Saúde de Imigrantes e Refugiados, das autoras Deyse de Freitas Lima Ventura & Venônica Quispe Yujra, publicado em 2019 pela Editora Fiocruz, é marcado por uma escrita acessível e instigante ao público em geral, e um manual de interesse para pesquisadores e curiosos no tema da migração e refúgio. A leitura mais atenta nos convoca a refletir acerca de que precisamos levar em consideração que o deslocamento de uma pessoa ou de um grupo traz consigo subjetividades, anseios e esperanças.
Além de contribuir para uma discussão no campo do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde coletiva, a obra se entrelaça com o tema das migrações, discussão cada vez mais presente no mundo acadêmico e nas mídias sociais. Construir um Estado solidário como propõem as autoras, começa desconstruindo, no nosso imaginário, a Torre de Babel em que vivemos.
Logo na apresentação, as autoras conceituam os termos migrantes e refugiados, deixando claro que há uma confusão e uma disputa política em torno destes conceitos, escolhendo a expressão mobilidade humana para pensar a interface com a saúde, referindo-se aos dois fenômenos.
Para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) 11. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Migrações, refúgio e apatridia. Guia para comunicadores. https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes-FICAS-color_FINAL.pdf (acessado em 22/Dez/2019).
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte... , “atualmente os imigrantes no Brasil correspondem a menos de 1% do total da população. O Brasil é considerado, ao mesmo tempo, um país de origem, de trânsito e de destino de migrantes. Atender a essa complexidade é um desafio para governos, para a mídia e para a sociedade em si - um dos grandes desafios da nossa época, dada a dimensão e a importância que o tema adquiriu em nível global”.
O livro reflete sobre os nossos precarizados sistemas de saúde, argumentando que os imigrantes enfrentam as mesmas dificuldades que a população brasileira vivencia, acrescidos de mais barreiras de acesso, que são barreiras da língua e da cultura.
Está dividido em cinco capítulos e considerações finais. No primeiro, A Mobilidade Humana Internacional, descreve-se como acontece internacionalmente esta mobilidade, marcada pela busca de trabalho no caso de grande parte dos migrantes e no caso dos refugiados, um deslocamento forçado pelo agravamento de conflitos armados em seus territórios. Está fundamentado em dados estatísticos.
As autoras alertam, apoiadas em evidências de agências das Nações Unidas (ONU), que mais de 57% do total de refugiados são provenientes de apenas três países: Síria, Afeganistão e Sudão do Sul. E que são os países em desenvolvimento, e não os países desenvolvidos, que mais acolhem os refugiados, sendo os três primeiros: Turquia, Paquistão e Uganda.
Várias são as normas e tratados internacionais que protegem os direitos dessas pessoas, sendo a norma mais importante a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e o seu protocolo adicional de 1967. O princípio mais importante dessa Convenção é o de não devolução, ou seja, o refugiado que consegue chegar ao território de um país que ratificou a convenção não pode ser devolvido ao seu país de origem. O Brasil é um dos 145 países signatários da Convenção.
Todavia, essa mobilidade humana muitas vezes é marcada por mal-entendidos e mitos. O principal deles seria o de que os migrantes trazem doenças. Esse ganha um destaque especial na obra, pois em várias epidemias como HIV e Ebola o primeiro impulso das pessoas é nomear um culpado externo.
No segundo capítulo, A Saúde de Migrantes e Refugiados como Direito Humano, as autoras comentam as recomendações e diretrizes firmadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas com os países, no âmbito da Organização Mundial da Saúde, e as dificuldades de colocar em prática tais acordos, seja por dificuldades internas ou por pressões políticas internacionais. Uma possibilidade de garantir os direitos humanos com enfoque na saúde se dá na dimensão dos determinantes sociais da saúde (DSS), que constata as relações entre a saúde de um indivíduo e suas condições de vida e trabalho.
Argumentam que identificar os determinantes sociais da saúde dos imigrantes ajuda a refletir e identificar as especificidades desta população. É evidente que a precarização do trabalho e o acesso a habitações com saneamento básico e água potável são reivindicações não somente dos imigrantes e refugiados. Contudo, são esses os que estão mais vulneráveis, inclusive nos países desenvolvidos. Para exemplificar, citam os campos de detenção de refugiados na Grécia, com tratamento desumano e degradante e com mortes, por dormirem no relento e em abrigos sem aquecimento.
