Em novembro de 2017, veio à tona o relatório do Banco Mundial intitulado Um Ajuste Justo: Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil (http://documents.worldbank.org/curated/pt/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf). Com um extenso rol de prescrições sobre o que as autoridades brasileiras deveriam fazer em matéria de ajuste fiscal, o relatório teve ampla repercussão nos principais jornais do país, suscitando forte reação contrária nas mídias sociais e em artigos de opinião. O debate logo se polarizou e trouxe à cena pública a discussão sobre a consistência metodológica dos dados que sustentavam as recomendações do Banco Mundial. Mais do que fazer mais uma análise de cada ponto do relatório, abordam-se aqui seis dimensões da história do Banco Mundial que podem contribuir para a discussão sobre a sua atuação no setor saúde.
A primeira dimensão remete ao fato de que o Banco Mundial integra a infraestrutura de poder global dos Estados Unidos. Do ponto de vista político e financeiro, os Estados Unidos sempre foram o maior acionista e o mais influente da instituição. As relações com os Estados Unidos foram decisivas para o crescimento e a configuração geral das políticas e práticas do Banco Mundial. Em troca, os Estados Unidos se beneficiaram largamente da ação do Banco Mundial em termos econômicos e políticos, mais do que qualquer outro acionista, tanto no curto como no longo prazos. Isso não quer dizer que o Banco Mundial seja um mero instrumento passivo dos Estados Unidos; como uma burocracia complexa, ele tem interesses organizativos próprios e meios para amortecer as injunções dos Estados Unidos. No fim, porém, os Estados Unidos podem usar o seu poder formal de voto e a sua alavancagem financeira para determinar a trajetória geral da instituição. Ocorre que a política americana para o Banco Mundial sempre foi objeto de disputa e barganha entre interesses econômicos e políticos diversos quanto ao papel da cooperação multilateral e da ajuda ao desenvolvimento 11. Gwin C. U.S. relations with the World Bank, 1945-1992. In: Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 2: perspectives. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997. p. 195-274.,22. Babb S. Behind the development banks: Washington politics, world poverty, and the wealthy of nations. Chicago: The University of Chicago Press; 2009.,33. Pereira JMM. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.. Dessa disputa emergiram dois vetores cujo balanço variou ao longo do tempo. Por um lado, os Estados Unidos protagonizaram a construção da indústria internacional da ajuda e do Banco Mundial como instrumentos para a promoção de uma economia mundial livre e aberta ao capital no pós-guerra, apoiando a cooperação multilateral como meio percebido como menos politizado e mais neutro do que a cooperação bilateral para alavancar e alocar recursos para esta finalidade e, assim, desonerar a carga dos Estados Unidos com a ajuda econômica bilateral. Por outro lado, os Estados Unidos também buscaram instrumentalizar as organizações internacionais, incluindo o Banco Mundial, para fins imediatos da sua política externa, contrariando a sua pregação sobre o multilateralismo. Com o tempo, a disputa passou a envolver um número cada vez maior de atores. No final da década de 1960, por conta da Guerra do Vietnã, o ativismo crescente do Congresso americano sobre a política externa alcançou o Banco Mundial, abrindo pontos de entrada durante a década seguinte para que interesses variados influenciassem as provisões americanas para a instituição. Até então, a política de Washington para o Banco Mundial havia sido definida pelo jogo de poder discreto entre o Tesouro e o Departamento de Estado. Nos anos 1980, o ativismo parlamentar criou oportunidades para que grupos políticos e organizações não governamentais (ONGs) agissem por dentro do Legislativo, com o objetivo de pautar as ações do Banco Mundial em matéria social e ambiental. Desde então, o Congresso passou a ser alvo de lobbies e campanhas públicas voltados para influenciar a política dos Estados Unidos para o Banco Mundial. Isso transformou o Congresso americano no único parlamento cujos trâmites têm peso sobre as pautas e a forma de atuação do Banco Mundial, o que, paradoxalmente, reforça o peso dos Estados Unidos na organização.
A segunda dimensão tem a ver com o tipo de relação existente entre o Banco Mundial e os Estados clientes. Não se trata de mera imposição unilateral, mas de uma via de mão dupla. Os Estados não são simplesmente “vítimas” 44. Williams D. The World Bank and social transformation in international politics. London: Routledge; 2008.. Com efeito, a atuação do Banco Mundial junto aos Estados clientes combina coerção e persuasão, operando em escalas internacional e nacional. Para entendê-la é necessário levar em conta ao menos três aspectos. Em primeiro lugar, todo cliente tem de ser membro, mas nem todo membro é cliente. Significa dizer que o Banco Mundial nada prescreve aos países mais ricos e com maior gravitação dentro da instituição (como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, França e Canadá); ao contrário, deles recebe inúmeras pressões. Em segundo, a relação do Banco Mundial com os países clientes não é limitada ao governo e às agências estatais, mas envolve também organizações da sociedade civil e empresas privadas. Em terceiro lugar, dada a desigualdade de poder estrutural que marca o sistema internacional, os Estados clientes dispõem de condições muito assimétricas de negociação.
