Medicalização do luto: limites e perspectivas no manejo do sofrimento durante a pandemia

Medicalización del luto: límites y perspectivas en el manejo del sufrimiento durante la pandemia

Aline Martins Alves Samuel Braatz Couto Mariana de Paula Santana Márcia Raquel Venturini Baggio Lucas Gazarini Sobre os autores

Quando o luto se torna pandêmico

As pandemias tendem a ser marcadas por perdas em massa: não somente de vidas humanas, mas também de rotinas, costumes e regras, obrigando as pessoas a lidarem com um cenário de imprevisibilidade atípico 11. Weir K. Grief and COVID-19: mourning our bygone lives. https://www.apa.org/news/apa/2020/grief-covid-19 (acessado em 28/Mai/2021).
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. É esperado um aumento no sofrimento psíquico, reações psicológicas, níveis de estresse, ansiedade e irritabilidade, além da manutenção prolongada de medos e inseguranças. Por isso, maiores incidências de transtornos psiquiátricos, incluindo depressão, ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático, são previstas 22. Bao Y, Sun Y, Meng S, Shi J, Lu L. 2019-nCoV epidemic: address mental health care to empower society. Lancet 2020; 395:e37-8.. Segundo o Reposítório de Dados sobre COVID-19 da Universidade de Johns Hopkins (Estados Unidos), até o dia 28 de agosto de 2021, o número de mortes associadas ao novo coronavírus somava 578 mil no Brasil, representando mais de 13% das 4,49 milhões de mortes contabilizadas no mundo 33. Dong E, Du H, Gardner L. An interactive web-based dashboard to track COVID-19 in real time. Lancet Infec Dis 2020; 20:533-4.. Nesse contexto, além do fardo de incertezas intrínseco ao momento atual, houve a necessidade de mudanças nos hábitos, costumes e protocolos que envolvem pacientes, mortes e luto, visando reduzir a disseminação do vírus. Claramente, impactos nos rituais de morte refletem negativamente nas esferas biopsicossociais dos indivíduos e grupos sociais em luto. Somando-se a isso, as vivências de lutos sequenciais não são raras dentro de uma mesma família, o que torna o processo mais difícil 44. Wallace CL, Wladkowski SP, Gibson A, White P. Grief during the COVID-19 pandemic: considerations for palliative care providers. J Pain Symptom Manage 2020; 60:e70-6..

No processo normal de luto, o sofrimento vivido surge como uma oportunidade de aprender, transformar-se e desenvolver, o chamado “crescimento traumático”. A resolução do luto é facilitada por rituais de despedida/passagem, pela comunicação social/familiar, compartilhamento de bons momentos, agradecimentos, pedidos de perdão e obtenção de respostas - mesmo que subjetivas e particulares - de diversas questões. Uma vez que essas ocasiões envolvem, na cultura brasileira, proximidade física, apertos de mãos e abraços, as medidas sanitárias que preconizam redução e/ou impedimento dessas vivências potencializam a angústia dos familiares, instilando sentimento de culpa por considerar que seus entes falecidos não receberam a despedida merecida 55. Crepaldi MA, Schmidt B, Noal DDS, Bolze SDA, Gabarra LM. Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estud Psicol (Campinas) 2020; 37:e200090.. O estresse imposto nessas situações pode facilitar a ocorrência de lutos complicados, algumas vezes considerados patológicos, em que a premissa de crescimento emocional não é completamente válida, visto que a ruminação e a permanência de sentimentos negativos podem levar ao desenvolvimento de estados ansiosos/depressivos prolongados 66. Mello R. Luto na pandemia Covid-19. Revista PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental 2020; 9:7-17..

