Resumo:
Este estudo busca analisar o fluxo de pacientes oncológicos de mama que são atendidos fora de seu domicílio de residência. Foram considerados as internações hospitalares e os tratamentos por quimioterapia e radioterapia para neoplasias malignas na mama, no âmbito do Sistema Único de Saúde, entre os anos de 2014 e 2016. Foi empregado o método de análise de redes, considerando o município de residência e de tratamento como nós de um grafo, que consiste em um “estudo de redes organizacionais de sistemas de saúde”. Além disso, distância e tempo de deslocamento foram estimados por meio da melhor rota viável, segundo a malha rodoviária do projeto Open Street Maps. Os resultados apontam que 51,34% dos pacientes de câncer de mama no Brasil foram atendidos fora de seu município de residência, seguindo fluxos que são regionalizados e que preservam fronteiras estaduais, em geral, em direção a capitais ou a cidades de grande porte. Por outro lado, os resultados também apontam exceções específicas, visto que alguns municípios detêm um grau de proeminência que supera os limites estaduais. O tempo de deslocamento entre município de residência e município de atendimento apresentou medianas próximas a três horas, e 75% dos deslocamentos se dão em até 324km para tratamento por quimioterapia, 287km para tratamento por radioterapia e 282km para internações. Esses resultados são indicativos das dificuldades de acesso aos serviços de oncologia, o que potencialmente agrava a experiência do adoecimento oncológico em termos de impacto no indivíduo e em sua família.
Palavras-chave:
Neoplasias de Mama; Acesso aos Serviços de Saúde; Sistemas de Informação
Abstract:
This study aims to analyze the flow of breast cancer patients treated outside of their municipality of residence, based on hospital admissions and chemotherapy and radiotherapy in the Brazilian Unified National Health System (SUS) from 2014 to 2016. Network analysis was used, considering the municipality of residence and of treatment as nodes in a graph, thus consisting of a “health system organizational network study”. In addition, highway distances and travel time were estimated via the best feasible route according to the Open Street Maps highway project. According to the results, 51.34% of breast cancer patients in Brazil were treated outside their municipality of residence, following regionalized flows that respect state borders, generally towards the state capital or other large cities. The results also point to specific exceptions, where some municipalities occupy outstanding positions that extrapolate state borders. Median travel time from the municipality of residence to the municipality of care was nearly 3 hours, and 75% of trips totaled 324km for chemotherapy, 287km for radiotherapy, and 282km for hospitalizations. These results are indicative of the difficulties in access to oncology services, potentially aggravating the illness experience with cancer in terms of impact on the individuals and their families.
Keywords:
Breast Neoplasms; Health Services Accessibility; Information Systems
Resumen:
El objetivo de este estudio fue analizar el flujo de pacientes oncológicos con cáncer de mama que son atendidos fuera de su domicilio de residencia. Se consideraron internamientos hospitalarios, tratamientos por quimioterapia y radioterapia para neoplasias malignas de mama, dentro del ámbito del Sistema Único de Salud brasileño, entre los años de 2014 a 2016. Se empleó el método de análisis de redes, considerando como nudos de un grafo el municipio de residencia y el del tratamiento, formándose de esta forma un “estudio de redes organizativas de sistemas de salud”. Asimismo, se estimaron las distancias viales y el tiempo de desplazamiento, a través de la mejor ruta de carreteras, según la red de carreteras del proyecto Open Street Maps. Los resultados apuntan que un 51,34% de los pacientes con cáncer de mama en Brasil fueron atendidos fuera de su municipio de residencia, siguiendo flujos regionalizados y dentro de sus fronteras estatales, en general, en dirección a las capitales de las mismas o grandes ciudades. Por otro lado, los resultados también muestran excepciones específicas, donde algunos municipios detentan un grado de relevancia superando las fronteras estatales. El tiempo de desplazamiento entre el municipio de residencia y el municipio de atención presentó unas medias cercanas a las 3 horas, y en un 75% de los desplazamientos se recorrieron hasta 324km para recibir tratamiento de quimioterapia, 287km para el tratamiento de radioterapia y 282km para internamientos. Estos resultados son indicativos de las dificultades de acceso a los servicios de oncología, lo que agrava potencialmente la experiencia de la enfermedad oncológica en términos de impacto en el individuo y su familia.
