Resumo:
Os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES) afirmam que todos os seres humanos têm direito ao acesso seguro à água e ao esgotamento sanitário de forma não discriminatória. No entanto, populações vulneráveis têm esses direitos frequentemente violados, repercutindo em sua saúde e qualidade de vida, e agravando a exclusão social, como é o caso das pessoas em situação de rua. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, existiam 1.827 pessoas nessa condição em 2013. Este artigo apresenta a avaliação das condições e da percepção dessa população sobre o acesso à água e ao esgotamento sanitário e seus direitos nessa área. Observou-se que o acesso, tanto à água quanto ao esgotamento sanitário, é precário e que os conteúdos normativos e os princípios dos direitos humanos são potencialmente violados. Como conclusão, observa-se que esse grupo sofre violações dos DHAES e que estas estão associadas com a violação de outros direitos, como o direito à cidade, à moradia e à saúde. Essas violações têm repercussões negativas na vida econômica e social desse grupo populacional, aumentando a discriminação e a exclusão. O estudo chama a atenção para a importância de estimular a participação social desse grupo nos processos de tomada de decisão sobre a gestão da água e do esgotamento sanitário, no marco dos DHAES, em sua capacidade de ser instrumento de transformação social, gerando empoderamento, promovendo saúde, dignidade e cidadania.
Palavras-chave:
Direitos Humanos; Pessoas em Situação de Rua; Água; Esgotos
Resumen:
Los derechos humanos al agua y al saneamiento público señalan que todos los seres humanos tienen derecho al acceso seguro al agua y saneamiento público de forma no discriminatoria. No obstante, a las poblaciones vulnerables se les violan frecuentemente estos derechos, repercutiendo en su salud y calidad de vida, y agravando su exclusión social, como es el caso de las personas en situación de marginación. En Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, existían 1.827 personas en estas condiciones en 2013. Este artículo presenta la evaluación de las condiciones y la percepción de esta población sobre su acceso al agua y al saneamiento público y sus derechos en este ámbito. Se observó que el acceso tanto al agua, como al saneamiento, es precario y que las regulaciones normativas y estos principios de los Derechos Humanos se violan reiteradamente. Como conclusión, se observa que ese grupo sufre violaciones de los derechos humanos al agua y al saneamiento público y que estas últimas están asociadas con la violación de otros derechos, como el derecho a la ciudad, a la vivienda y a la salud. Estas violaciones tienen repercusiones negativas en la vida económica y social de este grupo poblacional, aumentando su discriminación y exclusión. El estudio llama la atención sobre la importancia de estimular la participación social de este grupo en los procesos de toma de decisión sobre la gestión del agua y saneamiento sanitario, en el marco de los derechos humanos al agua y saneamiento, al tratarse de un instrumento de transformación social, generando empoderamiento, promoviendo salud, dignidad y ciudadanía.
Palabras-clave:
Derechos Humanos; Personas sin Hogar; Agua; Aguas del Alcantarillado
Introdução
O Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais elaborou, em 2002, o Comentário Geral n o 15 sobre o direito humano à água 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010.. Segundo esse Comitê, o direito à água se enquadra no direito a uma vida com qualidade e está intimamente relacionado com o direito à saúde, alimentação e moradia digna, previstos no Tratado Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010.. O comentário também estabelece que o acesso ao esgotamento sanitário é essencial para que o direito à água seja atingido. Assim, em julho de 2010, por meio da Resolução A/RES/64/292, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas reconheceu o acesso à água e ao esgotamento sanitário como um direito humano 22. United Nations General Assembly. Human rights obligations related to access to safe drinking water and sanitation. Note by the secretary-general. Geneva: United Nations; 2010. (UN Document A/65/254).. A Resolução reconhece o direito à água potável segura e limpa e ao esgotamento sanitário como um direito humano essencial para o pleno gozo da vida e dos direitos humanos 22. United Nations General Assembly. Human rights obligations related to access to safe drinking water and sanitation. Note by the secretary-general. Geneva: United Nations; 2010. (UN Document A/65/254)..
No mesmo ano, o Conselho de Direitos Humanos ratificou e esclareceu esse entendimento confirmando que a Resolução era juridicamente vinculante. Desde então, os países devem garantir, progressivamente, esse direito, incluindo a obrigatoriedade a seu reconhecimento nos ordenamentos jurídicos nacionais e respeitando os princípios dos diretos humanos, como não-discriminação e equidade, informação e transparência, responsabilidade e participação social. Portanto, o Estado tem a obrigação de respeitar, proteger e fazer valer esse direito, não implicando necessariamente que deva ser o provedor do serviço, mas deve monitorar e regulamentar os prestadores e garantir que o direito não seja violado 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010.,33. Sultana F, Loftus A. The right to water: prospects and possibilities. In: Sultana F, Loftus A, editors. The right to water: politics, governance and social struggles. New York: Earthscan; 2012; p. 1-18..
