Resumo:
O Art. 217-A da Lei nº 12.015/2009 definiu como crime de estupro de vulnerável a conjunção carnal ou outro ato libidinoso praticados com menor de 14 anos. Diante da baixa idade de início da atividade sexual observada na atualidade, objetivamos neste estudo compreender a concepção de adolescentes acerca da iniciação sexual, da violência sexual e da lei que a tipifica como “estupro de vulnerável”. Utilizamos método qualitativo por meio de 13 grupos focais com 132 estudantes do Ensino Médio de escolas públicas e privadas do Município do Rio de Janeiro, Brasil. A análise dos dados foi realizada com apoio do software webQDA, em uma abordagem hermenêutico-dialética que deu origem a três categorias: sentir-se apto a iniciar o sexo, (in)vulnerabilidade à violência sexual e mecanismos de proteção. A iniciação sexual para as moças está relacionada a uma visão romântica, a se sentirem seguras e terem confiança no parceiro, ao passo que, para os rapazes, está associada a oportunidade, livre de outros fatores. Para a maioria dos estudantes, quando o consentimento para a prática sexual é mútuo, independente da idade, não há violência. Ao mesmo tempo, questionam-se quanto à capacidade de discernimento das mais jovens para permitir o sexo. A maior parte discorda das medidas protetivas previstas na lei, por entender que é dever da família prover esse cuidado. As contradições na percepção dos adolescentes sobre a vulnerabilidade à violência sexual e o estupro de vulnerável previsto em lei nos levam a concluir que é necessário ampliar e qualificar a educação sexual de forma abrangente para adolescentes, assim como criar espaços de discussão que possam proporcionar aperfeiçoamento desse dispositivo legal.
Palavras-chave:
Comportamento Sexual; Estupro; Violência Sexual; Adolescência; Grupos Focais
Resumen:
El Art. 217-A de la Ley nº 12.015/2009 definió como delito la violación de personas vulnerables, la unión carnal, u otro acto libidinoso practicado con un menor de 14 años. Ante la baja edad para la iniciación sexual observada en la actualidad, el objetivo de este estudio fue comprender la concepción de los adolescentes sobre: iniciación sexual, violencia sexual y la ley que la tipifica la “violación de una persona vulnerable”. Utilizamos el método cualitativo mediante 13 grupos focales con 132 estudiantes de enseñanza media de escuelas públicas y privadas del municipio de Río de Janeiro, Brasil. El análisis de datos se realizó con el apoyo del software webQDA, desde un enfoque hermenéutico-dialéctico que dio origen a 3 categorías: sentirse apto para iniciarse en el sexo, (in)vulnerabilidad ante la violencia sexual y mecanismos de protección. La iniciación sexual en el caso de las chicas está relacionada con la visión romántica, sentirse seguras y tener confianza en la pareja, mientras que, para los chicos, está asociada a la oportunidad, aparte de otros factores. Para la mayoría de los estudiantes, cuando el consentimiento para la práctica sexual es mutuo, independientemente de la edad, no hay violencia. Al mismo tiempo, se cuestionan respecto a la capacidad de discernimiento de las más jóvenes para permitir el sexo. La mayor parte está en desacuerdo con las medidas protectoras previstas en la ley, por entender que es un deber de la familia proporcionar ese cuidado. Las contradicciones en la percepción de los adolescentes sobre la vulnerabilidad a la violencia sexual y la violación de personas de vulnerables prevista en la ley nos llevan a la conclusión de que es necesario ampliar y mejorar la educación sexual de manera que abarque a los adolescentes, así como crear espacios de discusión que puedan perfeccionar este recurso legal.
Palabras-clave:
Conducta Sexual; Violación; Violencia Sexual; Adolescencia; Grupos Focales
Introdução
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência é a fase da vida situada entre 10 e 19 anos. Nesse período, ocorrem profundas transformações biológicas, cognitivas, emocionais e sociais. É uma etapa marcada pela conquista de maior autonomia e independência em relação à família e de experimentação de novos comportamentos, sendo comum a ocorrência das primeiras relações amorosas e a iniciação sexual com envolvimento genital 11. World Health Organization. Recommendations on adolescent sexual and reproductive health and rights. Geneva: World Health Organization; 2018..
A prática sexual transcende o biológico, visto que envolve aspectos psicológicos, sociais e questões éticas e legais. O adolescente é reconhecido como um sujeito de direitos, incluindo o sexual, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1989 22. Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Contudo, desde 2009, a legislação penal brasileira tipifica como crime de estupro de vulnerável a conjunção carnal ou outro ato libidinoso praticados com menor de 14 anos 33. Brasil. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Diário Oficial da União 2009; 10 ago.. Ou seja, esse dispositivo legal conduz ao entendimento de que antes dos 14 anos o indivíduo não tem maturidade, autonomia plena, ou seja, direito a consentir uma relação sexual.