Palabras-clave:
Neoplasias de la Mama; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Sistemas de Información
Introdução
Estima-se que o câncer seja responsável por 13% dos óbitos no mundo em 2008 11. World Health Organization. WHO Cancer Fact Sheet 297. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/ (acessado em 20/Jul/2016).
http://www.who.int/mediacentre/factsheet... , levando 7,6 milhões de pessoas 11. World Health Organization. WHO Cancer Fact Sheet 297. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/ (acessado em 20/Jul/2016).
http://www.who.int/mediacentre/factsheet... à morte anualmente, uma população de tamanho semelhante à da Cidade do México (México). Não obstante, estima-se que o número de casos de câncer aumente em 70% nas próximas duas décadas 11. World Health Organization. WHO Cancer Fact Sheet 297. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs297/en/ (acessado em 20/Jul/2016).
http://www.who.int/mediacentre/factsheet... . Os tipos de câncer mais incidentes no mundo são o de pulmão (1,8 milhão de casos), o de mama (1,7 milhão de casos), o de intestino (1,4 milhão de casos) e o de próstata (1,1 milhão de casos) 22. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2017..
O câncer configura-se no Brasil como um problema de saúde pública de dimensão nacional. A mortalidade por essa doença foi responsável por 16% dos óbitos - 3% a mais que a média mundial - segundo dados do Ministério da Saúde em 2014 (Departamento de Informática do SUS - DATASUS. http://www2.datasus.gov.br). De acordo com estimativas do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), para o biênio 2018-2019, 600 mil novos casos surgirão a cada ano no Brasil 22. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2017..
Com mais de cem tipos existentes da doença, a redução da mortalidade no câncer pode ser efetivamente obtida por meio de diagnóstico precoce e rápido início do tratamento 33. Youlden DR, Cramb SM, Dunn NAM, Muller JM, Pyke CM, Baade PD. The descriptive epidemiology of female breast cancer: an international comparison of screening, incidence, survival and mortality. Cancer Epidemiol 2012; 36:237-48.. A Política Nacional de Prevenção e Controle de Câncer (Portaria nº 874/201344. Ministério da Saúde. Portaria nº 874, de 16 de maio de 2013. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2013; 17 mai.) designa que o tratamento será realizado em estabelecimentos de saúde habilitados, como o Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) ou Unidade de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon). No Brasil, há 288 unidades e centros em oncologia cadastrados. A responsabilidade de organizar o atendimento e o encaminhamento do paciente portador de câncer fica a cargo das secretarias estaduais e municipais.
Um dos maiores problemas do atendimento aos pacientes tem sido a falta de uma rede consolidada de referência para o diagnóstico e o tratamento precoces de casos, o que pressupõe o acesso aos serviços em portas de entrada descentralizadas do sistema e o encaminhamento a unidades de tratamento próximas ao local de residência dos pacientes 55. Almeida PF, Giovanella L, Mendonça MHM, Escorel S. Desafios à coordenação dos cuidados em saúde: estratégias de integração entre níveis assistenciais em grandes centros urbanos. Cad Saúde Pública 2010; 26:286-98.. A distância e a presença de polos de atenção são, portanto, elementos-chave para o acesso aos serviços que, por sua vez, configuram regiões do ponto de vista funcional, bem como de seus fluxos internos 66. Corrêa RL. Interações espaciais. In: Castro IE, Gomes PCC, Corrêa RL, organizadores. Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1998. p. 279-318..
A regionalização do sistema de saúde no país apresenta diversos fatores que tornam complexa a institucionalização de uma rede homogênea de serviços. Dentre esses, destacam-se a heterogeneidade territorial, a formalização de responsabilidades institucionais e a regulação centralizada com a manutenção da autonomia dos governos locais que, em última análise, é uma questão delicada em termos político-administrativos 77. Vian AL, Lima LD, Ferreira MP. Condicionantes estruturais da regionalização na saúde: tipologia dos Colegiados de Gestão Regional. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2317-232.,88. Lima LD, Viana Ald'A, Macgado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, et al. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:2881-92..