O terceiro capítulo, Migrantes e Refugiados no Brasil, é dedicado à legislação brasileira sobre o tema com base no olhar atual sobre migrantes e refugiados. Considerada uma legislação avançada, na prática, a implementação é alvo de muitas críticas.
Quando o Brasil ratificou o Estatuto dos Refugiados e também o protocolo de 1967, ele retirou as reservas geográficas descritas em 1951, estendendo para outros países, além da Europa, a condição de refúgio. É preciso entender que ser signatário não é sinônimo de lei. Somente em 1997 o Brasil adotou uma lei federal (Lei nº 9.474, de 22 de Julho de 1997) que assegura a proteção aos refugiados. A Convenção de Genebra compreende que existe um fundado temor de perseguição e por isto os refugiados teriam o direito de ser protegidos.
O órgão responsável por tratar do tema do refúgio no Brasil é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), sendo sua principal função analisar as solicitações de refúgio. Os processos costumam ser longos para o reconhecimento de uma pessoa como refugiada e as solicitações, no momento, são na sua maioria de venezuelanos. O Brasil caracteriza-se muito mais como um país de passagem do que de destino. Um dos motivos é não ser de língua hispânica.
Mesmo diante dos avanços legais nacionais, o Brasil é o único país da América do Sul que ainda não reconhece o direito ao voto para os migrantes. Tal restrição diminui o interesse político e aumenta a invisibilidade e desproteção de um grupo que ainda é modesto em números absolutos, porém com tendência a aumentar.
O quarto capítulo, O Desafio da Universalidade: Principais Barreiras na Atenção à Saúde das Comunidades Imigrantes e Refugiadas e Possíveis Recursos, discorre sobre os principais problemas enfrentados pelos imigrantes e refugiados nos serviços de saúde, reforçando que a falta de produção de dados sobre a atenção à saúde desta população constitui um desafio para a formulação e manutenção das políticas públicas.
A cidade de São Paulo, que acolhe migrantes no país, após identificar o idioma como uma barreira relevante no atendimento ao usuário criou duas estratégias importantes que são utilizadas pelos serviços de saúde: desenvolver cartilhas multilíngues de orientação de fluxo de unidade básica de saúde (UBS), na zona norte da cidade; e contratar trabalhadores imigrantes para atuar na atenção básica.
Questões da ordem da subjetividade e da cultura também são trazidas com muita delicadeza pelas autoras quando relatam a prática da religião vodu pelos haitianos ou o uso de ervas no processo de cura pelos bolivianos. Para as autoras, é preciso difundir que a saúde é um aspecto central na inserção e integração à sociedade a qual agora fazem parte.
No capítulo cinco, A Migração como Ferramenta de Humanização na Rede de Atenção à Saúde: Relatos de Experiências de Rodas de Sensibilização na Cidade de São Paulo, foram organizados grupos focais, constituídos por gestores, trabalhadores de unidades de saúde e migrantes que atuam na sociedade civil, norteados pela seguinte pergunta: “Vocês acreditam que o debate da migração e do refúgio pode fortalecer a humanização no SUS?”. Dentre os vários depoimentos, destaca-se a ênfase na percepção de que existem boas práticas na Cidade de São Paulo. Nesse sentido, uma experiência a ser compartilhada com outros estados é a criação de uma política pública para a saúde de imigrantes e refugiados, resultado de articulações entre diversos setores do governo e sociedade civil.
Nas Considerações Finais as autoras concluem que uma das formas mais singulares de humanização da saúde e da defesa do direito de migrar é a construção de um Estado solidário.
Reiteramos a relevância deste livro no contexto brasileiro, diante da necessidade de oferecer apoio na chegada dessas pessoas ao país, sabedores de que muitos saem de suas casas sem nada levar, deixando para trás amigos, familiares e as memórias de toda a vida, sem ter a certeza do reencontro. Impossível não lembrar da afirmação de Arent 22. Arendt H. O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem. In: Arendt H, organizadora. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 9ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. p 300-38. (p. 300), “...uma vez fora do país de origem, permanecem sem lar; quando deixam seus Estados, tornando-se apátridas; quando perdem os seus direitos humanos, perdem todos os direitos: são o refugo da terra”.
Referências
- 1Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Migrações, refúgio e apatridia. Guia para comunicadores. https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes-FICAS-color_FINAL.pdf (acessado em 22/Dez/2019).
» https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes-FICAS-color_FINAL.pdf - 2Arendt H. O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem. In: Arendt H, organizadora. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. 9ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. p 300-38.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
23 Mar 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
24 Jan 2020 - Aceito
31 Jan 2020