Outros países também dispõem de marcos legais a respeito da iniciação sexual. No Reino Unido, por exemplo, só é permitida legalmente a relação sexual a partir dos 16 anos. Nos serviços públicos de saúde britânicos, nos casos em que a iniciação sexual ocorre abaixo dos 16 anos, é realizada uma avaliação para se certificar se o/a adolescente tem maturidade para o exercício da autonomia com segurança. Para isso utilizam um guia denominado Gillick Competency and Fraser Guidelines44. National Society for the Prevention of Cruelty to Children. Gillick competency and Frazer guidelines. https://learning.nspcc.org.uk/media/1541/gillick-competency-factsheet.pdf (acessado em 21/Mai/2016).
https://learning.nspcc.org.uk/media/1541... , que orienta os profissionais na avaliação da competência do adolescente para tomar suas próprias decisões ciente de suas consequências. Nos casos em que o sexo acontece com 13 anos ou menos, obrigatoriamente são tomadas medidas de proteção 55. Havenga Y, Tamane MA. Consent by children: considerations when assessing maturity and mental capacity. S Afr Fam Pract 2016; 58 Suppl 1:S43-6.,66. Wheeler R. Gillick or Fraser? A plea for consistency over competence in children: Gillick and Fraser are not interchangeable. BMJ 2006; 332:807..
A literatura científica apresenta diferentes concepções do que se considera uma iniciação sexual precoce, nem sempre similar ao marco legal brasileiro. Não existe consenso sobre a partir de que idade é recomendado o início da atividade sexual. Alguns autores sugerem que toda iniciação sexual antes dos 15 anos seja considerada precoce 77. Heilborn ML, Aquino EML, Bozon M, Knauth DR, organizadores. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond/Editora Fiocruz; 2006.,88. Silva ASN, Silva BLCN, Silva JAF, Silva MCF, Guerreiro JF, Sousa ASCA. Início da vida sexual em adolescentes escolares: um estudo transversal sobre comportamento sexual de risco em Abaetetuba, Estado do Pará, Brasil. Rev Pan-Amazônica Saúde 2015; 6:27-34., enquanto outros propõem idades variadas, de 13 a 18 anos 99. Moraes L, Franca C, Silva B, Valença P, Menezes V, Colares V. Iniciação sexual precoce e fatores associados: uma revisão da literatura. Psicol Saúde Doenças 2019; 20:59-73.. Nos Estados Unidos, Min et al. 1010. Min MO, Minnes S, Lang A, Yoon S, Singer LT. Effects of prenatal cocaine exposure on early sexual behavior: gender difference in externalizing behavior as a mediator. Drug Alcohol Depend 2015; 153:59-65. consideram precoce quando ocorre antes de 15 anos, e Kastbom et al. 1111. Kastbom AA, Sydsjö G, Priebe G, Göran-Svedin C. Sexual debut before the age of 14 leads to poorer psychosocial health and risky behaviour in later life. Acta Paediatr 2015; 104:91-100., antes de 14 anos.
Mesmo reconhecendo a falta de padronização das definições sobre o que seja a iniciação sexual precoce e a dependência desse ato ao contexto sociocultural dos envolvidos, diversos autores têm apontado que quanto menor a idade da iniciação sexual, maior a probabilidade de infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV e aids 1212. Teixeira SAM, Taquette SR. Violência e atividade sexual desprotegida em adolescentes menores de 15 anos. Rev Assoc Med Bras 2010; 56:440-6.,1313. Taquette SR, Rodrigues AO, Bortolotti LR. Infecção pelo HIV em adolescentes do sexo masculino: um estudo qualitativo. Ciênc Saúde Colet 2015; 20:2193-200.,1414. Taquette SR, Rodrigues AO, Bortolotti LR. HIV infection in female adolescents: a qualitative study. Rev Panam Salud Pública 2015; 37:324-9.; gravidez não planejada na adolescência 1515. Cerqueira-Santos E, Paludo SS, Del Schirò, Koller SH. Gravidez na adolescência: análise contextual de risco e proteção. Psicol Estud 2010; 15:72-85.,1616. Amorim MMR, Lima LA, Lopes CV, Araújo DKL, Silva JGG, César LC, et al. Fatores de risco para a gravidez na adolescência em uma maternidade-escola da Paraíba: estudo caso-controle. Rev Bras Ginecol Obstet 2009; 31:404-10.; mortalidade materna 1717. Spinola M, Cristiany R, Béria JU, Schermann LB. Fatores associados à iniciação sexual em mães de 14 a 16 anos em Porto Alegre/RS, Brasil. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:3755-62.,1818. Leite RMB, Araújo TVB, Albuquerque RM, Andrade ARS, Duarte Neto PJ. Fatores de risco para mortalidade materna em área urbana do Nordeste do Brasil. Cad Saúde Pública 2011; 27:1977-85. e câncer de colo de útero 1919. Instituto Nacional de Câncer. Controle do câncer do colo de útero. Fatores de risco. https://www.inca.gov.br/controle-do-cancer-do-colo-do-utero/fatores-de-risco (acessado em 08/Set/2019).
https://www.inca.gov.br/controle-do-canc... . Demais consequências são de cunho psicossocial, como o consumo abusivo de álcool e drogas, abandono e atraso escolar, entre outras 1717. Spinola M, Cristiany R, Béria JU, Schermann LB. Fatores associados à iniciação sexual em mães de 14 a 16 anos em Porto Alegre/RS, Brasil. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:3755-62.,2020. Gonçalves H, Machado EC, Soares ALG, Camargo-Figuera FA, Seerig LM, Mesenburg MA, et al. Início da vida sexual entre adolescentes (10 a 14 anos) e comportamentos em saúde. Rev Bras Epidemiol 2015; 18:25-41.,2121. Sanchez ZM, Nappo SA, Cruz JI, Carlini EA, Carlini CM, Martins SS. Sexual behavior among high school students in Brazil: alcohol consumption and legal and illegal drug use associated with unprotected sex. Clinics 2013; 68:489-94..