Do ponto de vista do acesso geográfico, alguns autores, por meio de técnicas distintas, realizaram trabalhos de mapeamento do fluxo de pacientes e identificação de redes de atendimento para tratamento de saúde 99. Aguiar FP, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pinheiro RS. Confiabilidade da informação sobre município de residência no Sistema de Informações Hospitalares - Sistema Único de Saúde para análise do fluxo de pacientes no atendimento do câncer de mama e do colo do útero. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2013; 21:197-200.,1010. Grabois MF, Oliveira EXG, Carvalho MS. Assistência ao câncer entre crianças e adolescentes: mapeamento dos fluxos origem-destino no Brasil. Rev Saúde Pública 2013; 47:368-78,1111. Oliveira EXG, Melo ECP, Pinheiro RS, Noronha CP, Carvalho MS. Acesso à assistência oncológica: mapeamento dos fluxos origem-destino das internações e dos atendimentos ambulatoriais. O caso do câncer de mama. Cad Saúde Pública 2011; 27:317-26.,1212. Souza FS, Silva LMFR, Roveri E. Desenvolvimento de um sistema para o gerenciamento das internações e fluxo de pacientes entre hospitais e cidades de uma região. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Informática em Saúde. Campos do Jordão: Universidade Federal de Minas Gerais; 2008. p. 1-6.. Na prática, a distância dos deslocamentos populacionais em busca de atendimento aumenta à medida que aumenta a complexidade do serviço de saúde procurado. Alguns trabalhos apontam que essas redes de deslocamento de pacientes apresentam sobreposição em função da especialidade 1010. Grabois MF, Oliveira EXG, Carvalho MS. Assistência ao câncer entre crianças e adolescentes: mapeamento dos fluxos origem-destino no Brasil. Rev Saúde Pública 2013; 47:368-78,1111. Oliveira EXG, Melo ECP, Pinheiro RS, Noronha CP, Carvalho MS. Acesso à assistência oncológica: mapeamento dos fluxos origem-destino das internações e dos atendimentos ambulatoriais. O caso do câncer de mama. Cad Saúde Pública 2011; 27:317-26..
Considerando as necessidades apontadas de melhorias no ordenamento do território para estruturação do atendimento ao fluxo de pacientes oncológicos, o objetivo deste estudo é analisar o fluxo de pacientes para internação e tratamento de neoplasias malignas na mama, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), entre os anos de 2014 e 2016. Para isso, serão identificados os municípios de origem e de destino de pacientes para internações hospitalares, bem como para tratamento por quimioterapia e por radioterapia, conforme a metodologia capaz de descrever as principais estruturas da rede de atendimento desse tipo de câncer no país.
Métodos
Nas Ciências da Saúde, a metodologia de análise de redes supre a necessidade de utilização de técnicas específicas que possibilitem descrever e estudar as características iminentemente relacionais dos sistemas de saúde, comumente ignoradas por métodos que pressupõem a independência das unidades observadas.
Considerando a tipologia de estudos de redes descrita na obra de revisão de Luke & Harris 1313. Luke DAD, Harris JK. Network analysis in public health: history, methods, and applications. Annu Rev Public Health 2007; 28:69-93., o presente trabalho se enquadra como um estudo da “estrutura interorganizacional de sistemas de saúde”, com o diferencial da aplicação de diversas métricas de modularidade e da formação de comunidades. Não são analisadas redes de interações sociais ou de transmissão de doenças, mas de entes organizacionais (neste caso, os municípios). Desse modo, é analisada uma rede formada por municípios que enviam e recebem pacientes. Os nós da rede são os municípios que enviam ou recebem pacientes, e as arestas entre os nós da rede são estabelecidas por meio desse fluxo de pacientes, ponderadas pela quantidade daqueles que foram enviados no período considerado.
A noção de redes e as metodologias específicas para sua análise têm atraído interesse considerável com a maior disponibilidade de dados relacionais advindos de redes sociais, sejam analógicas ou digitais 1414. Barabasi A-L. Network science. New York: Cambridge University Press; 2016.,1515. Scott J. Social network analysis: a handbook. 2nd Ed. London: Sage Publications; 2000.. De maneira geral, as metodologias voltadas ao estudo de redes buscam a detecção de padrões e regularidades entre os relacionamentos de unidades que interagem. Nessa perspectiva, a unidade de análise principal de redes está nas relações, e não somente nas unidades individuais e independentes, como nos métodos estatísticos e epidemiológicos clássicos 1616. Wasserman S, Faust K. Social network analysis: methods and applications. Melbourne: Cambridge Press; 1994.,1717. Valente TW. Social networks and health: models, methods, and applications. New York: Oxford University Press; 2010..