Em 2015, com o intuito de dar mais visibilidade ao esgotamento sanitário, que ainda apresenta grande déficit mundial (aproximadamente 1 bilhão de pessoas defecam a céu aberto) 44. Joint Monitoring Programme for Water Supply and Sanitation. Progress on drinking water and sanitation - 2015 update and MDG assessment. Geneva: WHO Press; 2015., foi aprovada uma resolução assumindo a separação entre os dois direitos, embora reconhecendo sua integração.
Segundo o Comentário Geral n o 1511. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010., o acesso à água deve respeitar requisitos como: disponibilidade, qualidade/segurança, aceitabilidade e acessibilidade física e financeira. Portanto, a água deve estar disponível em quantidade suficiente para uso pessoal e doméstico; deve ser segura e de qualidade e não representar risco à saúde; dever ter cor, cheiro e sabor aceitáveis, evitando que o indivíduo busque fontes alternativas não seguras; e deve ser acessível. As necessidades especiais dos indivíduos devem ser levadas em consideração e o caminho percorrido para a coleta não pode apresentar riscos de ataque, seja de animais ou de pessoas. Além disso, deve estar disponível a um preço acessível para a população. O preço gasto pelo individuo para ter acesso à água não pode prejudicar a aquisição de outros bens essenciais, como alimentação, moradia e cuidado com a saúde 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010..
Com relação ao serviço de esgotamento sanitário este deve estar disponível, ser seguro, acessível física e financeiramente, além de higiênico, aceito cultural e socialmente, e capaz de assegurar a privacidade e a dignidade humana 55. United Nations. Report of the Special Rapporteur on the human right to safe drinking water and sanitation. Geneva: United Nations; 2015.. Segundo Heller 66. Heller L. The crisis in water supply: how different it can look through the lens of the human right to water? Cad Saúde Pública 2015; 31:447-9., além da questão individual o acesso adequado a serviços de esgotamento sanitário tem uma importante dimensão na saúde pública, uma vez que previne a contaminação do ambiente.
Segundo relatório conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) 44. Joint Monitoring Programme for Water Supply and Sanitation. Progress on drinking water and sanitation - 2015 update and MDG assessment. Geneva: WHO Press; 2015., grupos populacionais vulneráveis são os mais afetados pela falta de acessibilidade a esses serviços. Diversos autores apontam que a situação de vulnerabilidade em que um grupo social se encontra é consequência da exposição a múltiplos fatores, sejam eles sociais, econômicos, políticos ou culturais 77. Adger WN. Vulnerability. Glob Environ Change 2006; (16):268-81.,88. Delor F, Hubert M. Revisiting the concept of "vulnerability". Soc Sci Med 2000; 50:1557-70.,99. Ayres JR, Paiva V, França-Jr I. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro de vulnerabilidade e direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JR, Buchalla CM, organizadores. Vulnerabilidade e direitos humanos - prevenção e promoção da saúde: da doença à cidadania. Curitiba: Juruá; 2012. p. 71-94.. Assim, pessoas em vulnerabilidade possuem poucos recursos para enfrentar as adversidades do cotidiano que lhes são apresentadas, sofrendo discriminação e tendo seus direitos violados. Dentro desse contexto está inserida a população em situação de rua.
Em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, dados do Terceiro Censo sobre População de Rua e Migrantes, realizado em 2013, mostrou que existem 1.827 pessoas em situação de rua no município 1010. Prefeitura de Belo Horizonte. Terceiro censo da população em situação de rua e migrantes. http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noticia.do?evento=portlet&pAc=not&idConteu do=154144&pIdPlc=&app=salanoticias (acessado em 01/Set/2016).
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noti... . Observa-se que poucos são os estudos que avaliam o acesso à água e ao esgotamento sanitário pela população em sistuação de rua. Nesse sentido, o presente artigo descreve a avaliação, à luz dos conteúdos normativos do direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES) e dos princípios dos direitos humanos, do acesso a esses serviços pela população em sistuação de rua, dialogando com a decorrente formulação de políticas públicas no setor.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa com a população em situação de rua que vive no Município de Belo Horizonte. Para a coleta de dados foram realizadas entrevistas individuais e em grupo. Essas entrevistas, realizadas entre maio e julho de 2016, seguiram um roteiro semiestruturado, elaborado com base na experiência dos pesquisadores e na revisão da literatura, continha questões gerais sobre a vida na rua, questões sobre os conteúdos normativos do DHAES (disponibilidade, qualidade e segurança, acessibilidade física e financeira e aceitabilidade) e questões que abordavam alguns dos princípios dos direitos humanos (discriminação, informação/transparência e participação social). A pesquisa contou com a colaboração e o apoio da Pastoral de Rua de Belo Horizonte. Essa Pastoral é uma organização vinculada à igreja católica, que atua auxiliando a promoção da dignidade da população em situação de rua em Belo Horizonte desde 1987.
