sergipe, Brasil. Rev Bras Pesqui Saúde 2016; 18:40-8., a legislação sobre a doação de órgãos 2020. Maynard LOD. Os conflitos do consentimento acerca da doação de órgãos post mortem no Brasil. Rev Direito Sanit 2016; 16:122-44. e diretrizes para avaliação e validação do potencial doador 1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55.. Poucas pesquisas contemplam as complexidades do processo de diagnóstico de morte encefálica na perspectiva do médico 99. Magalhães JV, Veras KN, Mendes CMM. Avaliação do conhecimento de médicos intensivistas de Teresina sobre morte encefálica. Rev Bioét 2016; 24:156-64.,2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58..
Assim, o presente trabalho objetiva compreender como os profissionais médicos do maior pronto-atendimento de uma metrópole brasileira - referência na América Latina - orientam o cuidado aos pacientes graves com suspeita de morte encefálica.
Metodologia
Esta pesquisa parte de uma abordagem antropológica hermenêutica 2222. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 1989., na qual se enfatiza o significado que os grupos sociais atribuem a determinados fenômenos, com base em um processo de significação imbricado junto às perspectivas individual e coletiva 2323. Corin E, Uchôa E, Bibeau G, Koumare B. Articulation et variations des systèmes de signes, de sens et d'actions. Psychopathol Afr 1992; 24:183-204..
No âmbito da Saúde Coletiva, essa orientação ancorada ao método etnográfico, contribui na compreensão do processo saúde/doença, dos valores e das atitudes de profissionais e pacientes em diferentes contextos de cuidado 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016..
Área e população de estudo
Este trabalho compõe um estudo etnográfico maior iniciado em 2012, realizado por uma antropóloga no contexto de um dos maiores serviços públicos de pronto-atendimento ao politrauma e a queimados da América Latina, situado no hipercentro de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, estado brasileiro que tem a maior malha viária do país e grande prevalência de acidentes de trânsito (Diário de Campo, 2013).
A exemplo de outros hospitais de urgência, no território de observação pesquisado utilizam-se protocolos específicos no cuidado 2525. American College of Surgeons. ATLS - Advanced Trauma Life Support: student course manual. 9th Ed. Chicago: American College of Surgeons; 2012.: (i) Escala de Coma de Glasgow: permite aferir e avaliar o nível de consciência, o que define a maior ou a menor gravidade e risco de morte; (ii) Protocolo de Manchester: estabelece critérios de gravidade que orientam o tempo de espera para o atendimento conforme o risco à vida; e (iii) Suporte Avançado de Vida no Trauma (SAVT): busca identificar as lesões graves e instituir medidas terapêuticas e emergenciais que restabeleçam a vida.
Quando as medidas mostram-se ineficazes, a morte do paciente traumatizado obedece a três picos de tempo 2525. American College of Surgeons. ATLS - Advanced Trauma Life Support: student course manual. 9th Ed. Chicago: American College of Surgeons; 2012.: (i) Morte imediata: ocorre dentro de segundos a minutos após a injúria, devido à gravidade das lesões; (ii) Morte prematura: acontece dentro de minutos até várias horas após a injúria e representa a janela de oportunidade durante a qual a equipe médica pode ter impacto positivo na morbimortalidade; e (iii) Morte tardia: sobrevém entre vários dias a semanas após a injúria inicial. O cuidado dispensado aos pacientes durante cada uma das fases anteriores tem impacto sobre o prognóstico a longo prazo.
Assim, na cadeia de serviços que tangenciam esse perfil de cuidado, há uma variável importante denominada “hora de ouro”, referente ao tempo entre o transporte do local do incidente até o atendimento definitivo, fundamental no prognóstico, na recuperação e no restabelecimento da vida 2525. American College of Surgeons. ATLS - Advanced Trauma Life Support: student course manual. 9th Ed. Chicago: American College of Surgeons; 2012.. Outro dispositivo utilizado - presente no referido campo de estudo - é o heliponto, reservado ao transporte aéreo de pacientes com risco iminente de morte 2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42..
A instituição tem 440 leitos, sendo 130 de cuidados intensivos. Todo hospital com mais de 80 leitos conta com uma Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante, responsável por organizar e viabilizar o diagnóstico de morte encefálica; identificar possíveis doadores de órgãos e tecidos; oferecer suporte aos familiares destes pacientes; e articular-se com a Central de Transplante estadual 2727. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.752, de 23 de setembro de 2005. Determina a constituição de Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos. Diário Oficial da União 2005; 24 set.. No presente caso, a captação e distribuição dos órgãos compete ao MG Transplantes, cuja sede está localizada no interior do próprio hospital.
Com cerca de 600 médicos, a população de estudo foi constituída por 43 médicos plantonistas - 25 homens e 18 mulheres, entre 28 e 69 anos - que atuam em setores específicos para pacientes graves com risco de morte 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016..