Descrição dos dados
As bases de dados utilizadas para quantificação das internações e tratamento de pacientes de câncer no Brasil foram obtidas a partir do Sistema de Internações Hospitalares (SIH) e do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) do DATASUS (http://www2.datasus.gov.br), para os anos de 2014 a 2016. Dessa forma, o escopo deste trabalho se limita aos pacientes tratados no SUS e em estabelecimentos de saúde conveniados.
As Autorizações de Internações Hospitalares (AIH) foram filtradas com base no diagnóstico principal de código “C50” da Classificação Internacional de Doenças - 10ª revisão (CID-10), referente à neoplasia maligna da mama. Os registros de AIH do tipo “5” (autorização de continuidade da internação) foram descartados.
Para os registros sobre procedimentos ambulatoriais de quimioterapia e radioterapia, foram utilizadas as bases de dados específicas das autorizações de procedimentos de alta complexidade (APAC) de quimioterapia e radioterapia, filtrando-se os registros com diagnóstico primário de código “C50”.
Todos os dados foram obtidos junto ao DATASUS no formato DBC, convertidos para o formato DBF e tabulados no pacote estatístico R versão 3.4.1 (http://www.r-project.org). As tabelas de distribuição de frequências de município de origem e de destino criadas no R foram exportadas para o software Gephi versão 0.9.2 (https://gephi.org/users/download/), em que foram criados os sociogramas e foi realizado o cálculo das medidas descritivas das redes.
Com base na tabela de origem e destino dos pacientes de cada rede, foram obtidas estimativas das distâncias rodoviárias e do tempo de viagem entre os municípios, por meio do pacote OSRM versão 3.0.1 (https://github.com/Project-OSRM/node-osrm/issues/80). Essas medidas são baseadas na melhor rota possível entre as coordenadas da sede dos municípios de origem e destino, utilizando a malha rodoviária do projeto Open Street Maps.
O relacionamento entre os municípios é caracterizado como envio ou recebimento de pacientes para internação hospitalar e tratamento por quimioterapia ou radioterapia. Dessa maneira, os relacionamentos entre os municípios são direcionais e assimétricos (partindo do município de origem para o de destino), bem como ponderados pela quantidade de pacientes observados no período, em cada par de municípios. Cabe ressaltar que, além de enviar e receber pacientes, um mesmo município também recebe seus residentes em unidades de saúde (fluxo local). As medidas descritivas das redes foram calculadas apenas com base nos municípios que apresentam algum relacionamento, mesmo que seja com ele mesmo (fluxo local). Municípios que não enviaram e não receberam nenhum paciente no período foram descartados.
Foram arrolados como atributos básicos dos relacionamentos os seguintes: município de residência, município de tratamento, número de internações ou tratamentos no período, distância rodoviária entre os municípios e tempo estimado de viagem. Nos casos de coincidência entre município de origem e de destino, as estimativas de distância e tempo de viagem foram desconsideradas.
Análise da estrutura da rede
A metodologia proposta por Blanchet & James 1818. Blanchet K, James P. How to do (or not to do) ... a social network analysis in health systems research. Health Policy Plan 2012; 27:438-46. para o estudo de redes de relacionamentos em sistemas de saúde de países em desenvolvimento foi adotada neste trabalho, segmentando a análise pela descrição dos dados, pela definição dos atores e por relacionamentos e, por fim, pela análise estrutural da rede.
Para caracterização descritiva da rede, algumas medidas globais (referentes à totalidade da rede) e individuais (para cada município) foram calculadas para as três redes. O Quadro 1 apresenta definições breves de algumas medidas aplicadas ao contexto desta pesquisa. Detalhes sobre o cálculo dessas medidas podem ser encontrados nas obras de Wasserman & Faust 1616. Wasserman S, Faust K. Social network analysis: methods and applications. Melbourne: Cambridge Press; 1994. e Valente 1717. Valente TW. Social networks and health: models, methods, and applications. New York: Oxford University Press; 2010..