O limite etário de 14 anos para a tipificação do crime de estupro de vulnerável traz dilemas para profissionais da saúde e da educação que assistem adolescentes. Esses profissionais se deparam com situações em que um(a) adolescente menor de 14 anos tem relações sexuais consensuais e, inclusive, com conhecimento da família. Esse caso, legalmente considerado estupro de vulnerável, segundo o ECA, nos artigos 13 e 245, deve ser notificado ao Conselho Tutelar, podendo o profissional sofrer sanções legais se não o fizer. Todavia, a notificação imediata aos órgãos de garantia de direitos pode não ser a melhor opção para proteger esse adolescente 2222. Ventura M. Direitos reprodutivos no Brasil. 3ª Ed. Brasília: Fundo de População das Nações Unidas; 2009..
Percebe-se que há certo desencontro entre o que prevê a legislação brasileira, as definições dos estudiosos sobre os parâmetros etários da iniciação sexual e o entendimento de profissionais de saúde sobre o tema. Essa situação é representativa do biopoder do Estado sobre as pessoas, o qual se utiliza de diferentes técnicas para subjugação dos corpos, a fim de controlar a população 2323. Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Graal; 1988.. Neste cenário, pouco se sabe sobre a percepção dos adolescentes sobre os marcos regulatórios, a idade considerada adequada para a iniciação sexual e mesmo sobre as consequências desse ato à sua saúde. Alguns autores 2222. Ventura M. Direitos reprodutivos no Brasil. 3ª Ed. Brasília: Fundo de População das Nações Unidas; 2009.,2424. Lowenkron L. Menina ou moça? Menoridade e consentimento sexual. Desidades 2016; 10:9-18. identificam que as lacunas nas políticas públicas brasileiras em saúde sexual e reprodutiva para a faixa etária adolescente se dão, sobretudo, pela falta de participação do público-alvo na discussão e elaboração dessas políticas.
Diante do exposto, questionamo-nos sobre a importância de envolver os adolescentes nesta discussão, conhecendo um pouco melhor o que pensam os próprios envolvidos sobre iniciação sexual e violência sexual. Os adolescentes têm conhecimento da lei que tipifica o estupro de vulnerável? Quando deve ser iniciada a atividade sexual? Eles estão conscientes das consequências do ato sexual? Com base nesses questionamentos, este estudo pretende compreender a concepção de adolescentes acerca da violência sexual, da época de iniciação sexual e da lei que a tipifica como “estupro de vulnerável” quando ocorre em menores de 14 anos.
Métodos
Este artigo faz parte de pesquisa maior sobre violências na adolescência, intitulada Estupro de Vulnerável e Outras Formas de Violência Contra Adolescentes, desenvolvida com abordagem mista, quanti e qualitativa. O estudo foi realizado com estudantes do segundo ano do Ensino Médio, de ambos os sexos, em escolas públicas e privadas da IX Região Administrativa do Município do Rio de Janeiro, Brasil. A eleição desse público-alvo se deu pela maior probabilidade de já ter experiência em relacionamentos afetivos/sexuais e por ainda estar na faixa etária da adolescência. As escolas foram escolhidas por sorteio, e a Região Administrativa por conveniência, por ser a localidade da instituição em que trabalha a equipe da pesquisa e por já haver alguma integração com as escolas da área advindas de parcerias prévias.
A parte qualitativa, à qual este estudo faz referência, visou a compreender os significados dos fenômenos de forma mais aprofundada. A técnica escolhida foi a discussão em grupo focal, que permite a coleta de dados por meio das interações entre os indivíduos. Esse recurso é valioso para se entender o processo de construção de percepções, atitudes e representações sociais dos grupos humanos e o contexto de relação onde são produzidas. Foram tomados todos os cuidados necessários para reduzir as limitações e fragilidades da técnica de grupo focal no sentido de garantir a participação equilibrada de todos os componentes do grupo. Sabe-se que o conhecimento construído é resultado do olhar compartilhado do grupo sobre o tema em estudo, e não da experiência individual dos participantes.
Os dados foram coletados durante o ano letivo de 2016, no horário escolar, após concordância da instituição de ensino e consentimento dos alunos e de seus responsáveis. Os grupos foram compostos aleatoriamente com os alunos presentes e que concordaram em participar, com no mínimo seis e, no máximo, 12 integrantes. Obedeceram a roteiro contendo questões disparadoras da discussão relacionada aos temas sexualidade e violência sexual. Sobre o primeiro tema, foi perguntado o que consideram como a época adequada para o início da atividade sexual, se há diferenças entre rapazes e moças e como veem a sexualidade na adolescência e suas consequências. Sobre o segundo tema, foi perguntado o que consideram como violência sexual, justificativa para sua ocorrência e quais suas consequências; em seguida, se conhecem e como avaliam a lei que tipifica o estupro de vulnerável. Ao final de cada reunião foi aplicado questionário autopreenchível para coleta de dados sociodemográficos, como idade, sexo, raça/cor, renda, composição familiar, escolaridade parental e informações sobre iniciação e experiência sexual. Cada grupo foi conduzido por dois profissionais, sendo um moderador e um observador. A duração média dos grupos foi de 60 minutos. As reuniões foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas.