Coleta e análise dos dados
A coleta dos dados foi realizada ao longo de nove meses de observação participante e entrevistas guiadas por roteiro semiestruturado. A seleção aconteceu pelo método “bola de neve” 2828. Patton MQ. Qualitative research and evaluation methods. London: Sage Publications; 2002., sendo a amostra final regulada pelo critério de saturação 2929. Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saúde Pública 2011; 27:389-94..
A análise dos dados foi orientada pela corrente metodológica dos “signos, significados e ações” 2323. Corin E, Uchôa E, Bibeau G, Koumare B. Articulation et variations des systèmes de signes, de sens et d'actions. Psychopathol Afr 1992; 24:183-204., que parte do horizonte pragmático dos indivíduos a fim de identificar e compreender as lógicas conceituais agregadas a suas ações, bem como os distintos fatores que as influenciam.
Para assegurar o anonimato, os entrevistados foram identificados, respectivamente, pela ordem da entrevista, especialidade médica, sexo (F para feminino, M para masculino) e idade.
Aspectos éticos
Este estudo está em acordo com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Aprovado pelos comitês de ética da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE: 03751612.0.0000.5149) e da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (SIPRO: 29128/2012-7).
Resultados e discussão
No trabalho de campo, verificou-se que o hospital pesquisado, de modo pioneiro no Brasil, tem dois leitos destinados à realização do protocolo para a confirmação ou não da morte cerebral e à definição da viabilidade de pacientes doadores de órgãos. Contudo, ao longo da etnografia foi possível compreender que tais funções, legitimadas e delegadas ao médico, extrapolam objetivos meramente técnicos e burocráticos.
Entre a constatação e a comunicação da morte emergem percepções ambivalentes dos profissionais que afetam direta e indiretamente a atuação médica, como será mostrado no item O Processo de Cuidado no Serviço de “Apoio à Vida”, desdobrado conforme suas competências - apresentadas na forma de subcategorias.
O processo de cuidado no Serviço de “Apoio à Vida”
Na maioria dos hospitais, o diagnóstico, a confirmação da morte encefálica e a identificação de potenciais doadores ocorre no CTI 88. Moraes EL, Neves FF, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experiências e expectativas de enfermeiros no cuidado ao doador de órgãos e à sua família. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(Esp 2):129-35.,1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55.. Assim, a existência desse espaço peculiar gerou inquietações. À etnografia, ficou claro que, para além da atuação médica relativa ao momento da morte, suas funções adentram uma complexidade de elementos e relações imbricadas que não são passíveis de delimitações estanques nem foram apreendidas de forma temporal linear 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016..
Nestes excertos, o próprio nome - Serviço de Apoio à Vida (SAV) - em tese, contrasta com um de seus propósitos: diagnosticar a morte encefálica:
“No SAV o doente já chega aqui mais para morto do que para vivo. Ele não está aqui para tratar, para ver se vai melhorar, ele vem para confirmar se está morto ou não” (E24, Cardiologia, M, 63 anos).
“É o doente sem nenhuma perspectiva, com uma lesão neurológica irreversível que vai morrer de qualquer jeito. Aí a gente faz os testes para ver se ele pode ser um doador de órgãos, antes que todos os órgãos morram (...). Cérebro morto é igual à morte; o coração ainda bate, mas daí a pouco ele vai parar de bater” (E25, Clínica Médica, F, 56 anos).
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) define a morte encefálica como a completa e irreversível interrupção das funções cerebrais que impossibilita a manutenção da vida sem o auxílio de meios artificiais 3030. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União 2017; 15 dez.. Dois médicos explicam as funções do SAV:
“Documentar a morte encefálica e manter o paciente em condições adequadas do ponto de vista clínico e circulatório. Porque se for diagnosticada a morte encefálica e a família estiver de acordo ele é um doador de órgãos” (E24, Cardiologia, M, 63 anos).
“Definido [a doação], a gente liga para o MG Transplantes, que tem uma equipe mais capacitada com psicólogo e tudo, e eles que abordam essa parte de transplante” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
O processo de cuidado no SAV responde ao cumprimento rigoroso de suas funções basilares exercidas e validadas pelo profissional de medicina: a garantia do cuidado intensivo ao paciente para estabelecer se é um potencial doador 66. Magalhães ALP, Lanzoni GMM, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017; 22:e45621.; a realização do protocolo de constatação da morte encefálica 1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55.,3131. Rodrigues SLL, Ferraz Neto JBE, Sardinha LAC, Araújo S, Zambelli HJL, Boin IFSF, et al. Perfil de doadores efetivos do serviço de procura de órgãos e tecidos. Rev Bras Ter Intensiva 2014; 26:21-7.; e a comunicação do fato à família do paciente 77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67.,3232. Stelet BP, Castiel LD, Moraes DR. Anomalisa e o ensino da comunicação clínica na prática médica. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00154016., como apresentado nas três subcategorias a seguir.