Resultados
A Tabela 1 apresenta os resultados obtidos para as redes de internações, quimioterapia e radioterapia.
Conforme pode ser observado, entre 2014 e 2016, foram aprovadas 177.841 AIHs relacionadas a câncer de mama, 4.348.404 APACs de quimioterapia e 200.929 APACs de radioterapia. Desse total, 48,66% das AIHs, 48,05% das APACs de quimioterapia e 42,61% das APACs de radioterapia foram atendidas no próprio município de residência. Assim, 52,15% dos pacientes de câncer de mama no Brasil foram atendidos fora de seu município de residência.
Em geral, os municípios tendem a se relacionar com três a quatro municípios para envio ou recebimento de pacientes; contudo, observa-se certa variabilidade nessa distribuição. As medidas de grau médio de saída e grau médio de entrada apresentaram concentração em valores inferiores, conforme indicado pelo coeficiente de assimetria positivo. Apenas a medida de grau médio de saída apresenta valores mais concentrados em torno da média. Esse comportamento sugere que boa parte dos municípios se relacionam com outros municípios para o envio de pacientes, e apenas alguns se relacionam para o recebimento destes. Essa tendência se assemelha ao se considerarem os graus ponderados. Na rede de AIHs, 75% dos municípios estabeleceram até 18 viagens por município conectado no período observado.
O diâmetro das redes variou entre 13 (AIH), 12 (APAC quimioterapia) e 8 (APAC radioterapia), indicando que a rede de radioterapia tende a ser mais coesa, ao passo que a rede de AIH tende a ser mais esparsa.
As três redes apresentaram altos valores de modularidade, o que indica uma tendência de formação de clusters de municípios para envio e recebimento de pacientes. O algoritmo identificou 40 comunidades na rede de AIHs, 37 comunidades na rede de APAC quimioterapia e 39 comunidades na rede de APAC radioterapia, o que pode ser considerado um número semelhante de comunidades, ainda que suas conformações possam ser diferentes.
As Figuras 1, 2 e 3 apresentam a distribuição espacial da rede de internações, de quimioterapia e de radioterapia, respectivamente. As linhas indicam a conexão entre os municípios, representados por círculos cujo diâmetro reflete proporcionalmente o grau ponderado de entrada.
Pode-se perceber que as conexões entre os municípios tendem a preservar as fronteiras estaduais, salvo algumas exceções, em geral em direção a capitais ou cidades de grande porte. Observa-se que a Região Nordeste tende a apresentar dinâmicas bem demarcadas pela divisão estadual, com um fluxo de cidades do interior para as capitais, com pouco ou nenhum fluxo entre as cidades do interior. Já nas outras regiões, como a Sudeste, o fluxo entre cidades do interior é presente. Na rede de internações para o Estado de Minas Gerais, por exemplo, um componente (um conjunto de nós integrados entre si, sem relacionamento com demais nós da rede) cujo município mais proeminente é Montes Claros não apresenta fluxo com a capital, Belo Horizonte. Percebe-se que a rede de quimioterapia é mais densa, apresentando mais fluxos interestaduais e interregionais que as demais redes, ao passo que as outras redes apresentam fluxos mais hierarquizados.
Ao se ordenarem os municípios pelo grau de entrada, Barretos (São Paulo) apresenta o maior grau de entrada nas três redes, recebendo pacientes de 617 municípios para internações, de 748 municípios para tratamentos por quimioterapia e de 540 municípios para tratamentos por radioterapia. Em seguida, nesse ranking, os dez primeiros resultados são ocupados por capitais estaduais. Ao se eliminarem as capitais, nota-se a proeminência dos municípios de Jaú (São Paulo), Cascavel (Paraná), Muriaé (Minas Gerais) e Campinas (São Paulo) por receberem pacientes de um grande número de municípios para internações hospitalares e tratamento.
Novamente, o Município de Barretos está em primeiro lugar no ranking das três redes, segundo a medida de autocentralidade. Ao se eliminarem as capitais desse ranqueamento, destaca-se também a proeminência dos municípios de Jaú, Campinas, São José do Rio Preto (São Paulo), Cascavel, Muriaé, Botucatu (São Paulo), Ribeirão Preto (São Paulo) e Passo Fundo (Rio Grande do Sul), dentre outros.