Toda a equipe da pesquisa, composta de profissionais das áreas de medicina, enfermagem e serviço social, participou da coleta de dados. Não havia nenhum relacionamento prévio entre os pesquisadores e os pesquisados. O critério amostral foi a saturação de conteúdos, com a garantia de equilíbrio entre o número de participantes de escolas públicas e privadas de ambos os sexos. Interrompemos as reuniões após o 13º grupo por percebermos que as informações se repetiam e nenhum dado novo surgia.
Os dados foram analisados com apoio do software webQDA (https://www.webqda.net/), tendo como base teórica autores como Denzin & Lincoln 2525. Denzin NK, Lincoln YS. The SAGE handbook of qualitative research. 5th Ed. Thousand Oaks: SAGE; 2018. e Minayo 2626. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 13ª Ed. São Paulo: Hucitec Editora; 2013., por meio dos seguintes passos: leitura e releitura compreensiva dos dados textuais; busca de similaridades, concordâncias e divergências; classificação dos relatos a partir dos temas emergentes com recorte e colagem do texto; leitura transversal do texto para identificação dos sentidos atribuídos pelos sujeitos às questões levantadas; diálogo comparativo com a literatura e elaboração de síntese interpretativa. Não utilizamos categorias analíticas prévias. A categorização foi feita a partir da compreensão das narrativas dos participantes.
Aspectos éticos
O estudo atende às normas éticas contidas na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde 2727. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União 2012; 12 dez.. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 18 de setembro de 2015 (CAAE nº 48107514.2.0000.5282) e autorizado pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro.
Resultados e discussão
Realizamos 13 grupos focais, sete em escolas públicas e seis em privadas, totalizando 132 estudantes, 50% de cada segmento. A idade variou de 15 e 21 anos, sendo a maior parte (68%) entre 15 e 17 anos. As alunas representaram discreta maioria, 55% do total. Cinco grupos foram compostos por integrantes do sexo masculino, cinco do sexo feminino e três mistos. Não houve diferenças na qualidade do debate entre as diferentes composições dos grupos focais, e os dados foram analisados conjuntamente.
As características sociodemográficas e familiares da população estudada são apresentadas nas Tabelas 1 e 2. Na Tabela 1, pode-se observar que os estudantes do sexo masculino são um pouco mais velhos, a maioria de raça/cor parda ou preta, apresentam nível de renda familiar um pouco menor e têm pais menos escolarizados do que as moças. Verifica-se também maior frequência de iniciação sexual com 14 anos ou menos entre os rapazes.
Na Tabela 2, observamos que, nas escolas privadas, houve predomínio de alunos mais novos, entre 15 e 17 anos, e da raça/cor branca, quando comparados com estudantes das escolas públicas. A organização familiar é biparental em 50% dos alunos das escolas públicas e em 67% das privadas. Os estudantes das escolas privadas tinham pais com maior escolaridade e maior renda do que os alunos das escolas públicas. Em relação à sexualidade, a maioria dos participantes da rede pública e privada, de ambos os sexos, já era sexualmente ativa, sendo que 33 % dos das escolas públicas se iniciaram com 14 anos ou menos.
A partir da análise dos dados textuais advindos das transcrições das reuniões dos grupos focais, três categorias emergiram: (i) Sentir-se apto para iniciar o sexo; (ii) (In)vulnerabilidade x violência sexual; e (iii) Mecanismos de proteção. Os depoimentos das moças e dos rapazes convergiram e divergiram em alguns pontos que serão comentados ao longo do texto. Em relação ao tipo de escola, não identificamos diferenças notáveis nas falas dos estudantes das públicas e privadas com relação às três categorias empíricas.
Sentir-se apto para iniciar o sexo
Esta categoria reúne a percepção dos adolescentes sobre o momento considerado adequado para a iniciação sexual, incluindo os limites etários e as diferenças entre homens e mulheres.
Para quase todos os participantes, o critério etário não delimita a época mais apropriada para a iniciação sexual, apesar de haver menção de que, abaixo de 12 anos, o indivíduo poderia não ter ainda maturidade para consentir. Para eles, o que mais importa é a sensação de já estar segura/o para o ato sexual e o prazer decorrente dessa atividade.
“Se você se sentir pronta, você faz. Cada um se sente pronta numa idade diferente” (grupo feminino, escola pública).
“...A pessoa está fazendo aquilo pra agradar a ela, porque ela sente confortável em fazer aquilo. E com aquela pessoa” (grupo feminino, escola privada).
“Mas eu acho que realmente, quando a pessoa se sentir confortável, pra começar a ter relação... não tem muito uma idade muito definida” (grupo masculino, escola privada).
“Tipo, ter 12 anos, não tem muita consciência, maturidade pra entender... Vai pela cabeça dos outros” (grupo feminino, escola pública).
“Também não vai ter uma relação sexual com 12 anos. Eu acho que, ninguém tem cabeça pra isso, aos 12” (grupo masculino, escola privada).
A compreensão de estar apto para iniciar a vida sexual se alcança quando se sentem seguros, o que varia por sexo, de pessoa para pessoa e a partir do grupo social ao qual pertencem. A influência da sociedade em geral, da comunidade em que vivem e da cultura foi reconhecida e apontada por vários participantes. Alguns têm convicções advindas de orientações religiosas que estabelecem critérios etários para o início do sexo ou ritos de passagem, como o casamento.