Inicialmente, foi realizada uma entrevista piloto para avaliar o roteiro. Após as alterações necessárias, as pesquisadoras (P.N.-S. e G.I.M.) foram a campo. No primeiro dia de campo foi feita uma observação participante na Praça Raul Soares. A escolha dessa praça se deve ao número elevado de pessoas em situação de rua que passam ou moram ali e à presença de uma fonte de água. Durante a observação participante, feita em dois dias, as pesquisadoras avaliaram como as pessoas em situação de rua utilizavam a fonte localizada na praça e como era a rotina das pessoas que viviam ali.
Após a observação participante, as pesquisadoras saíram em busca de pessoas que se disponibilizassem a responder às perguntas. Assim, a seleção dos participantes foi feita pelo critério de acessibilidade. As abordagens na rua aconteceram na região centro-sul do município (Praça Raul Soares, Viaduto Santa Teresa, Praça da Rodoviária, Viaduto Helena Grecco e ruas do centro da cidade), região onde se encontra o maior número de pessoas em situação de rua 1010. Prefeitura de Belo Horizonte. Terceiro censo da população em situação de rua e migrantes. http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noticia.do?evento=portlet&pAc=not&idConteu do=154144&pIdPlc=&app=salanoticias (acessado em 01/Set/2016).
http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/noti... . As abordagens eram feitas apresentando as pesquisadoras e os objetivos da pesquisa. Algumas pessoas abordadas ficaram desconfiadas e não quiseram participar ou estavam alcoolizadas e/ou drogadas, não sendo possível fazer as entrevistas.
Participaram da pesquisa homens e mulheres em situação de rua maiores de 18 anos. Foram entrevistadas, individualmente, 12 pessoas, sendo cinco mulheres, e as entrevistas foram realizadas na rua ou nas dependências da Pastoral de Rua.
Para a realização da entrevista em grupo foi feito, inicialmente, um contato com a Pastoral, que prontamente nos recebeu e salientou que elas não tinham conhecimento sobre nenhuma outra pesquisa que tivesse abordado o acesso à água e ao esgotamento sanitário pela população em situação de rua. Na sede da Pastoral acontece, toda semana, uma reunião com pessoas em situação de rua. As pesquisadoras participaram das reuniões por dois meses e apresentaram a pesquisa para o grupo, que se mostrou muito interessado. Assim, a entrevista em grupo foi realizada na sede da Pastoral e contou com 12 participantes, sendo quatro mulheres.
Os 24 participantes do estudo estavam na faixa etária entre 20 e 55 anos e o tempo em que viviam em situação de rua variou de 15 dias a 30 anos. Os fatores que os levaram à rua foram: desemprego, problemas na relação familiar, abandono do companheiro (apenas mulheres) e uso de álcool e drogas. Esses fatores em muitos casos estavam associados, nem sempre sendo possível separá-los. As principais fontes de renda eram o Bolsa Família, venda de produtos recicláveis, trabalhos informais esporádicos e doações.
A técnica de amostragem por saturação 1111. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saúde Pública 2008; 24:17-27., na qual a ausência de temas novos e a repetição de conteúdo nas entrevistas são indicativos de que as principais ideias já foram levantadas, foi utilizada para definir o número de entrevistados. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas utilizando-se a técnica da análise de conteúdo, por meio da qual as informações coletadas foram sistematizadas em categorias temáticas 1212. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. Após análise, e tendo como base o referencial teórico do DHAES, as seguintes categorias temáticas gerais foram identificadas: conteúdos normativos do DHAES e princípio dos direitos humanos.
Os dados obtidos são confidenciais e o anonimato dos participantes foi garantido, de maneira que seus nomes não serão revelados em nenhuma situação. Os participantes foram identificados com a sigla PSR seguida do número de ordem em que foram entrevistados, e a letra H ou M para determinar o sexo do participante. Aqueles que participaram da entrevista em grupo foram identificados como EG/PSR seguido do número de ordem de participação e da letra referente ao sexo. Os entrevistados foram devidamente informados sobre o projeto e convidados a participar do mesmo de forma voluntária, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Eles foram certificados de que poderiam se sentir livre para abandonar o estudo a qualquer momento.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (protocolo CAAE 49209515.0.0000.50.91), segundo as diretrizes da Resolução n o 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados e discussão
Conteúdos normativos do DHAES
“Pra gente na situação de rua é uma coisa que a gente fica chateado de ouvir as pessoas falarem de banheiro e água, é uma coisa que a gente tem acesso de favores, né? É!” (EG/PSRH 5).
No Município de Belo Horizonte, a população em situação de rua não tem acesso adequado à água e ao esgotamento sanitário. O acesso a esses serviços ainda é tratado como assistencialismo e caridade, e não como direito, impedindo que as pessoas requeiram o acesso a esses serviços como titulares de direito, colocando o Estado na posição de obrigatoriedade em garanti-lo 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010.. O não reconhecimento do direito coloca essa população em uma situação cada vez mais vulnerável . Como os direitos são interdependentes e indivisíveis, a violação de um afeta outros gerando iniquidades e prejudicando a saúde.