O tempo de deslocamento entre município de residência e município de atendimento apresentou medianas próximas a 3h nas três redes. Considerando o terceiro quartil desses tempos, a rede de APAC quimioterapia apresentou o valor de 5h, ao passo que as outras redes apresentaram valores próximos a 4:30h.
Considerando as estimativas de distâncias percorridas entre os pares de município, pode-se notar que as três redes apresentam concentrações de valores inferiores. No entanto, ao se considerar o terceiro quartil das distribuições, revela-se que 75% dos pares percorrem até 324km para tratamento por quimioterapia, 287km para tratamento por radioterapia e 282km para internações.
A Figura 4 apresenta uma série de boxplots da estimativa da distância rodoviária percorrida, separada por unidade federativa de origem, para as internações hospitalares. Distâncias superiores a 3.000km foram desconsideradas. Observa-se que as maiores medianas de distância percorrida estão nos estados das regiões Norte e Nordeste. No Amapá, em Roraima e no Amazonas, mais de 50% das internações estão sujeitas a deslocamentos superiores a 500km. No Estado do Pará, 75% das internações hospitalares envolvem deslocamentos de até 1.000km. Já os estados das regiões Sudeste e Sul apresentam necessidades de deslocamento, em geral, inferiores a 250km.
Boxplots da estimativa da distância rodoviária percorrida por Unidade da Federação de origem.
Discussão
A experiência do adoecimento oncológico é agravada pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde, e se estende não só ao paciente, mas cria tensionamentos adicionais também aos familiares, aos amigos e aos profissionais de saúde 1919. Sontag S. A doença como metáfora. São Paulo: Edições Graal; 1984.. Os resultados deste trabalho apontam que essa condição pode atingir 51,34% dos pacientes de câncer de mama no âmbito do SUS, impondo deslocamentos superiores a três horas de viagem na metade dos casos.
O impacto da doença sobre o indivíduo e a necessidade de manter vínculos com os serviços de saúde podem obrigar o paciente a se mudar, mesmo que temporariamente, para cidades com oferta e melhores condições de tratamento, provocando rupturas de redes sociais de apoio.
Este estudo utilizou uma metodologia de análise de redes que apresenta recursos para a caracterização e a predição de conjuntos de dados de diferentes naturezas. Pode-se afirmar que sua origem encontra-se na teoria matemática dos grafos. Contudo, se diferencia por sua natureza pragmática, já que envolve aspectos computacionais, gráficos e empíricos, além do universo teórico matemático 1111. Oliveira EXG, Melo ECP, Pinheiro RS, Noronha CP, Carvalho MS. Acesso à assistência oncológica: mapeamento dos fluxos origem-destino das internações e dos atendimentos ambulatoriais. O caso do câncer de mama. Cad Saúde Pública 2011; 27:317-26.,1313. Luke DAD, Harris JK. Network analysis in public health: history, methods, and applications. Annu Rev Public Health 2007; 28:69-93.. É importante notar que trabalhos de outras áreas na saúde já têm adotado claramente a metodologia de análise de redes 2020. Sousa LMO, Araújo EM, Miranda JGV. Caracterização do acesso à assistência ao parto normal na Bahia, Brasil, a partir da teoria dos grafos. Cad Saúde Pública 2017; 33:e00101616..
Constructos advindos da análise de redes têm sido aplicados em diferentes tipologias de populações para melhor compreender a disseminação de comportamentos, ideias ou mesmo doenças, além de estudar a efetividade de métodos de controle. De modo semelhante, esta metodologia pode ser aplicada efetivamente na análise da organização de sistemas de saúde 1313. Luke DAD, Harris JK. Network analysis in public health: history, methods, and applications. Annu Rev Public Health 2007; 28:69-93.,2121. Borgatti SP, Foster PC. The network paradigm in organizational research: a review and typology. J Manage 2003; 29:99-1013..