“Eu acho... só com o meu marido. Uma pessoa só” (grupo feminino, escola pública).
“Você tem 20 anos e é virgem. Aí, as pessoas que já são um pouco mais novas, vendo isso, falam: eu tenho que ter uma relação sexual pra não ser zoado por isso. É aquela pressão toda pra você perder a virgindade antes dos 18” (grupo masculino, escola privada).
“Hoje em dia tudo incentiva, a má companhia, o namorado que justamente obriga, agride, fala que ama e ilude” (aluna, grupo feminino, escola pública).
“Eu acho que nas comunidades mais pobres, sei lá, acho que pela falta do que fazer talvez... (...) Até influências, tipo assim, musicais, a questão do funk” (aluno, grupo masculino, escola privada).
Outro aspecto sobre a época de iniciação sexual largamente registrado foi a desigualdade entre rapazes e moças e o seu significado distinto para cada sexo. Nas narrativas das moças, predomina uma visão romântica da sexarca associada à confiança, ao tempo de relacionamento e aos sentimentos envolvidos. Já para os rapazes, o que importa é o surgimento da oportunidade, conforme exemplificado nas seguintes falas:
“Acho que o menino é mais afobado. A menina tem a capacidade de se segurar mais porque até então ela vai primeiro... namorar, (...), ela vai amar, aí ela vai se entregar para o cara. Ela não vai... por um simples prazer” (grupo feminino, escola pública).
“E a menina... tem mais uma influência de que tem que ser mais preservada. Vai quando for a pessoa certa, no tempo certo, espera. O menino tem que fazer logo” (grupo masculino, escola privada).
“Eu acho que a família, na maioria das vezes, incentiva mais o menino do que a menina” (grupo misto, escola privada).
“Tem mulher, tá rolando” (grupo masculino, escola pública).
Para nossos interlocutores, o sentir-se apto e seguro para o início sexual se apresentou desvinculado do limite etário ou de qualquer marco social, o que pode representar mudanças em relação às gerações passadas, em que a iniciação sexual era condicionada, por exemplo, ao casamento. Essa mudança demonstra, de acordo com alguns autores, uma maior liberdade de escolha e de exercício da autonomia e protagonismo juvenil 2828. Arantes EMM. Proteção integral à criança e ao adolescente: proteção versus autonomia? Psicol Clin 2009; 21:431-50.,2929. Heilborn ML. Por uma agenda positiva dos direitos sexuais da adolescência. Psicol Clin 2012; 24:57-68..
A iniciação sexual feminina associada ao compromisso e ao sentimento também foi verificada por Ferrari et al. 3030. Ferrari W, Peres S, Nascimento M. Experiment and learning in the affective and sexual life of young women from a favela in Rio de Janeiro, Brazil, with experience of clandestine abortion. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2937-50. em estudo com jovens com experiência de aborto clandestino, o que demonstra a influência dos papéis de gênero. Por outro lado, essa concepção de se sentir seguro para o início do sexo localizada na instância do vínculo afetivo não inclui outras formas de segurança, no sentido do autocuidado, como a prevenção de doenças e/ou gravidez e as condições de igualdade na relação. Trata-se de uma compreensão diferente da que é vista pelos setores da saúde e educação como sexo seguro 3131. Taquette SR, Vilhena MM, Silva MM, Vale MP. Conflitos éticos no atendimento à saúde de adolescentes. Cad Saúde Pública 2005; 21:1717-25..
A autonomia plena dos adolescentes para o exercício da sexualidade com segurança é alcançada com seu desenvolvimento que depende, entre outros aspectos, do acesso à informação qualificada. Essa informação vai além da que é veiculada na sociedade e na família, que por vezes considera que, ao falar de sexo, estão incentivando os filhos a uma liberação sexual 2929. Heilborn ML. Por uma agenda positiva dos direitos sexuais da adolescência. Psicol Clin 2012; 24:57-68.. Existe dificuldade em se discutir autonomia e direitos sexuais na adolescência pelos diversos atores sociais, pois o contexto histórico brasileiro é marcado pela desigualdade de gênero e também pela postura autoritária e tutelar sobre os ditos “menores” de 18 anos, apesar de, a partir do ECA, eles terem se tornado sujeitos de direitos 3232. Leite V. A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos. Psicol Clin 2012; 24:89-103.. O que se considera normal em determinada época da sociedade pode não ser em outra 3333. Canguilhen G. O normal e o patológico. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009..
(In)vulnerabilidade x violência sexual
Nessa categoria, apresentamos as concepções dos participantes sobre violência sexual e o reconhecimento ou não que têm sobre suas vulnerabilidades a esse tipo de violência.
À primeira vista, parecia haver consenso em vários pontos. Todos concordaram que a violência sexual ocorre quando o sexo não é consentido por um dos pares e todos comungam com a opinião de que, se houve consentimento, não há violência, independentemente da idade dos envolvidos no ato sexual.
“Se ela aceitou, não é violência” (aluna, grupo misto, escola privada).
“Eu acho que uma menina de 11 anos já sabe o que está pensando” (grupo feminino, escola pública).
“Uma menina de 14 anos, pelo amor de Deus, tem criança de 9 que sabe mais coisa que eu” (grupo feminino, escola pública).