A terceira dimensão diz respeito ao papel do Banco Mundial como organização da sociedade civil, em escalas global e nacional. De fato, o Banco Mundial é influente porque atua em meio a uma extensa rede de relações que envolve agentes nacionais e globais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais 55. Goldman M. Imperial nature: the World Bank and struggles for social justice in the age of globalization. New Haven: Yale University Press; 2005.. Tais agentes, mesmo diferindo entre si quanto aos recursos de que dispõem, interagem com o Banco Mundial no sentido de apoiar, adaptar, negociar e veicular as ideias e prescrições à instituição. Nessa relação, com frequência o discurso e as práticas do Banco Mundial fornecem argumentos e recursos para dirimir conflitos entre atores políticos e consolidar posições de poder e convicções próprias. É frequente que governos utilizem as recomendações ou condicionalidades do Banco Mundial para respaldar a implantação de reformas impopulares. Por tudo isso, a eficácia das ações do Banco Mundial necessita da construção, por fora e por dentro, dos espaços nacionais, de visões de mundo e interesses mútuos, tanto na sociedade civil como no aparelho de Estado.
A quarta dimensão diz respeito às funções desempenhadas pelo Banco Mundial. Trata-se de uma instituição financeira e isto o distingue das agências especializadas da Organização das Nações Unidas que carecem de autonomia e estabilidade financeira. O Banco Mundial tem dinheiro e isto potencializa a sua capacidade de indução política, com frequência saindo na frente da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em educação, da OMS (Organização Mundial da Saúde) em saúde, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) em desenvolvimento rural etc. Porém, o Banco Mundial não é um mero emprestador de recursos, mas sim um ator político, intelectual e financeiro, combinando a concessão de empréstimos com assistência técnica para a definição e desenho de políticas públicas, produção intelectual abundante e influente, e liderança em políticas globais de desenvolvimento. Não por acaso o Banco Mundial é enorme, com mais de 12 mil funcionários, muito maior do que as demais organizações multilaterais. Nessa articulação de funções, o dinheiro funciona como um instrumento para a indução do produto principal: ideias e prescrições sobre como pensar e o que fazer em matéria de desenvolvimento.
A quinta dimensão concerne ao papel intelectual do Banco Mundial 66. Stern N, Ferreira F. The World Bank as 'intellectual actor'. In: Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 2: perspectives. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997. p. 523-610.,77. Bayliss K, Fine B, van Waeyenberge E, editors. The political economy of development: the World Bank, neoliberalism and development research. London: Pluto Press; 2011.. Apesar do histórico escasso na criação de conhecimento inovador em Economia, o Banco Mundial desfruta de legitimidade como bastião de expertise em matéria de desenvolvimento. Suas publicações são referências no mundo inteiro para gestores públicos, pesquisadores e formadores de opinião nas mais diversas áreas. Além disso, o Banco Mundial também é um dos maiores contratantes no mercado global de consultorias, selecionando especialistas que, de modo geral, ressoam as ideias e propostas que o Banco Mundial impulsiona em matéria de ajuste econômico, gestão público-privada, governança, capital humano, capital social, empowerment etc. Por sua vez, a institucionalização de ideias e prescrições exige a organização de um ambiente amigável pelo mundo afora, razão pela qual o Banco Mundial investe bastante em relações públicas, pesquisa e articulação com instituições multilaterais, órgãos públicos, think tanks, fundações empresarial-filantrópicas e ONGs nos Estados clientes.
Embora cultive a aparência de excelência técnica, a pesquisa realizada pelo Banco Mundial é altamente normativa, servindo para a instituição fazer proselitismo de sua agenda política. De fato, a atividade intelectual do Banco Mundial não se submete às regras do campo científico, regido pela revisão por pares e pela necessidade de se ter pluralidade de enfoques e visão ampla e balanceada das evidências. Além disso, a instituição há anos pratica um narcisismo agudo, respaldando as suas pesquisas em pesquisas do próprio Banco Mundial ou encomendadas por ele. Isso não apenas desencoraja o dissenso interno, como também a reflexividade crítica decorrente da liberdade inegociável para se questionar os pressupostos que dão fundamento à própria atividade científica.