Por meio dos relatos dos participantes verifica-se que os conteúdos normativos, tanto do direito à água quanto ao esgotamento sanitário, não são em geral respeitados. Segundo eles, o acesso à água para beber é conseguido por meio de doações em bares e restaurantes e no posto de gasolina. Já para tomar banho e lavar as roupas, utilizam as bicas e fontes de água espalhadas pelas praças da cidade. Alguns, na Lagoa da Pampulha, embaixo do viaduto, ou mesmo enchendo garrafas com água que recebem de doações e tomando banho em locais onde se sentem mais protegidos.
“Pra tomar banho... Ali mesmo, no Palácio das Artes [teatro da cidade], ontem à noite, eu ia passando e tinha um moço lá tomando banho, naquele frio, mas ele tava lá lavando a cabeça, naquela água que fica lá no Palácio das Artes... Naquela fonte. Eu falei, a piscina do morador de rua é aquela. Se você vai na praça Raul Soares lá tem aquela fonte, aqui na Praça da Estação... É onde eles tomam banho. Quando eles ligam aquela fonte ali na frente da Praça da Estação, aquele jato d’água... Aquilo é uma festa. Lá é onde lavam roupa, onde tomam banho, né...” (PSRH 8).
“É ali que a gente faz, em bicas que a gente faz, embaixo do viaduto, ali quase no meio dele, cai uma água, então a gente toma um banho, lava uma roupa” (PSRH 12).
A falta de acesso adequado à água traz como consequência o consumo de água de baixa qualidade, tanto para beber como para tomar banho e lavar os pertences. Muitas vezes as pessoas não sabem se a água é segura e, em alguns casos, esta chega a apresentar cor e odor inaceitáveis.
“E tem aquela lagoa ali na Olegário Maciel que eles tomam banho lá, lava roupa. Hoje passei cedo eles tava até lavando roupa lá. (...) Acho que essa água é até contaminada porque todo mundo, muita gente toma banho nela, lava roupa. Muita gente lava roupa lá, aí...” (PSRH 1).
“Tem cheiro ruim e olha lá tudo sujo” (PSRM 4).
Como salientado por diversos estudos 1313. Heller L, Cairncross S. Poverty. In: Bartran J, Baum R, Coclains PA, Gute DM, Kay D, McFadyen S, et al., editors. Routledge handbook of water and health. London/New York: Routeledge; 2015. p. 376-86.,1414. Bain R, Cronk R, Hossai R, Bonjour S, Onda K, Wright J, et al. Global assessment of exposure to faecal contamination through drinking water based on a systematic review. Trop Med Int Health 2014; 19:917-27., a limitação do acesso à água segura e de qualidade aumenta a susceptibilidade das pessoas a várias doenças. Uddin et al. 1515. Uddin SMN, Walters V, Gaillard JC, Hridi SM, McSherry A. Water, sanitation and hygiene for homeless people. J Water Health 2016; 14:47-51. realizaram uma pesquisa com população em situação de rua em Dhaka, Bangladesh, e verificaram que o acesso inadequado à água e ao esgotamento sanitário aumenta a probabilidade do desenvolvimento de doenças como diarreia, febre tifoide, dor de estômago e doenças de pele. Essas situações refletem a relação entre diretos humanos e saúde, salientando a necessidade de políticas públicas capazes de garantir a criação de ambientes saudáveis, respeitando princípios como participação e não-discriminação, e combatendo as iniquidades em saúde.
“Já! Já, pano branco [micose], sarna e... piolho de pombo, né? Porque a gente tenta tomar banho, procura a bica, também tá fechada porque a Copasa, desculpa a palavra, é sacana, vai lá e interdita a bica, aí você tem que ir lá ficar quinze, vinte dias sem tomar banho. Aí quando você vai assustar você chega pra tomar banho você tá com mancha de pano branco” (PSRH 5).
As instituições sociais como albergues, abrigos e o Centro de Referência da População de Rua (Centro POP) oferecem banho, mas em geral a população em situação de rua não se sente à vontade frequentando estes espaços.
“O Centro POP, esse aí é um bagaço. Todo mundo reclama do Centro POP. Banheiro entupido, não tem portas... Negócio de ficar aquela fila de homem tomando banho, poxa... É constrangedor. Não tem porta” (PSRH 8).
“Eles esperam dar uma hora da tarde pra abrir lá [Centro POP], aí dá aquela muvuca, como a gente chama, de pessoas, aglomerado de gente, pra tomar banho, trocar roupa... De 13h às 17h é pouco tempo... Quatro horas pra atender uma porção de gente lá... Por isso dá esse aglomerado” (PSRH 12).
O Centro POP funciona das 13 às 17 horas e foi construído para atender a 80 pessoas. Atualmente o município tem 1.827 pessoas em situação de rua, demonstrando a incapacidade do local de suprir a demanda. As outras instituições, além de terem instalações precárias, também não conseguem acolher todas as pessoas em situação de rua. Além disso, muitos indivíduos aproveitam o espaço para lavar roupa durante o banho, o que é proibido em algumas instituições, causando brigas e conflitos. Dessa forma, a violação do DHAES a que são submetidos, prejudica, ainda, a relação interpessoal e com as instituições públicas que deveriam apoiar e minimizar as situações de marginalização e vulnerabilidade.