“Se a pessoa já tiver preparada, se sentir bem, não é violência” (grupo masculino, escola privada).
No aprofundamento da discussão, alguns participantes relativizaram a capacidade das adolescentes muitos novas (sempre as do sexo feminino) de discernir e compreender se estão correndo algum risco ao consentir o sexo e manifestaram dúvida quanto a ser ou não violência quando a diferença de idade entre os parceiros é muito grande. Da mesma forma, isso pode ocorrer quando o parceiro “força a barra” e a garota aceita a relação por medo de perdê-lo.
No debate específico sobre a iniciação sexual antes dos 14 anos se configurar uma violência, os participantes divergiram nas respostas. Alguns consideram que os adolescentes menores de 14 anos se sentem capazes de decidir, porém, conforme ganham mais experiência com a idade, reconhecem que podem ter sido vítimas em algumas situações.
“...Eu penso que o de 18 tem mais cabeça [ao comentar sobre um casal em que o rapaz tem 18 anos e a moça, 13 anos]. A de 13 (...) não sabe muito bem o que tá fazendo. Mas (...) em algumas partes ela sabe sim, já tem uma noção. Eu não sei se eu classificaria como violência” (grupo masculino, escola privada).
“Tipo, essas garotas são muito criança, na verdade, até os 14 anos. (...) Pode se sentir violada depois de uns anos. A pessoa meio que me forçou a fazer isso, porque sabia que provavelmente eu ia aceitar, já que eu não tinha total controle da minha vida” (grupo feminino, escola privada).
“Com 13 anos não necessariamente a pessoa sabe o que é bom, o que é certo e, o que é errado” (aluna, grupo misto, escola privada).
“Ela acha que realmente quer aquilo, mas está sendo extremamente influenciada, coagida... Eu acho que é muito difícil você julgar se você realmente quer, se está sofrendo pressão quando você tem 13 anos de idade” (aluna, grupo misto, escola privada).
Discordâncias também ocorreram com relação à concepção de perpetração de violência sexual, que difere se a vítima é homem ou mulher. Quando questionados sobre a situação de estupro de homens, o assunto causou estranheza nos rapazes, pois eles não se reconhecem como vulneráveis à violência sexual por mulheres. Alguns participantes destacaram que seria, inclusive, como um “sonho realizado” se um rapaz menor de 14 anos “fosse obrigado” a praticar relações sexuais com uma mulher mais velha.
Segundo os adolescentes, homens só são vítimas de violência quando ela é perpetrada por outro homem. As moças não se manifestaram quanto a isso, como se fosse um tema que não lhes dissesse respeito. É necessário destacar também a percepção dos estudantes sobre os homens serem sempre perpetradores da violência sexual e livres para iniciação sexual a qualquer momento. Por outro lado, as mulheres são vistas como vítimas sexuais, mas, ao mesmo tempo, são responsabilizadas pela própria condição de vítimas, pois se considera que elas sabem o que estão fazendo.
“Ela está querendo mostrar o corpo. E o cara também está querendo... Aí ela está dando confiança pra ele. Está dando motivo pra ele poder fazer isso também” (grupo masculino, escola pública).
“Eu já fui agredido sexualmente. Eu estava em um show, veio um cara, começou a me agarrar, me beijar” (grupo masculino, escola privada).
“Você não quer fazer uma parada e ele vai lá e te obriga a fazer ou te bate pra conseguir isso. E falar não e a pessoa continuar fazendo aquilo. Eu acho que já é uma violência” (grupo feminino, escola privada).
A concepção dos participantes sobre a prática sexual entre os menores de 14 anos sugere relativização do consentimento dos adolescentes na caracterização da violência sexual. No decorrer do debate, os jovens demonstraram pouca preocupação com os riscos da atividade sexual. Nada foi comentado sobre a proteção das IST ou sobre a contracepção.
Diferentemente do que é demonstrado em alguns estudos 11. World Health Organization. Recommendations on adolescent sexual and reproductive health and rights. Geneva: World Health Organization; 2018.,3434. Silva MAI, Mello FCM, Mello DF, Ferriani MGC, Sampaio JMC, Oliveira WA. Vulnerabilidade na saúde do adolescente: questões contemporâneas. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:619-27., parte dos nossos entrevistados não percebe a vulnerabilidade na fase inicial da adolescência. Entretanto, a não preocupação com os riscos da atividade sexual também foi evidenciada por Gonçalves et al. 2020. Gonçalves H, Machado EC, Soares ALG, Camargo-Figuera FA, Seerig LM, Mesenburg MA, et al. Início da vida sexual entre adolescentes (10 a 14 anos) e comportamentos em saúde. Rev Bras Epidemiol 2015; 18:25-41..
De modo geral, os relatos evidenciam conflitos, dúvidas e inseguranças na problematização do tema. Aqueles que defendem a capacidade de discernimento dos mais novos, embora abordem a imaturidade, remetem aos jovens a responsabilização pelo ato. Essa observação fica evidente quando dizem: “consentem” porque “sabem o que estão fazendo”. Culpabilizam a vítima pela violência sofrida, fato também observado entre os adultos e até entre profissionais de saúde 3535. Adesse L, Castro P, Mota A, organizadoras. Orientações para a saúde integral à saúde de adolescentes de ambos os sexos, vítima de violência sexual na atenção básica. Rio de Janeiro: Ipas Brasil; 2010..