Ainda no contexto pandêmico, a incerteza e a possibilidade de morte podem levar ao luto antecipatório, que é vivenciado por familiares e profissionais de saúde diante de pacientes naturalmente em fim de vida (p.ex.: idosos, portadores de doenças graves) ou em estado grave pela COVID-19 77. Zhai Y, Du X. Loss and grief amidst COVID-19: a path to adaptation and resilience. Brain Behav Immun 2020; 87:80-1.. O sofrimento pode ser experimentado quando ainda não houve mortes concretas, mas por empatia às famílias afetadas e também por sensibilização causada pela instabilidade social 11. Weir K. Grief and COVID-19: mourning our bygone lives. https://www.apa.org/news/apa/2020/grief-covid-19 (acessado em 28/Mai/2021).
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. Diante disso, o reconhecimento da singularidade da dor de cada indivíduo torna imprescindível o desenvolvimento de estratégias personalizadas de atenção pelos profissionais de saúde, que facilitem a adaptação funcional e a promoção de saúde mental em momentos como o atual 77. Zhai Y, Du X. Loss and grief amidst COVID-19: a path to adaptation and resilience. Brain Behav Immun 2020; 87:80-1..

Patologização do sofrimento e o aumento no consumo de psicofármacos

Neste momento de aumento do ônus psicossocial, o impacto na saúde mental é uma consequência esperada 22. Bao Y, Sun Y, Meng S, Shi J, Lu L. 2019-nCoV epidemic: address mental health care to empower society. Lancet 2020; 395:e37-8.. Mais que em outras situações, a reconfiguração da finalidade do uso de psicofármacos é evidente, com aumento das prescrições, que passam a ser encaradas como “mediadores de conflitos”: um alicerce no manejo de qualquer sinal de sofrimento psíquico rotulado como patologia, mesmo que essa dor seja congruente ao momento de catástrofe. Esse tipo de conduta reforça a predominância da racionalidade biomédica e a visão de doenças como entidades concretas e imutáveis, suprimindo as singularidades dos sujeitos, espaços e contextos, especialmente relevantes nas condições psiquiátricas 88. Molck BV, Barbosa GC, Domingos TS. Psicotrópicos e atenção primária à saúde: a subordinação da produção de cuidado à medicalização no contexto da saúde da família. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200129.. É alarmante observar uma perda no espaço destinado à vivência da dor e da elaboração das perdas, sendo preocupante a medicalização crescente de fenômenos naturais da vida, como considerar, arbitrariamente, o luto normal como uma categoria patológica, ressignificando eventos normais sob a ótica biomédica 99. Conrad P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 2007.. Deve-se reforçar, contudo, que não há um culpado único: embora a atuação médica seja importante na patologização, ela também tende a acontecer por outros profissionais da saúde e até mesmo agentes sociais, como os próprios pacientes, familiares e associações, frequentemente enviesados pela cultura da medicalização excessiva 1010. Conrad P. Medicalization and social control. Annu Rev Sociol 1992; 18:209-32..

A temática gerou controvérsias 1111. Wakefield JC. The DSM-5 debate over the bereavement exclusion: psychiatric diagnosis and the future of empirically supported treatment. Clin Psychol Rev 2013; 33:825-45.,1212. Iglewicz A, Seay K, Zetumer SD, Zisook S. The removal of the bereavement exclusion in the DSM-5: exploring the evidence. Curr Psychiatry Rep 2013; 15:413. durante a elaboração da última revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), considerando propostas que reduziriam o limiar diagnóstico de transtornos depressivos ao remover o luto recente como critério de exclusão 1313. Park SC, Kim YK. Challenges and strategies for current classifications of depressive disorders: proposal for future diagnostic standards. Adv Exp Med Biol 2021; 1305:103-16.. Além de tanger questões filosóficas e científicas, a patologização das respostas emocionais frente à perda poderia representar - adicionalmente aos dilemas éticos importantes 1414. Zachar P. Grief, depression, and the DSM-5: a review and reflections upon the debate. Rev Latinoam Psicopatol Fundam 2015; 18:540-50.,1515. Kaczmarek E. Promoting diseases to promote drugs: the role of the pharmaceutical industry in fostering good and bad medicalization. Br J Clin Pharmacol 2021; 1-6. - uma oportunidade para alavancar a prescrição dos psicofármacos e promover intervenções farmacológicas - a “farmaceuticalização” aplicada ao cotidiano, seja ela intercedida por profissionais da saúde ou não, via automedicação 1616. Camargo Jr. KR. Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário. Cad Saúde Pública 2013; 29:844-6.,1717. Esher A, Coutinho T. Uso racional de medicamentos, farmaceuticalização e usos do metilfenidato. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:2571-80.. O manejo farmacoterapêutico do luto recente com antidepressivos ou ansiolíticos, por exemplo, não é somente uma alternativa gravemente simplista (i.e., a busca por uma “bala mágica” ou panaceia universal), mas também falha: não só, em grande parte das pessoas, a vivência do luto pode fazer parte da sua resolução adequada (o que, por si só, já contrapõe a visão de que ela deveria ser suprimida farmacologicamente), mas também levando em conta a escassez de evidências claras que justifiquem esse tipo de intervenção 1818. The Lancet. Living with grief. Lancet 2012; 379:589.,1919. Kleinman A. Culture, bereavement, and psychiatry. Lancet 2012; 379:608-9..