A garantia do cuidado intensivo ao paciente/potencial doador
Um dos idealizadores da criação do SAV testemunha:
“Se nós só estivéssemos preocupados com a morte encefálica e não cuidarmos adequadamente desse paciente, na hora que der o diagnóstico não dá para você aproveitar nenhum órgão (...). É preciso ter uma unidade adequada para isso (...). O paciente, a partir do momento que perde o controle neurológico por morte encefálica, perde o controle de tudo: temperatura, circulação, respiração, e você tem que dar isso a ele de uma forma muito adequada (...). Os profissionais de outros setores não têm formação para fazer isso (...), ou seja, é uma adequação dos recursos às necessidades dos pacientes” (E24, Cardiologia, M, 63 anos).
Este clínico explica o dilema em outros serviços diante da necessidade de utilização de um leito de CTI para um paciente clinicamente não recuperável:
“Em outros hospitais é mais complicado (...). Estatisticamente, fora daqui eles conseguem um número pequeno [de doadores], porque é difícil ter um leito disponível para um doente desse e viabilizar isso sem um conhecimento técnico específico. Na maioria das vezes, o paciente acaba falecendo nas observações, nas salas de emergência, porque muitas vezes eles não deixam de ocupar esse leito de CTI, para um paciente, digamos potencialmente recuperável, para mandar um com suspeita de morte encefálica” (E27, Clínica Médica, M, 34 anos).
Assim, por cuidado intensivo no SAV, entende-se manter o paciente/potencial doador em condições hemodinâmicas favoráveis à doação de órgãos e tecidos após constatada a morte encefálica 1515. Birtan D, Arslantas MK, Dincer PC, Altun GT, Bilgili B, Ucar FB, et al. Effect of interviews done by intensive care physicians on organ donation. Transplant Proc 2017; 49:396-8.,1818. Cisne MSV, Netto JM, Santos TC, Brito MC, Soares JSA, Goyanna NT. Percepção de acadêmicos de enfermagem e medicina sobre fragilidades na atenção ao potencial doador de órgãos. Rev Enferm Atenção Saúde 2016; 5:64-73.. Tal cuidado demanda aparatos humanos e técnicos, e o monitoramento constante e controlado de vários parâmetros vitais e sistemas fisiológicos 1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55.,3131. Rodrigues SLL, Ferraz Neto JBE, Sardinha LAC, Araújo S, Zambelli HJL, Boin IFSF, et al. Perfil de doadores efetivos do serviço de procura de órgãos e tecidos. Rev Bras Ter Intensiva 2014; 26:21-7., elemento crucial para possibilitar a doação de órgãos:
“Porque é um paciente sem prognóstico que muitas vezes é um doador e é uma pessoa que pode dar uma qualidade de vida para 6, 5 pessoas (...). Imagina uma pessoa que não enxerga voltar a enxergar com uma doação? Então o doente que está em morte encefálica, ele merece um cuidado especial, porque (...) só uma pessoa que recebe um órgão consegue descrever o que é” (E18, Neurocirurgio M, 34 anos).
Nesse cuidado, são realizadas avaliações clínicas e laboratoriais para verificar e validar as condições do potencial doador, de modo a garantir qualidade e segurança para o processo de doação a partir da identificação de fatos e indícios de contraindicações, inclusive a presença de doenças infecciosas 66. Magalhães ALP, Lanzoni GMM, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017; 22:e45621.,1515. Birtan D, Arslantas MK, Dincer PC, Altun GT, Bilgili B, Ucar FB, et al. Effect of interviews done by intensive care physicians on organ donation. Transplant Proc 2017; 49:396-8.,1818. Cisne MSV, Netto JM, Santos TC, Brito MC, Soares JSA, Goyanna NT. Percepção de acadêmicos de enfermagem e medicina sobre fragilidades na atenção ao potencial doador de órgãos. Rev Enferm Atenção Saúde 2016; 5:64-73..
Simultaneamente à garantia do melhor cuidado para esse doador, realiza-se o protocolo para a confirmação de uma possível morte encefálica.
O processo de confirmação da morte encefálica: o velório no leito
De acordo com a Resolução nº 2.173/2017 do CFM 3030. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União 2017; 15 dez., para a constatação da morte encefálica são necessárias obrigatoriamente três condições clínicas simultâneas: coma não perceptivo, ausência de reflexos do tronco cerebral e apneia persistente (retirada do ventilador mecânico para a verificação da capacidade de respiração espontânea).
Uma vez suspeitada, aplica-se o Protocolo de Morte Encefálica, composto por testes clínicos realizados repetidamente em intervalos predeterminados, que servem para confirmar que o cérebro do potencial doador já não responde mais a estímulos 3030. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União 2017; 15 dez.. Esse processo tem duração variável, como explica este profissional:
“Demora muito ou pouco. Para o paciente fazer os testes, depende de algumas condições: temperatura boa, (...) íons bons, condições hemodinâmicas e ventilatórias adequadas. Porque no teste tira o paciente do ventilador [mecânico] e deixa 10 minutos, para ver se ele respira. Então tem as condições mínimas. (...) Há pacientes que chegam pela manhã e à noite já estão com o diagnóstico definido de morte encefálica e há pacientes que ficam até 5 dias” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
Talvez por isso, no período de realização do protocolo, pôde-se presenciar alguns familiares indagando ao médico: “E aí? Ele está bem hoje, doutor?”, “Ontem ela estava meio caidinha, hoje ela está melhor?” (Diário de Campo, 2013). Dois profissionais explicam:
“Não podemos dizer que ele já ‘morreu’, temos que dizer sobre o óbito quando ele for decretado cientificamente, mesmo sabendo da sua quase certeza” (E24, Cardiologia, M, 63 anos).