“Aqui nós temos o abrigo Tia Branca que tem mais de quatrocentas pessoas, quer dizer, pessoal vive lá igual um formigueiro. Isso sem falar nos percevejos, nos ratos, nas baratas, que lá é cheio demais” (PSRH 8).
“O Centro POP tem muita briga, você tá lavando uma roupa, de repente o pessoal começa a brigar lá e você tá envolvido. Nossa!” (PSRH 7).
Quando têm dinheiro, pagam para tomar banho em locais como na Estação Rodoviária. No entanto, o valor cobrado é alto, considerando os parcos rendimentos das população em situação de rua, restringindo o acesso e desrespeitando o conteúdo normativo sobre acessibilidade financeira.
“...banho lá na Rodoviária aí tinha que pagar 6,50, agora tá 8 reais, aumentou, mas no caso eu não tenho condição de pagar” (PSRH 11).
Como relatado, a falta de portas nos banheiros das instituições de apoio e o banho nas vias públicas causam constrangimento e insegurança, não sendo adequados às normas sociais e culturais, como previsto pelos DHAES 11. Office of the High Commissioner for Human Rights. General comment no. 15: the right to water (Arts. 11 and 12 of the Covenant). Geneva: Office of the High Commissioner for Human Rights, United Nations; 2010.. Além disso, a falta de locais adequados para tomar banho e lavar as roupas também interfere na privacidade e na dignidade da pessoa em situação de rua, que se vê sem direito a tomar banho e usar uma roupa limpa. A falta de banho e a impossibilidade de lavar as roupas excluem ainda mais essas pessoas da vida econômica, social e cultural da cidade.
“Que nem o outro colega falou também, você entra no banheiro com quinze homens dentro, você fica olhando assim pra um lado, pro outro e agora o que eu faço?” (EG/PSRH 3).
“Essa palavra é muito triste: num pode. Não pode fazer isso, fazer aquilo... um dia levei bronca porque fui lavar, tava com desespero com a calça suja, já tinha ensaboado a calça, tava na sacola, mas falei: ‘o que eu faço com a calça, preciso dela amanhã!’. Mas aí quando cheguei no bebedouro, fiquei tão desesperada que enfiei ela dentro do bebedouro, ‘eu vou enxaguar aqui mesmo’. Aí o rapaz chegou e falou ‘não pode!’. Aí eu concordei com ele: ‘eu sei que não pode, mas eu preciso dela’. Meu desespero foi tão grande!” (EG/PSRM 12).
“Primeiramente, tem que ter o coração bom e o estômago forte. Ela me perguntou ‘mas por que estômago forte’, eu ri. Por quê? A senhora quer que eu falo? Porque quando eu chego sujo, fedendo com uma semana, duas semanas sem tomar banho...” (PSRH 12).
A falta de privacidade afeta mais as mulheres que ficam expostas a situações de constrangimento e sujeitas à violência. Estudos apontam que a falta de instalações sanitárias adequadas implica medo, estresse psicológico e redução da autoestima das mulheres, uma vez que não conseguem manter o autorrespeito e a reputação social 1616. Campbell OMR, Benova L, Gon G, Afsana K, Cumming O. Getting the basic rights - the role of water, sanitation and hygiene in maternal and reproductive health: a conceptual framework. Trop Med Int Health 2015; 20:252-67.,1717. Sorenson SB, Morssink C, Campo PA. Safe access to safe water in low income countries: water fetching in current times. Soc Sci Med 2011; 72:1522-6.,1818. Koolwal G, Walle D. Access to water, women's work, and child outcomes. Econ Dev Cult Change 2013; 61:369-405.,1919. Pickering A, Davis J. Freshwater availability and water fetching distance affect child health in sub-Saharan Africa. Environ Sci Technol 2012; 46:2391-7.,2020. Nauges C, Strand J. Water hauling and girls' school attendance: some new evidence from Ghana. Washington DC: The World Bank; 2011. (Policy Research Working Paper, 6443).,2121. United Nations. Report of the Special Rapporteur on the human right to safe drinking water and sanitation on gender equality on the realization of the human right to water and sanitation. Geneva: United Nations; 2016..
“Quando eu ficava debaixo do viaduto tinha todo mundo me olhando, passando. Tomava [banho] de calcinha e sutiã (...). Tinha uma bica lá, a gente tirava roupa. Ficava pelada mesmo” (PSRM 10).
“É porque no caso a gente tinha vergonha, né. Não tinha privacidade pra tomar banho. Aí, como é que ia fazer?” (EG/PSRM 4).
Já o acesso ao banheiro é quase inexistente. No centro da cidade, apenas o Parque Municipal tem banheiro gratuito. As pessoas que vivem longe do parque, ou mesmo durante a noite quando o parque está fechado, urinam e defecam a céu aberto, seja nos viadutos, atrás de bancas de revistas, perto de árvores, ou mesmo no local onde dormem. Na Rodoviária, como já relatado, cobra-se pela utilização do banheiro. Nesse contexto, os conteúdos normativos dos DHAES também não são assegurados quando se trata do esgotamento sanitário.