O fluxo de pacientes de câncer no Brasil tem sido abordado por diferentes metodologias, como na análise de itinerários terapêuticos e na análise da oferta, do acesso e da demanda de tratamento 2222. Ribeiro MGM, Santos SMR, Teixeira MTB. Itinerário terapêutico de mulheres com câncer do colo do útero: uma abordagem focada na prevenção. Rev Bras Cancerol 2011; 57:48-91.,2323. Azevedo e Silva G, Bustamante-Teixeira MT, Aquino EML, Tomazelli JG, Dos-Santos-Silva I. Acesso à detecção precoce do câncer de mama no Sistema Único de Saúde: uma análise a partir dos dados do Sistema de Informações em Saúde. Cad Saúde Pública 2014; 30:1537-50.. Os trabalhos de Oliveira et al. 1111. Oliveira EXG, Melo ECP, Pinheiro RS, Noronha CP, Carvalho MS. Acesso à assistência oncológica: mapeamento dos fluxos origem-destino das internações e dos atendimentos ambulatoriais. O caso do câncer de mama. Cad Saúde Pública 2011; 27:317-26. e Mancini 2424. Mancini DVG. Fluxo da assistência oncológica em Minas Gerais a partir das informações sobre os óbitos por câncer de mama em mulheres [Dissertação de Mestrado]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora; 2015. apresentam resultados específicos sobre o câncer de mama, ainda que se restrinjam a uma unidade federativa específica ou adotem metodologias diferenciadas. Esses e outros trabalhos adotam, em geral, distâncias euclidianas para medida de distância de deslocamento, ao passo que o presente estudo adota uma estimativa da distância rodoviária, buscando evidenciar de modo mais realístico as distâncias impostas aos pacientes que são atendidos fora de seu domicílio de residência.
O método de análise de redes aplicado no diagnóstico organizacional do fluxo de pacientes permitiu abordar novos aspectos sobre o atendimento de pacientes de câncer de mama no Brasil, medindo e comparando as redes de internações e tratamentos. A descrição dessas redes revela que elas assumem formatos diferenciados no território nacional, apresentando especificidades quanto a seu diâmetro e densidade.
Enquanto a medida de grau médio de entrada reflete a centralidade de um município de acordo com a quantidade de municípios dos quais ele recebe pacientes, a medida de autocentralidade destaca a centralidade de um município na rede, considerando o quanto ele se conecta com municípios da rede que também apresentam uma relativa alta medida de centralidade 1616. Wasserman S, Faust K. Social network analysis: methods and applications. Melbourne: Cambridge Press; 1994.. Dessa maneira, esta última medida é capaz de revelar quais municípios apresentam um nível de especialização e referência na rede capaz de captar pacientes de outros grandes centros de internação e tratamento, como capitais estaduais.
As medidas de centralidade obtidas pelas capitais parecem demonstrar avanços em termos da regionalização e hierarquização dos serviços do SUS, pelo menos ao nível de Unidades da Federação (UF) 1010. Grabois MF, Oliveira EXG, Carvalho MS. Assistência ao câncer entre crianças e adolescentes: mapeamento dos fluxos origem-destino no Brasil. Rev Saúde Pública 2013; 47:368-78. Contudo, a medida específica de autocentralidade revela a proeminência de algumas cidades do interior dos estados, como Barretos), na captação de pacientes advindos de outros grandes centros de tratamento e internação, um comportamento que necessita ser avaliado à luz da regionalização preconizada pelos planos diretores estaduais de regionalização.
Especificamente, no caso de Barretos, a rede observada é composta de 540 municípios de diversos estados, o que sugere que a excelência de tratamento de câncer torna o município um centro de referência nacional. Possivelmente, a regionalização com implantação de centros de tratamento similares poderia tornar o acesso geográfico menos dispendioso aos usuários.
No Brasil, existem 438 regiões de saúde. Em alguns estados, foram conformadas mesorregiões de saúde, que se propõem a agrupar conjunto de regiões em busca de oferta de serviços com maior grau de complexidade. O presente estudo apontou 40 comunidades para internações, 37 para quimioterapia e 39 para radioterapia. Com base nos resultados da Figura 1, observa-se a conformação de, pelo menos, uma rede em cada UF. Contudo, no Sul e Sudeste do país, se concentra o maior volume de comunidades. Por um lado, esses resultados evidenciam a importância dos centros implantados nas capitais e a influência dos governos estaduais na oferta dos serviços. Por outro lado, impõem maior investimento no processo de descentralização de municípios com capacidade gerencial para implantação de centros de tratamento e possibilidade de acesso geográfico otimizado à população coberta.