“Às vezes é um luto prolongado que começa aqui com o paciente ‘quase-morto, ainda vivo’, que a família sabe que vai morrer e fica sofrendo porque a gente não consegue fechar o protocolo. É um velório com o paciente ainda vivo, pois liberamos a família para ficar junto do enfermo” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
A presença do familiar pode ajudar na sua compreensão do processo de morte encefálica 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607.,1313. Tawil I, Brown LH, Comfort D, Crandall CS, West SD, Rollstin AD, et al. Family presence during brain death evaluation: a randomized controlled trial. Crit Care Med 2014; 42:934-42.. Porém, apesar de a morte cerebral ser ratificada somente após o cumprimento estrito do protocolo, ao longo deste percurso já se observa um processo de luto e negação dos familiares. Pesquisas internacionais 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607.,1313. Tawil I, Brown LH, Comfort D, Crandall CS, West SD, Rollstin AD, et al. Family presence during brain death evaluation: a randomized controlled trial. Crit Care Med 2014; 42:934-42. consideram que as famílias devem ter a opção de estar presente nesse momento, porém, poucas unidades oferecem tal alternativa 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607.. Isso requer o desenvolvimento de diretrizes que envolvam os profissionais, a fim de proporcionar excelência em cuidados no fim da vida.
Esse paciente híbrido - “vivo e morto ao mesmo tempo” - encontra-se em um estado de fronteira: um corpo morto inserido num corpo vivo, que não possui - ou possui pouco - os atributos do passado ou do futuro 3333. Le Breton D. A síndrome de Frankenstein. In: Santana DB, organizador. Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade; 1995. p. 49-67.. Nessa perspectiva, Le Breton 3333. Le Breton D. A síndrome de Frankenstein. In: Santana DB, organizador. Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade; 1995. p. 49-67. reconhece que com o cérebro inerte o homem se desvanece, mas a morte latente não consegue alterar sua face ou seu corpo. Ninguém saberia dizer onde ele está, se em vida ou em morte, se presente ou ausente, e mesmo os parentes desconhecem se devem continuar a ter esperanças ou se já devem chorar.
Essa ambiguidade refere-se, necessariamente, à condição de não pertencimento à rede de classificações convencionais que definem a localização de estados e posições num espaço cultural 33, e contribui para a dificuldade dos profissionais diante desses pacientes, principalmente quando apresentam o reflexo de Lázaro. Dois médicos reconhecem:
“A enfermagem assusta muito, acha que o paciente está vivo e tenta ligar os aparelhos, daí a gente tem que explicar que são apenas reflexos, que o paciente já está morto” (E28, Terapia Intensiva, F, 49 anos).
“É um reflexo medular, aquele mesmo da Bíblia. (...) Você está no horário de visitas, o familiar diz: ‘ah, ele está quentinho’, aí a pessoa põe a mão nele e o pé levanta. Mas ele não está vivo, está em morte encefálica. Para a doação essa questão é muito mais difícil, porque para o familiar, se o doente for doador, fica parecendo que a gente está matando o paciente, porque as pessoas pensam que ele não está morto” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
Cabe ao médico balizar elementos que se tencionam ao longo do cuidado ao paciente em suspeita de morte encefálica. Comumente, durante o teste de apneia, o paciente subitamente levanta ambos os braços e os coloca sobre o tórax. Em outros casos, pode ocorrer a flexão total do tronco e o paciente sentar-se na cama, resultando na contração de toda a musculatura (Diário de Campo, 2013). Embora dramático para quem observa e catalisador para a não aceitação do óbito quando ele ocorre, tais reflexos não inviabilizam o diagnóstico final da morte encefálica, sendo necessário desmitificá-los para evitar atrasos no protocolo e falsas interpretações 1010. Westphal GA. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva 2016; 28:220-55.,3434. Morato EG, Resende MT, Trivelato FP, Pimenta NG, Maluf FB, Leão ADG, et al. "Sinal de Lázaro": reflexo medular complexo na morte encefálica - relato de dois casos. Rev Méd Minas Gerais 2009; 19:253-7..
Confirmada a morte cerebral, a terceira função do SAV é comunicá-la aos familiares e abordar a possibilidade de doação de órgãos.
A comunicação da morte encefálica e a abordagem da família para a doação de órgãos
Toda comunicação inclui a mensagem, o contexto e os interlocutores envolvidos.