“Banca de revista, árvores, viadutos, muitos ao ar livre, você só abaixa a cabeça. O tanto que tá sofrendo que não liga pra mais nada, que desce a calça em qualquer lugar em qualquer hora, muitas das vezes é qualquer hora e aí passa o ônibus” (PSRH 12).
“...tem a rodoviária, mas você paga, nem sempre o bacana da rua tem cinquenta centavos pra pagar banheiro” (EG/PSRH 7).
Essas observações coincidem com o estudo de Walters 2222. Walters V. Urban homelessness and the right to water and sanitation: experiences from India's cities. Water Policy 2014; 16:755-72. sobre pessoas em situação de rua em Nova Délhi, na Índia. Esta pesquisa constatou que muitos indivíduos defecam e urinam ao ar livre próximo de onde dormem. Para lavar as roupas e tomar banho caminham 2km até uma bica. Verifica-se, portanto, que esse grupo social tem os DHAES violados, repercutindo, entre outras coisas, na saúde e na dignidade. Segundo Walters 2222. Walters V. Urban homelessness and the right to water and sanitation: experiences from India's cities. Water Policy 2014; 16:755-72., eles vivem à margem da sociedade e a renda que conseguem não é suficiente para comprar comida e água e, apesar de serem invisíveis, eles têm muitos aspectos de sua vida privada escancarados. A falta de privacidade afeta, especialmente, crianças e mulheres, deixando- as expostas à violência e ao assédio.
“Eu ficava no galpão deitada, cheio de rato, bosta, sujeira, tudo” (PSRM 10).
“E tem gente que dorme ao lado daquilo. Então você fica dormindo ali, respirando aquilo, durante o dia aquelas moscas voando e eles comem ali perto, do lado do negócio [fezes]. Então ali eles fazem todo tipo de necessidade e isso faz um mal danado” (EG/PSRH 7).
“Aí no caso, como eu falei, olhava pro lado, pro outro, aí via que não vinha ninguém, aí aproveitava aquela oportunidade e fazia xixi e cocô. Eu tava dormindo assim num determinado lugar, aí eu ia ali por perto mesmo, não fazia onde eu tava dormindo pra não ficar aquele cheiro, né? Mas fazia por perto mesmo. Tinha medo de ir longe, fora de hora. Medo da violência, principalmente da violência contra mulher” (PSRM 9).
“O ser humano perde tanto o tato da vida que ele não liga mais pra isso. Ele e lixo é, são, viram-se parceiros” (PSRH 12).
Com isso, a qualidade e segurança dos locais utilizados para defecação, e mesmo para fazer a higiene menstrual, ficam comprometidos. Os tecidos utilizados para a limpeza nos dias de menstruação muitas vezes são lavados na mesma fonte de água onde muitos tomam banho. Mais uma vez, observa-se o comprometimento da privacidade e da dignidade da pessoa, afetando, entre outras coisas, a saúde e a segurança pessoal.
“Que eu faço [quando está menstruada]? Pego pano, enrolo ele ali, coloco numa sacola e entro ali dentro [na fonte da praça] pra lavar” (PSRM 4).
Assim, a falta de acesso adequado aos serviços de água e esgotamento sanitário interfere na higiene, abre espaço para o aparecimento de diversas doenças e prejudica a vida da população em situação de rua em todos os aspectos, contribuindo para que fique alijada da sociedade.
Além do local de moradia ser pouco higiênico, essas pessoas não conseguem realizar tarefas simples, como lavar as mãos após urinar ou defecar, devido à ausência do acesso à água. Segundo Bain et al. 1414. Bain R, Cronk R, Hossai R, Bonjour S, Onda K, Wright J, et al. Global assessment of exposure to faecal contamination through drinking water based on a systematic review. Trop Med Int Health 2014; 19:917-27., o simples ato de lavar as mãos com sabão reduz substancialmente a prevalência de doenças como a diarreia. Junto a isso, devido à extrema pobreza em que se encontram, esses indivíduos, muitas vezes, não conseguem assistência médica, aumentando ainda mais a situação de vulnerabilidade e violando o direito à saúde.
“Quando passa mal e vai procurar hospital, não é todo mundo que gosta de atender não (...) tem que chegar limpinho pra ser atendido, se chegar sujo já te olham com cara feia” (EG/PSRH 7).
“Porque se o morador de rua adoecer aqui, ele vai no hospital, eles não aceitam porque o cara chegou sujo, aí você tem que caçar um lugar pra tomar banho, aonde você vai tomar banho? Na Rodoviária, se você não tiver dinheiro você não toma. Na bica, pra você sair daqui pra ir no Horto tomar banho pra depois voltar pro hospital a sua consulta já foi embora. Na Praça da Estação, tomar banho no chafariz a água é retornável, você vai pegar uma doença de pele. Se você for tomar banho em algum outro canto, até você retornar ao hospital, o médico vai falar, a sua ficha já foi cancelada. Você fica com aquela doença, então é assim” (EG/PSRH 3).