Autores como Moreira & Santos 3636. Moreira MRC, Santos JFFQ. Entre a modernidade e a tradição: a iniciação sexual de adolescentes piauienses universitárias. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15:558-66. e Biroli 3737. Biroli F. Democracia e tolerância à subordinação: livre-escolha e consentimento na teoria política feminista. Revista de Sociologia e Política 2013; 21:127-42. afirmam que o consentimento da prática sexual mediante sedução/coerção compromete a caracterização da violência sexual. Nesses casos, não é levada em conta a desigualdade de poder no casal, principalmente quando se trata de parceiros com assimetria de gênero e poder. Além disso, observa-se que o conhecimento dos adolescentes sobre as questões de sexo nem sempre é suficiente.
Os rapazes participantes dos grupos demonstraram perceber o homem como um ser “inatingível”, em termos de violência sexual, por parte das mulheres. Essa percepção contradiz as evidências científicas sobre a vulnerabilidade dos adolescentes do sexo masculino ao estupro de vulnerável. Dados sobre o perfil das vítimas de grupos vulneráveis indicam que, em 2016, das 3.108 crianças e adolescentes (0 a 17 anos) vítimas de estupro, 493 casos são do sexo masculino, representando 15,86% das vítimas 3838. Instituto de Segurança Pública. O perfil das vítimas de grupos vulneráveis, 2018. http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/grupos.html (acessado em 02/Mar/2018).
http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/gru... .
A questão da vulnerabilidade de adolescentes relacionada ao critério etário é discutida por Lowenkron 2424. Lowenkron L. Menina ou moça? Menoridade e consentimento sexual. Desidades 2016; 10:9-18.. A autora problematiza o critério da “(menor) idade” sexual e ressalta que a idade como categoria que orienta o exercício da sexualidade está inter-relacionada a outras categorias, como gênero e classe social. Não se podem desconsiderar as desigualdades de gênero na noção do consentimento sexual. Ao refletir sobre a idade do consentimento sexual de adolescentes e a lei do “estupro de vulnerável” que pretende protegê-los, a autora destaca que o critério etário não deve ser o único e absoluto para regulação social e jurídica da autonomia sexual desses sujeitos, pois está associado a moralidades diversas. Questiona se o que é representado como vulnerabilidade em função da idade, na verdade, serve para reduzir a autonomia do adolescente por meio de um marcador biológico. Portanto, é necessário conciliar a proteção ao sujeito em desenvolvimento com seus direitos sexuais, visto que as mudanças nos dispositivos legais ao longo do tempo demonstram que as delimitações etárias são insuficientes e precárias.
Mecanismos de proteção
Neste item abordamos a percepção dos estudantes sobre a lei que tipifica o estupro de vulnerável e a atuação do Conselho Tutelar.
A maioria dos participantes desconhece a Lei e muitos ficaram surpresos sobre atos libidinosos que são incluídos na definição de violência sexual. Não reconhecem como válido o critério etário como delimitador da ocorrência de violência sexual, ou seja, questionam o poder do Estado de regular sua sexualidade. Para eles, em muitas comunidades é comum e estimulado o sexo precocemente. Quem não começa cedo é malvisto e/ou excluído do grupo social. Por outro lado, uma vez que a adolescente (sempre do sexo feminino) concorda com o sexo, não se considera estupro. Algumas falas exemplificam esse ponto:
“No momento que uma garota de 13 anos engravida, entendeu, ela está assumindo uma responsabilidade muito grande e ela sabe o que ela fez de errado... eu acho que não é crime” (grupo masculino, escola pública).
“Na minha opinião ela [a Lei] está errada. A partir do momento que ela já entende que é certo e o que é errado... Aí ela já tá fazendo o que ela quer e não porque ela tá obrigando” (grupo masculino, escola pública).
“[A Lei] estabelecer uma idade pra isso seria tipo... é um erro. Por quê? Uma coisa é ter um beijo na boca como um consenso. Outra coisa é você chegar numa garota de 14 anos que você nunca viu na vida pegar e beijar ela na boca. Isso já tá errado” (grupo masculino, escola privada).
“Se a garota quer com um cara, sei lá, de 20 anos. Se ela se sente confortável com ele. Ela tem esse direito, sabe?” (grupo feminino, escola privada).
Quando perguntados sobre as funções e atribuições do Conselho Tutelar, as moças demonstraram ter mais conhecimento. Aquelas que conhecem melhor esse órgão são as que já foram contatadas pelos conselheiros por algum motivo. Alguns o concebem como uma espécie de polícia, e não têm uma avaliação positiva sobre seu trabalho. Quanto à notificação dos casos suspeitos ou confirmados de violência sexual, sempre que a “vítima” for menor de 14 anos, alguns só concordam se o parceiro for adulto. Se o parceiro for adolescente também, não tem que notificar. Esses são alguns dados também observados no estudo de Brito et al. 3939. Brito CO, Nascimento CRR, Rosa EM. Conselho tutelar: rede de apoio socioafetiva para famílias em situação de risco? Pensando Fam 2018; (1):179-92..
“O dia que eu fui lá me chamaram pra conversar. Aí depois chamaram só́ a minha mãe. E tipo, eu achei legal. Porque a psicóloga viu o lado da minha mãe, o lado da criança e deu a razão daquilo” (grupo feminino, escola privada).