Este profissional expõe suas dificuldades no processo de comunicação da morte encefálica:
“A relação com os familiares às vezes é difícil, pois eles tendem a negar: racionalizam e negam ao mesmo tempo. Na hora da visita no SAV, você explica que o paciente não vai andar, não vai conversar, que só por um milagre ele vai se recuperar. Você fica uns 20 minutos falando da gravidade. Eu só não tiro a esperança. Tem gente que fala ‘olha, meus sentimentos, ele está morto, nós só estamos aguardando para definir com os exames’. Eu não, eu gosto de conversar, aí no final da conversa depois de explicar mil coisas, a pessoa pergunta: ‘Mas e aí, doutor? Daqui a uns dias ele vai embora para casa?’. Parece que o parente não ouviu nada do que você falou, ele nega totalmente” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
Comunicar o óbito é a parte fundamental da assistência dada ao paciente e a seus familiares 99. Magalhães JV, Veras KN, Mendes CMM. Avaliação do conhecimento de médicos intensivistas de Teresina sobre morte encefálica. Rev Bioét 2016; 24:156-64., porém, revela-se uma tarefa complexa para a qual o médico não se vê preparado 77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67.,3232. Stelet BP, Castiel LD, Moraes DR. Anomalisa e o ensino da comunicação clínica na prática médica. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00154016.. Nesse caso, a dificuldade na comunicação ainda é potencializada por diferentes signos agrupados em seus respectivos significados: as controvérsias na definição da morte encefálica, o contexto sociocultural e o contexto do pronto-atendimento (Quadro 1).
Quanto às controvérsias na definição da morte encefálica (Quadro 1), os entrevistados discorrem sobre as dificuldades que envolvem “uma função vital artificial” e levam à negação e incompreensão por profissionais e familiares. Embora a morte do cérebro seja clínica e legalmente reconhecida, há um desacordo do seu significado entre médicos, filósofos e outros atores diretamente envolvidos 1616. Johnson LS. The case for reasonable accommodation of conscientious objections to declarations of brain death. J Bioeth Inq 2016; 13:105-15.. Estudos 1616. Johnson LS. The case for reasonable accommodation of conscientious objections to declarations of brain death. J Bioeth Inq 2016; 13:105-15.,3535. Rodrigues CFA, Stychnicki AS, Boccalon B, Cezar GS. Morte encefálica, uma certeza? O conceito de "morte cerebral" como critério de morte. Bioethikos 2013; 7:271-81.,3636. Rodrigues Filho EM, Junges JR. Morte encefálica: uma discussão encerrada? Rev Bioét 2015; 23:485-94. consideram que, desde a sua criação, esse conceito expõe controvérsias acerca da sua validade e coerência, sobretudo sua equivalência à definição de morte tradicionalmente aceita, vinculada à parada cardiorrespiratória.
Na sociedade ocidental, o conceito de morte biológica passou por várias definições. Até a Renascença pensava-se que o controle do corpo era realizado pelo coração 3636. Rodrigues Filho EM, Junges JR. Morte encefálica: uma discussão encerrada? Rev Bioét 2015; 23:485-94.. A partir do século XIX, foram identificados três órgãos responsáveis pela manutenção da vida: o coração, os pulmões e o cérebro, os quais estariam de tal modo interligados que a morte ou falência de um implicaria a dos demais 99. Magalhães JV, Veras KN, Mendes CMM. Avaliação do conhecimento de médicos intensivistas de Teresina sobre morte encefálica. Rev Bioét 2016; 24:156-64.,2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58.. E, embora o termo morte encefálica tenha surgido em 1959 na França, até a década de 1960, o único critério médico para a constatação da morte era a parada cardiorrespiratória. Apenas em 1967, com a realização do primeiro transplante de coração humano, retomaram-se as discussões sobre o conceito de morte clínica 2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58.,3636. Rodrigues Filho EM, Junges JR. Morte encefálica: uma discussão encerrada? Rev Bioét 2015; 23:485-94..
Essa “nova morte”, como definida por Macedo 2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58., somente foi viabilizada porque existe um contexto social singular que contempla ciência, tecnologia, medicina e modernidade. Todavia, cria-se uma linha tênue entre corpo e máquina, natureza e cultura, vida e morte, alicerçada, sobretudo, pelo advento de novas tecnologias biomédicas 2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58.. Tais avanços reforçam a noção do corpo humano compreendido como máquina e submetido à lógica do saber biomédico, restrito a um grupo de especialistas e protegido pela racionalidade de seus discursos 3333. Le Breton D. A síndrome de Frankenstein. In: Santana DB, organizador. Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade; 1995. p. 49-67..
Por sua vez, o contexto sociocultural (Quadro 1) é atravessado por aspectos religiosos e de configurações específicas a cada cultura 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42., que revelam uma diversidade de comportamentos e compreensões acerca da morte. Na sociedade brasileira, caracterizada por uma pluralidade de crenças e sob forte influência cristã, o apelo religioso está vinculado à esperança da reversão do quadro mediada por um milagre divino que faça o paciente voltar a viver 3737. Xavier MS, Miziara CSMG, Miziara ID. Terminalidade da vida: questões éticas e religiosas sobre a ortotanásia. Saúde, Ética & Justiça 2014; 19:26-34.. Assim, o médico não consegue demover os familiares da vontade de lutar pela vida de seus entes 2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42..