Além da falta de acessibilidade, a população em situação de rua enfrenta, cotidianamente, situações de discriminação e violência, principalmente por parte do poder público. Segundo a população em situação de rua, ela é de ordem física e verbal favorecendo, ainda mais, a exclusão. Essa violência, praticada pelo Estado, demonstra a falta de interesse em acolher e integrar essas pessoas na sociedade. Elas perdem o direito a serem sujeitos, são associadas a lixo, àquilo que pode ser descartado, que não tem finalidade, à coisa suja, que tem mau cheiro e que ninguém quer se aproximar. O descaso social contribui para colocá-los ainda mais à margem, excluídos da vida familiar, do trabalho e da própria condição de ser humano.
“Eles geralmente falam que ‘os cachorros vêm de outras cidades pra sujar as nossas, esse tipo de gente não merece ter chance dentro da nossa cidade. Esses mendigos vêm lá da cidade deles pra sujar aqui, temos que colocar o lixo pra fora, some daqui lixo’. Então assim, isso é..., deixa sua autoestima bem lá em baixo aí você acaba que nem muitos aí, acaba caindo na droga, na bebida... Mas a gente que ainda tem um pouco de esperança tenta lutar ainda” (PSRH 5).
“Porque a violência da discriminação os moradores de rua já sofrem. Quando tem uma polícia que podia dar apoio pra esse povo... Os pertences que eles ganham pra dormir na rua, coberta... Eles chegam, tomam tudo... Então esse é o tipo de violência. Quando chega de manhã cedo já vem polícia, carro mesmo da prefeitura, apoiado pela polícia, tomando os pertences” (PSRH 8).
O alcance do DHAES para a população em situação de rua, segundo Walters 2222. Walters V. Urban homelessness and the right to water and sanitation: experiences from India's cities. Water Policy 2014; 16:755-72. vai além das questões técnicas. Exige a compreensão de como a situação de vulnerabilidade dessa população foi criada e é mantida. Segundo o mesmo autor, a falta de acesso a esses serviços e de políticas públicas que abarquem as necessidades dessa população reflete a indiferença e apatia com que o Estado, principal responsável por assegurar os direitos, lida com esse grupo, deixando-o exposto a iniquidades estruturais e sociais.
Princípios dos direitos humanos
“Um morador de rua não entra no Palácio das Artes [teatro da cidade]... Ele vai no Parque Municipal porque o Parque Municipal, vamos dizer... é um espaço público. Se ele tiver sujo ele não vai no Palácio das Artes, se ele tiver sujo não entra no Mercado Central. Quer dizer, então, a rua é pra se sentar, curtir a sua liberdade e têm muitas pessoas que são privadas disso. Desse direito de liberdade” (PSRH 8).
“Se pedir num bar tem que gastar e se num gastar o cara não deixa usar. Sabe por causa do quê? Porque todo mundo tem preconceito a respeito da pessoa que se encontra em situação de rua. Ninguém quer ajudar o morador de rua... quer prejudicar” (EG/PSRH 2).
“Morador de rua fedendo entrar no estabelecimento para pedir um copo d’água? Que isso heim? Não tem cabimento” (EG/PSRH 3).
Vários são os relatos que demonstram que o princípio de não-discriminação/equidade é violado quando se trata da população em situação de rua. Eles não conseguem ter acesso às instalações sanitárias, o que resulta em discriminação no acesso. Além disso, os princípios de informação/transparência e participação social também não se aplicam a esse grupo populacional, que se sente excluído e não é visto como sujeito portador de direito, como demonstram as falas a seguir:
“Não tem divulgação, quando tem divulgação é só entre as grandes classes que é a sociedade. Já nós que tamo na rua, os invisíveis, não tem esse acesso. Nós somos os intocáveis, infelizmente, né? A sociedade vê e sai correndo: ‘Nó! Ali, sai! Tá cheio de bicho’. Então não temos essa... essa informação passada pelo governo não” (PSRH 12).
“Olha, o governo nunca chama e nunca vai chamar morador de rua pra discutir a questão de água. Pra eles nós somos o câncer da sociedade, então eles não vão fazer isso” (PSRH 5).
Em 2015, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania criou o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual para a População em Situação de Rua de Minas Gerais (Comitê Poprua-MG). Esse Comitê, pela primeira vez, abriu espaço para a participação da pessoa em situação de rua com a finalidade de ouvir suas demandas estimulando o diálogo em prol da construção de alternativas que permitam a saída das ruas. Mas, mesmo assim, alguns ainda se sentem sem voz:
“Não tem a quem recorrer quando acontece isso porque você vai na defensoria... Ah! você é morador de rua, qual é a sua voz? Aí você procura um advogado, mas qual é o seu endereço? (...) A Prefeitura tá indo onde a gente dorme recolhendo coberta, documento” (PSRH 5).
“Eu não sou nada (...) eu não tenho direito a nada” (EG/PSRH 5).