“É pra tentar proteger a criança, de certa maneira. (...) Tem crianças que não têm essa proteção, e podem ter através do conselho tutelar, levar pra um lugar melhor” (aluna, grupo misto, escola pública).
“Eu acho que o Conselho Tutelar, ele protege as crianças menores de 14 anos, porque ela ainda não tem noção do que tá fazendo. Por isso, que ela consente” (grupo feminino, escola pública).
“Ah, mas eu acho que esse negócio de polícia [referência ao Conselho Tutelar] é ruim... muito perigoso. Porque quando apronta lá eles podem chamar o Conselho Tutelar. Então, é que nem polícia” (grupo masculino, escola pública).
Para parte dos entrevistados, a intervenção da Lei e do Estado nos problemas que envolvem a atividade sexual de adolescentes é indevida. Essas questões não dizem respeito ao Estado, que não deveria se implicar. A família é quem tem o direito e o dever de resolver essas questões. Somente nos casos em que a família não é capaz, o Estado deve intervir.
“Que ridículo [a obrigatoriedade de notificar ao Conselho Tutelar a suposta violência sexual]” (grupo masculino, escola privada).
“Tipo, eu acho primeiro que o Estado se meter nas nossas vidas o tempo todo é muito escroto. Porque a nossa vida não é do Estado. É pessoal” (grupo masculino, escola privada).
“Se a garota for procurar o Estado tudo bem, mas se o Estado for procurar a garota, aí não. Eu acho que o Conselho Tutelar tem que agir a partir do momento que a sua família não pode agir por você, que a família tenha algum problema” (grupo masculino, escola privada).
“Se tem a penetração, ela não querer, aí tipo assim, pode ir pra delegacia e tal, resolver. Mas se ela quiser, é outra história. Se os pais dela não falaram nada, entendeu? Porque, se falar que foi estuprada, isso e aquilo. A mãe dela tem que tomar a providência” (grupo masculino, escola pública).
Foi possível observar nas falas que, mesmo sem conhecerem a Lei, a posição dos adolescentes pode ser interpretada como “presunção à vulnerabilidade relativa” e não “vulnerabilidade absoluta”, já que não se limitaram ao parâmetro da idade cronológica.
Em estudo realizado em Ponte Nova (Minas Gerais), por Oliveira et al. 4040. Oliveira GG, Reis LPC, Loreto MDS, Barreto MLM. Estupro de vulneráveis: uma reflexão sobre a efetividade da norma penal à luz da presunção de vulnerabilidade. Jus Navigandi 2014; 19(4115). https://jus.com.br/artigos/29758.
https://jus.com.br/artigos/29758... , sobre a percepção de lideranças da área jurídica sobre a efetividade da Lei nº 12.015/2009, foram verificados vários pontos divergentes. Uns defendem que os direitos das crianças/adolescentes não devem ser relativizados. Independente de consentimento, a conjunção carnal ou a prática de qualquer ato libidinoso é sempre um crime. Outros questionam a presunção absoluta, considerando que o amadurecimento sexual das crianças/adolescentes é influenciado pelas modificações da cultura e da sociedade, devendo a presunção ser relativizada dentro dos parâmetros legais, da realidade social e do bom senso. Os autores chegam à conclusão de que a norma penal é insuficiente e não alcança inteiramente seu objetivo.
Considerações finais
Nosso estudo evidencia que há uma desconexão entre o que preconiza a Lei e aqueles a quem a Lei visa a proteger. Pode-se dizer que isso era o previsível, pois o biopoder instituído pelo Estado, a partir de seus próprios interesses, visa a regular, reprimir e controlar, e não a atender as necessidades e desejos da população. Ao refletirmos sobre as condições em que a iniciação sexual em menores de 14 anos tem ocorrido, podemos considerar que a mudança no Código Penal na tipificação do estupro de vulnerável objetivou ampliar a proteção de crianças e adolescentes. No entanto, a efetiva proteção a esse público após a implementação da lei é questionada devido à dificuldade de colocá-la em prática, pois não leva em consideração os interesses desses sujeitos nem contextos em que vivem.
Nossos resultados indicam que há um grande desconhecimento dos adolescentes acerca dessa legislação e, quando esclarecidos a respeito, questionam o poder do Estado de intervir em decisões que são inerentes à autonomia do indivíduo e de sua família. Esses achados reforçam a necessidade de medidas político-educativas para ampliar e qualificar a educação em sexualidade de forma abrangente a esse público, no sentido de capacitá-lo ao exercício da sexualidade com liberdade, autonomia e segurança. Faz-se necessário maior comunicação/cooperação entre os setores saúde, educação e justiça na identificação e proteção efetiva a vítimas de violência sexual, assim como espaços de discussão que possam proporcionar um aperfeiçoamento desse dispositivo legal.
Por fim, vale registrar as limitações deste estudo, restrito ao público adolescente de estudantes do ensino médio de uma cidade de grande porte. Para expandir o alcance de seus resultados, recomendamos complementá-lo com o olhar e a experiência de profissionais que lidam com adolescentes.
Agradecimentos
Agradecemos a colaboração dos participantes da pesquisa: Juliane Escascela Garcia, Luca Zingali Meira e Thenessi Freitas da Matta.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Dez 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
08 Nov 2019 - Revisado
01 Abr 2020 - Aceito
02 Maio 2020