Por fim, a sexta dimensão tem a ver com a maneira pela qual o tema da pobreza é abordado pela instituição. A questão remete à preocupação do governo americano com as revoltas e revoluções nos países do Terceiro Mundo nos anos 1960-1970. Com raízes na Guerra Fria, a bandeira do “combate à pobreza” foi enxertada no Banco Mundial a partir de Washington 88. Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 1: history. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997.. Nesse sentido, a gestão de Robert McNamara (1968-1981) marcou profundamente a história da instituição. Evocando a conexão entre segurança e desenvolvimento, ele argumentava que o atraso econômico e as contradições da modernização capitalista abriam as portas para ideologias radicais. Ao assumir o cargo, McNamara fez um balanço negativo do desenvolvimento internacional no decênio anterior, afirmando que a desigualdade de renda entre as nações havia aumentado e que a maior parte da população mundial permanecia em condições de pobreza, apesar do crescimento econômico no Terceiro Mundo. Reconhecia, assim, que o padrão de desenvolvimento dominante havia falhado e que o famigerado “efeito derrame” não tinha ocorrido. Para McNamara, já não era mais válido considerar que o crescimento levasse necessariamente à redução da pobreza. Era preciso distingui-los analiticamente, o que abria espaço para que ambos pudessem ser abordados de maneira separada e direta. Mais à frente, a partir de 1979-1980, no bojo da discussão sobre a criação dos empréstimos de ajuste estrutural, o Banco Mundial acabou por consagrar saúde primária e educação básica como áreas abertas a empréstimos, ligando-as ao alívio da pobreza e à focalização das políticas sociais. Em 1979, a instituição começou a autorizar empréstimos exclusivamente para a saúde. Enquanto isso, o conceito de capital humano era entronizado tardiamente na agenda da entidade. Desenhava-se, então, o ajuste da política social que se tornaria hegemônico uma década depois, centrado na formação de capital humano e na prestação focalizada de mínimos sociais pelo Estado. Durante a década de 1990, o Banco Mundial internalizou o combate à pobreza na agenda neoliberal, por meio de programas de alívio compensatório e, depois, na década de 2000, programas de transferências de renda condicionadas e transitórias, que figuram como mecanismos auxiliares da liberalização e privatização das economias nacionais 99. Rückert A. The forgotten dimension of social reproduction: the World Bank and the poverty reduction strategy paradigm. Rev Int Polit Econ 2010; 17:816-39.. Para o Banco Mundial, não há contradição nem hipocrisia em difundir a aplicação de receitas neoliberais e, ao mesmo tempo, colocar-se na condição de paladino do combate à miséria. A limitação das políticas sociais ao “combate à pobreza” segue uma espécie de pobretologia, segundo a qual o que importa é matematizar a pobreza e fazer programas cada vez mais focalizados e individualizados. Canonizando certas opções econômicas como universais (austeridade fiscal, liberalização financeira, privatização etc.), o Banco Mundial tem impulsionado a reconfiguração das políticas sociais desconsiderando como a riqueza nacional é produzida e apropriada, de forma extremamente desigual, por grupos e classes sociais. Afinal, os pobres são pobres porque não têm “ativos” (renda, capital humano), e não os têm porque são pobres.
Mediante alargamento institucional e mudança incremental que aceleraram desde os anos de 1990, o Banco Mundial passou a incidir a definição de políticas públicas em todas as dimensões do desenvolvimento, com destaque para saúde, educação, meio ambiente e administração pública. No Brasil, historicamente um dos cinco maiores clientes, o Banco Mundial exerce atividade intensa e capilarizada no âmbito da reforma da administração pública e de políticas setoriais junto a municípios, estados e União. Assim, tão importante quanto discutir em detalhes as últimas prescrições do Banco Mundial para o setor saúde, é analisar o conjunto da atuação da instituição no Brasil.
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa de Produtividade e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pela Bolsa Jovem Cientista.
- 1Gwin C. U.S. relations with the World Bank, 1945-1992. In: Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 2: perspectives. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997. p. 195-274.
- 2Babb S. Behind the development banks: Washington politics, world poverty, and the wealthy of nations. Chicago: The University of Chicago Press; 2009.
- 3Pereira JMM. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2010.
- 4Williams D. The World Bank and social transformation in international politics. London: Routledge; 2008.
- 5Goldman M. Imperial nature: the World Bank and struggles for social justice in the age of globalization. New Haven: Yale University Press; 2005.
- 6Stern N, Ferreira F. The World Bank as 'intellectual actor'. In: Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 2: perspectives. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997. p. 523-610.
- 7Bayliss K, Fine B, van Waeyenberge E, editors. The political economy of development: the World Bank, neoliberalism and development research. London: Pluto Press; 2011.
- 8Kapur D, Lewis J, Webb R, editors. The World Bank: its first half century. Volume 1: history. Washington DC: Brookings Institution Press; 1997.
- 9Rückert A. The forgotten dimension of social reproduction: the World Bank and the poverty reduction strategy paradigm. Rev Int Polit Econ 2010; 17:816-39.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Mar 2018
Histórico
- Recebido
04 Jan 2018 - Aceito
19 Jan 2018