O princípio da participação social permite a inserção da população em situação de rua nas discussões sobre a melhoria do acesso aos serviços de água e esgoto, o que pode promover o empoderamento deste grupo social, resultando em mudança da realidade em que vivem e construindo uma prática participativa de gestão da água. Discutir a necessidade de um acesso melhorado à água e ao esgotamento sanitário para, e com, a população em situação de rua, é auxiliar na construção de espaço urbano mais democrático em que as necessidades de todos são satisfeitas 2323. Linton J. The human right to what? Water, rights, humans, and the relation things. In: Sultana F, Loftus A, editors. The right to water: politics, governance and social struggles. New York: Earthscan; 2012; p. 45-60.,2424. Harvey D. The right to the city. New Left Rev 2008; 53:23-40..
Segundo Linton 2323. Linton J. The human right to what? Water, rights, humans, and the relation things. In: Sultana F, Loftus A, editors. The right to water: politics, governance and social struggles. New York: Earthscan; 2012; p. 45-60., os DHAES devem ser compreendidos como uma questão comum a todos. Quando apropriados por movimentos sociais e construídos sobre uma base democrática e equitativa, os DHAES podem ser um mecanismo para repensar as estruturas do mundo contemporâneo, rompendo com a organização atual do sistema de gestão do saneamento, que produz iniquidades. Acredita-se que, quando apropriado de forma coletiva, os DHAES podem ser um instrumento de transformação social, gerando empoderamento, promovendo saúde, dignidade e cidadania. Dessa forma, a participação social no processo de gestão é fortalecida trazendo para a comunidade a decisão sobre a gestão de um bem público, limitado e essencial à vida.
Além dos princípios de discriminação/equidade e participação social, o princípio da responsabilidade também não está sendo contemplado no que se refere ao DHAES. Os vários relatos dos participantes descritos neste texto demonstram que o Estado ainda não se responsabiliza pelo acesso a esses serviços para essa população, o qual está baseado na caridade, e os poucos locais públicos que existem na cidade não conseguem suprir a demanda. Nessa circunstância, a população em situação de rua se sente ainda mais discriminada.
“Eu já vi os militares pegando, batendo e muito, só porque foi na árvore ali e mijou, o policial passou e viu ‘ei aí não é banheiro não!’” (PSRH 7).
Portanto, como se não bastasse a ausência do Estado e a falta de políticas capazes de assegurar os direitos a essa população, ela ainda sofre discriminação, violência e criminalização por parte da sociedade e de servidores do aparato público, como policiais municipais e militares, o que amplifica a situação de vulnerabilidade.
Considerações finais
Observa-se que a população em situação de rua sofre diferentes tipos de violações dos DHAES, assim como de outros direitos, como o direito à cidade, à moradia e à saúde. A violação desses direitos tem repercussões negativas na vida econômica e social desse grupo populacional, aumentando a discriminação e a exclusão. Assim, é importante promover o reconhecimento do acesso à água e ao saneamento como direito, por parte do Estado.
Para esse grupo social, a principal necessidade é sanar a questão da moradia. No entanto, a falta de acesso a redes de abastecimento de água e esgoto nas ruas afeta a população do município como um todo, o que requereria assumi-la como uma questão a ser discutida amplamente pela sociedade, na perspectiva da qualidade de vida nas cidades. Além disso, uma vez que os direitos são interdependentes e inseparáveis, não há como negar que a violação do direito à moradia repercute em violação de outros direitos.
O quadro de vulnerabilidade aponta que questões não só individuais, mas também contextuais e programáticas, influenciam a situação de vulnerabilidade de um indivíduo ou grupo social. Nesse contexto, ações pautadas nos direitos humanos teriam maior efetividade na eliminação das condições que aumentam e perpetuam essa situação, uma vez que elas teriam de abarcar os determinantes sociais como educação, moradia e acesso a serviços de saúde. Além disso, tendo em vista os princípios dos direitos humanos como participação, discriminação social e responsabilização, os grupos sociais marginalizados seriam estimulados a participar da elaboração e implementação dessas políticas, e o Estado poderia se responsabilizar pela garantia dos diretos.
Com isso, os DHAES podem ser apropriados pelas populações vulneráveis, para legitimar a luta não só por acesso a esses serviços, mas também por dignidade humana, exigindo justiça social e ambiental. Para isso, os conteúdos normativos dos direitos humanos e os princípios dos direitos humanos devem ser os objetos fundantes das políticas públicas e da prestação dos serviços. Assim, a água passa a ser entendida como um bem e serviço social e cultural, além de elemento intrínseco ao processo de produção e reprodução social.
Portanto, para as pessoas em situação de rua, uma abordagem baseada em direitos que favoreçam o acesso à água e ao esgotamento sanitário pode possibilitar uma transformação social e facilitar o acesso a outros direitos, modificando os determinantes sociais, estimulando a inclusão social e a promoção da saúde, e reduzindo a situação de vulnerabilidade.
Referências
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- 24Harvey D. The right to the city. New Left Rev 2008; 53:23-40.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Mar 2018
Histórico
- Recebido
13 Fev 2017 - Aceito
17 Jul 2017