Outrossim, é importante demarcar que a morte encefálica sobrevém no contexto do pronto- atendimento (Quadro 1), cujas características de cuidado representam fatores limitantes para a atuação médica e a comunicação com a família. Dentre eles, ressaltam-se o fato de se tratar de uma morte inesperada e abrupta para a qual ninguém está preparado. Nesse contexto de atuação, inexiste um relacionamento prévio do médico com o paciente e sua família, e falta-lhe tempo para dedicar-se exclusivamente a cada um, devido às múltiplas e urgentes demandas dos demais 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016.,3838. Lamba S, Nagurka R, Offin M, Scott SR. Structured communication: teaching delivery of difficult news with simulated resuscitations in an Emergency Medicine Clerkship. West J Emerg Med 2015; 16:344-52.,3939. Reyniers T, Houttekier D, Cohen J, Pasman HR, Deliens L. The acute hospital setting as a place of death and final care: a qualitative study on perspectives of family physicians, nurses and family carers. Health Place 2014; 27:77-83..
A comunicação da morte encefálica antevê dois desfechos: o primeiro, o paciente/potencial doador nesta condição morrerá; o segundo, por meio da sua morte e doação de órgãos ele pode favorecer e prolongar a vida de outras pessoas 1414. Escudero D, Otero J. Intensive care medicine and organ donation: exploring the last frontiers? Med Intensiva 2015; 39:373-81.,1717. Camut S, Baumann A, Dubois V, Ducrocq X, Audibert G. Non-therapeutic intensive care for organ donation: a healthcare professionals' opinion survey. Nurs Ethics 2016; 23:191-202.. Nesse sentido, a compreensão do que seja a morte e a vida pode variar, a depender do desejo do familiar de que o paciente/potencial doador sobreviva e, portanto, a doação não se cumpra; ou o contrário, de que ele sobreviva por meio da doação de órgãos para outras pessoas, como traduz este relato:
“Na época que nós criamos esses leitos para o protocolo da morte encefálica, tinha acontecido uma situação em São Paulo em que eles pegaram um doador e o pai chegou na televisão e falou: ‘infelizmente eles cuidaram do meu filho melhor na morte do que quando ele estava vivo ainda’. Um dia eu recebi várias mensagens de um suposto paciente que falava assim: ‘Estou aqui no CTI [da instituição] em morte encefálica. Eu já morri e quero doar os meus órgãos (...)’. Daí eu liguei para cá e perguntei o que estava acontecendo. Eles disseram que o cara estava completamente em sepse, sem a menor condição de doar e uma pessoa que teve um relacionamento com ele (...) quer porque quer que ele doe órgãos, porque seria uma forma dele sobreviver. Aí eu vi como o transplante pode ser interpretado de uma forma louca. (...) A vida continua de alguma forma, a linha da vida continua, mas a pessoa não continua. Então, é muito difícil” (E1, Cirurgia Cardiovascular, M, 53 anos).
Quando o médico valida o paciente como potencial doador, ainda assim a doação pode não ocorrer caso o paciente, embora preencha os critérios, tenha optado em vida pela não-doação ou a família recuse a doação 1515. Birtan D, Arslantas MK, Dincer PC, Altun GT, Bilgili B, Ucar FB, et al. Effect of interviews done by intensive care physicians on organ donation. Transplant Proc 2017; 49:396-8.,1919. Barreto BS, Santana RJB, Nogueira EC, Fernandez BO, Brito FPG. Fatores relacionados a não doação de órgãos de potenciais doadores no Estado de Sergipe, Brasil. Rev Bras Pesqui Saúde 2016; 18:40-8.,2020. Maynard LOD. Os conflitos do consentimento acerca da doação de órgãos post mortem no Brasil. Rev Direito Sanit 2016; 16:122-44.. Nesse último caso, os principais motivos envolvem: receio de mutilação e desejo da manutenção do corpo íntegro, por considerá-lo sagrado e intocável; desconfiança sobre a licitude do processo de doação; convicção religiosa; demora na liberação do corpo (realização do protocolo); desconhecimento do desejo do doador; insatisfação com a abordagem realizada pela equipe 1515. Birtan D, Arslantas MK, Dincer PC, Altun GT, Bilgili B, Ucar FB, et al. Effect of interviews done by intensive care physicians on organ donation. Transplant Proc 2017; 49:396-8.,1919. Barreto BS, Santana RJB, Nogueira EC, Fernandez BO, Brito FPG. Fatores relacionados a não doação de órgãos de potenciais doadores no Estado de Sergipe, Brasil. Rev Bras Pesqui Saúde 2016; 18:40-8.,2020. Maynard LOD. Os conflitos do consentimento acerca da doação de órgãos post mortem no Brasil. Rev Direito Sanit 2016; 16:122-44..