A quantidade proporcional de pacientes que precisam se deslocar para fora do município de residência para tratamento por quimioterapia e radioterapia é semelhante à de deslocamento para internações hospitalares. Contudo, ao se considerar a frequência com que esses tratamentos necessitam ser realizados no ciclo terapêutico, torna-se preocupante o potencial impacto desse deslocamento na qualidade de vida das mulheres em tratamento. A elevada distância rodoviária percorrida pelos pacientes para internações e tratamento cria dificuldades adicionais ao próprio tratamento e à recuperação pós-cirúrgica.
As estimativas das distâncias rodoviárias percorridas por esses pacientes apontam para uma grande disparidade regional no Brasil. Enquanto os estados das regiões Norte e Nordeste apresentaram maiores deslocamentos rodoviários, principalmente para a Região Sudeste, os estados das regiões Sudeste e Sul apresentam menores deslocamentos necessários para internações e tratamento. Esse comportamento reflete a concentração de unidades de saúde de média e alta complexidade nessas regiões.
Seria possível supor, em princípio, que as distâncias percorridas são maiores em pares de municípios com menor fluxo de pacientes e que as distâncias são menores entre pares de municípios com maior fluxo. Contudo, apesar de o teste de correlação de Spearman entre essas medidas ser significante e negativo nas três redes, seus valores variam entre -0,20 e -0,40. Isso indica que, em boa parte dos pares, a distância entre os municípios não preserva relação com o número de pacientes em deslocamento, conforme ilustrado na Figura 5. Nota-se que um grupo de municípios percorre menores distâncias com grande variação na quantidade de pacientes transportados. Já um outro grupo com menor número de pacientes transportados percorre maiores distâncias.
Relação entre fluxo de pacientes (Autorização de Internação Hospitalar - AIH) e distância rodoviária estimada.
Compreende-se que o deslocamento para acesso a serviços de saúde de média e alta complexidade é esperado em um sistema de saúde hierarquizado. Contudo, os fluxos não previstos e as longas distâncias percorridas pelos pacientes em tratamento evidenciam a necessidade de melhor atuação sobre o planejamento e a regulação dessas redes.
Cabe destacar que a qualidade dos dados sobre local de residência encontrada na AIH e APAC pode apresentar variações, apesar de pesquisa específica sobre a confiabilidade do local de residência para câncer de mama e colo do útero apontar uma confiabilidade de 80% 99. Aguiar FP, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pinheiro RS. Confiabilidade da informação sobre município de residência no Sistema de Informações Hospitalares - Sistema Único de Saúde para análise do fluxo de pacientes no atendimento do câncer de mama e do colo do útero. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2013; 21:197-200..
Como limitação à abrangência deste estudo, os sistemas de informação em saúde utilizados são restritos aos pacientes atendidos no âmbito do SUS, não sendo considerados os pacientes oncológicos atendidos pela rede de saúde suplementar. Essas informações podem tornar ainda mais evidente o baixo deslocamento de pessoas em grandes centros e o maior deslocamento de pacientes nas regiões do Brasil com baixa oferta de atendimento de câncer por planos de saúde.
Percebe-se que alguns fluxos inesperados podem comprometer planos existentes de regionalização da saúde, criando áreas de captação de pacientes muito além dos limites estaduais. Ao preconizar que as regiões de saúde sejam coincidentes geograficamente com as unidades federativas, impõe-se uma necessidade artificial nas centrais de regulação. Isso faz com que pacientes de um estado se desloquem desnecessariamente para sua respectiva capital ou polo regional, embora pudessem ser atendidos em unidades de saúde mais próximas, localizadas em unidades federativas vizinhas.
O estudo de redes específicas para tipos de diagnósticos e regiões, a confrontação entre comunidades detectadas e normatizações existentes de hierarquização e regiões de saúde e, ainda, estudos temporais de redes que evidenciem a conformação e o planejamento das redes podem detalhar e fazer avançar o conhecimento sobre o ordenamento das redes de atendimento à saúde no câncer de mama.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Jul 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
08 Maio 2018 - Revisado
18 Fev 2019 - Aceito
21 Fev 2019