Embora o diagnóstico de morte encefálica deva ser realizado somente por médicos especializados - intensivista, neurologista ou neurocirurgião - e experientes, isto é insuficiente para garantir a análise abrangente da situação do indivíduo e a abordagem adequada dos familiares 88. Moraes EL, Neves FF, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Experiências e expectativas de enfermeiros no cuidado ao doador de órgãos e à sua família. Rev Esc Enferm USP 2015; 49(Esp 2):129-35.,3535. Rodrigues CFA, Stychnicki AS, Boccalon B, Cezar GS. Morte encefálica, uma certeza? O conceito de "morte cerebral" como critério de morte. Bioethikos 2013; 7:271-81.. Faz-se necessário aliar as diretrizes técnicas do conceito de morte encefálica e as variações socioculturais dos atores envolvidos no processo 1212. Doran M, Black P. Seeing for themselves - healthcare professionals' views about the presence of family members during brainstem death testing. J Clin Nurs 2017; 26:1597-607..
Nota-se uma dubiedade de sentidos acerca do conceito de morte encefálica, a depender do ator envolvido no processo:
“A morte no SAV para o médico é sempre mais tranquila, porque o paciente já chega aqui sem prognóstico. Nada que eu fizer vai mudar o desfecho final que é a morte. Já para a família é sempre pior, pois geralmente são pacientes que saíram de manhã para trabalhar e de repente está morto” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
Quando o paciente em morte encefálica não pode ser doador, seja por razões técnicas, pessoais ou familiares, o médico está amparado por respaldos legal e ético a desligar os aparelhos 4040. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.826/2007, de 24 de outubro de 2007. Dispõe sobre a legalidade e o caráter ético da suspensão dos procedimentos de suportes terapêuticos quando da determinação de morte encefálica de indivíduo não-doador. Diário Oficial da União 2007; 6 dez.. Esta profissional pontua:
“Esse momento é muito difícil, porque às vezes demora muito entre você desligar o respirador e o coração parar de bater. Já aconteceu comigo de demorar 27 minutos. Eu desligo e sento do lado e fico lá, olhando para o monitor, com a mão no pulso do paciente. Parece que é o instinto vital do paciente insistindo para que ele não morra. (...) Há profissionais que desligam todos os aparelhos de uma vez. Eu não. Enquanto há sinais vitais consideráveis, eu vou diminuindo aos poucos, isso me ameniza. Fica uma morte mais suave, e não abruptamente concretizada” (E28, Terapia Intensiva, F, 49 anos).
Embora, do ponto de vista técnico, para os médicos a morte encefálica seja a “mais tranquila” de lidar, a entrevistada revela sua angústia diante da espera pela consumação de um óbito que ela sabia certo e evidencia as dificuldades do saber biomédico em lidar com a morte e o morrer 4.
Caso seja doador, depois de concluído o protocolo a família é comunicada e, concordando, a doação de órgãos é cumprida. O paciente/potencial doador é encaminhado ao bloco cirúrgico com o coração ainda batendo para a retirada dos órgãos. Um médico esclarece:
“O momento da morte é quando finaliza o protocolo. Definimos o horário após cumprir todos os exames prescritos ainda aqui no SAV. Tem outra questão: como poderíamos definir a morte de um corpo sem todos os seus órgãos, com seus órgãos incompletos?!” (E26, Clínica Médica, M, 32 anos).
Segundo o profissional, caso o horário da morte fosse atestado após a retirada dos órgãos não se caracterizaria e atestaria a morte de um corpo. Os entrevistados não demonstraram dificuldades ou dúvidas em determinar o horário legal do óbito, o que contrasta com outro estudo no qual a maioria dos participantes considerou como horário do óbito o momento de abertura do protocolo de morte encefálica ou da retirada de órgãos 99. Magalhães JV, Veras KN, Mendes CMM. Avaliação do conhecimento de médicos intensivistas de Teresina sobre morte encefálica. Rev Bioét 2016; 24:156-64..
Assim, embora a morte seja um evento recorrente no cotidiano profissional, ela assume nuances e contornos distintos, a depender de suas circunstâncias e dos conceitos de vida e de morte 44. Aredes JS, Modesto AL. "Entre vidas e mortes, entre máscaras e fugas": um estudo sobre a prática médica hospitalar. Physis (Rio J.) 2016; 26:435-53.,77. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol 2015; 15:547-67.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42.. Como todo fenômeno social de caráter totalizante 44. Aredes JS, Modesto AL. "Entre vidas e mortes, entre máscaras e fugas": um estudo sobre a prática médica hospitalar. Physis (Rio J.) 2016; 26:435-53., essas definições extrapolam a dimensão biológica e envolvem dinâmicas socioculturais específicas, o que reverbera na experiência vivida pelo indivíduo 2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42.. O cuidado médico é atravessado por questões culturais que permeiam a compreensão do processo de saúde/adoecimento entre profissionais e usuários. Nesse movimento, são identificadas interações fora e entre os indivíduos, e o que se manifesta é a vida cotidiana em ato 1111. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Abrasco; 2011.,2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42..
Na perspectiva de uma síntese, propõe-se um diagrama esquemático (Figura 1) que visa a integrar os diferentes elementos que orientam o processo de cuidado médico ao paciente grave com suspeita de morte encefálica em um serviço de pronto-atendimento, para além do cuidado intensivo, da realização do protocolo e da comunicação com a família.
Elementos que orientam o processo de cuidado médico ao paciente com suspeita de morte encefálica e potencial doador.
Sem pretender esgotar toda a complexidade dos fenômenos estudados, diferentemente dos outros cenários de atuação médica identificados e investigados na etnografia 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42., a morte encefálica provoca reações distintas, a depender do desfecho final do cuidado. O dilema doação/não-doação num contexto sociocultural e de um pronto-atendimento encobre as dificuldades do médico em lidar com a morte encefálica e em comunicá-la, dadas as controvérsias desse conceito. Somam-se a isso os conflitos teóricos entre o prognóstico (o paciente está morrendo) e o diagnóstico (o paciente está morto) nesse tipo de morte 3535. Rodrigues CFA, Stychnicki AS, Boccalon B, Cezar GS. Morte encefálica, uma certeza? O conceito de "morte cerebral" como critério de morte. Bioethikos 2013; 7:271-81..
Para Macedo 2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58., conflitos éticos que englobam questões acerca de certo “caráter utilitário” da morte encefálica também atravessam esse conceito. É como se o processo de confirmação desse tipo de morte pudesse ser comparado a um jogo com regras e fases específicas, no qual o desfecho de cada uma definirá a seguinte, considerando-se vitorioso quando culminar na doação de órgãos.
No universo pesquisado, ao final desse processo, foi possível observar a frustração do profissional quando a família não permite a doação de órgãos e o óbito ocorre sem que haja o restabelecimento de vidas. Porém, quando há a concordância da família, percebe-se uma sensação de êxito da atuação médica, pois a morte daquela pessoa de algum modo foi suplantada na vida que seus órgãos carreiam e continuam em outras histórias de vida. Como bem colocado por Macedo 2121. Macedo JL. As regras do jogo da morte encefálica. Rev Antropol (São Paulo) 2016; 59:32-58., a morte encefálica seria uma forma de “matar a morte” no campo médico.
Por outro lado, como já confirmado em outros estudos 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42., seja qual for o setor de atuação médica no pronto-atendimento, nota-se latente ou manifesta a estrutura institucional biomédica, na qual a luta pela manutenção da vida se confunde com o cuidado 2424. Aredes JS, Firmo JOA, Leibing A, Giacomin KC. Reflexões sobre um fazer etnográfico no pronto-socorro. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00118016.,2626. Aredes JS, Giacomin KC, Firmo JOA. O médico diante da morte no pronto-socorro. Rev Saúde Pública 2018; 52:42.. Assim, no cuidado a um paciente grave com suspeita de morte encefálica, o que vai tornar esse processo de morte menos difícil para o profissional é o seu contato ainda tênue com a vida manifesta no corpo, a qual se esvai lentamente, mas guarda o potencial de auxiliar a manter outras vidas concretizado na doação de órgãos. Mesmo num local onde a morte é tangível, o saber biomédico persiste em busca da manutenção da vida como propósito basilar da atuação médica.
Considerações finais
No último século, a expansão de novas tecnologias biomédicas de suporte cardíaco e ventilação mecânica possibilitou o prolongamento da vida, inclusive de pacientes com morte encefálica. Por sua vez, essa nova condição de morte propiciou a doação de órgãos e a continuidade da vida.
Nesta etnografia, nota-se que o processo de cuidado médico ao paciente em suspeita de morte encefálica ultrapassa questões normativas e envolve, sobretudo, o papel do profissional como mediador de uma miríade de elementos e tensões imbricados. Embora seja um conceito definido e legitimado, na prática ele adquire interpretações controversas: a definição, a constatação e a comunicação da morte encefálica envolvem percepções ambivalentes dos profissionais e dos familiares.
Dada a complexidade da questão, sem desmerecer os limites e angústias do cuidado ao paciente vítima de morte encefálica, na formulação de políticas públicas na área da saúde a capacitação das equipes médicas quanto à morte encefálica não deve se restringir à legitimação do óbito e às melhorias nos índices de doação. Ela precisa estar associada às concepções dos indivíduos acerca dos significados de vida e de morte, no seu contexto sociocultural. Isso inclui compreender os sentidos elaborados pelo próprio médico, que repercutem no cuidado ao paciente/potencial doador e aos familiares.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes - bolsa de doutorado) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - bolsa de produtividade, processo 303372/2014-1).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Nov 2018
Histórico
- Recebido
26 Mar 2018 - Revisado
25 Maio 2018 - Aceito
12 Jul 2018