A utilização de medicamentos psicotrópicos pela população é feita, por vezes, de maneira excessiva, seja por automedicação ou erro de prescrição 2020. Rassool GH. The rational use of psychoactive substances. Nurs Stand 2005; 19:45-51.. O seu uso inapropriado pode ser associado à tolerância, a intoxicações, à dependência química e a interações imprevisíveis com outros fármacos 2121. Preuss CV, Kalava A, King KC. Prescription of controlled substances: benefits and risks. Treasure Island: StatPearls Publishing; 2021., implicando em prejuízos à vida social do indivíduo, além do luto já vivenciado. O Brasil possui, em média, o consumo de 500 milhões de apresentações (caixa/frasco) de psicofármacos por ano, com até 70% podendo representar agentes benzodiazepínicos 2222. Laureano FRC, Falone VE, Amaral-Filho WN, Amaral WN. Medicamentos psicotrópicos: uso, prescrição e controle. Rev Goiana Med 2015; 47:22-6., que são empregados desde o tratamento de transtornos de ansiedade e sono até quadros de epilepsia e como adjuvantes em procedimentos anestésicos, com risco grande de desenvolvimento de dependência frente ao uso indiscriminado.

Um estudo realizado em Curitiba (Paraná), em 2017 2323. Fávero VR, Sato MDO, Santiago RM. Uso de ansiolíticos: abuso ou necessidade? Visão Acadêmica 2017; 18:98-106., constatou que 84,4% das indicações de uso de psicofármacos - especialmente os ansiolíticos - pelos entrevistados foram realizadas por médicos, principalmente clínicos gerais (47%), psiquiatras (25%) e neurologistas (15,6%). Os usuários que afirmaram já terem recebido o medicamento de conhecidos somavam 25%, e 15,6% disseram ter utilizado sem prescrição, embora a venda desses medicamentos seja controlada. As principais queixas que levaram à utilização incluíam insônia (62,5%), depressão (53,1%) e ansiedade (43,8%), mesmo que alguns dos entrevistados tivessem usado sem acompanhamento profissional e, possivelmente, não apresentassem um diagnóstico formal. O tempo de uso ultrapassava um ano em 68,7%, com 30% dos entrevistados relatando tentativas prévias de descontinuar o tratamento medicamentoso ao menos uma vez. O insucesso em deixar os medicamentos é frequentemente associado ao retorno das queixas principais, como nervosismo, insônia, agitação e inquietude, predispondo um padrão de consumo oscilante dos fármacos.

Fatores estressores são desencadeantes/agravantes de transtornos mentais e, consequentemente, intensificadores do abuso de drogas lícitas, como álcool, tabaco e medicamentos, além de drogas ilícitas 2424. Pfefferbaum B, North CS. Mental health and the Covid-19 pandemic. N Engl J Med 2020; 383:510-2.,2525. Clay JM, Parker MO. Alcohol use and misuse during the COVID-19 pandemic: a potential public health crisis? Lancet Public Health 2020; 5:e259.. Especialmente nos últimos dois anos, pode-se supor a importância da pandemia e seus impactos como fatores críticos para o aumento da medicalização associada ao uso de psicofármacos, seja com uso racional ou não. De fato, ao comparar o primeiro trimestre de 2020 (período anterior/concomitante aos primeiros casos no país) e 2021 (vigência da pandemia), houve aumento considerável na venda de vários psicotrópicos no Brasil: esse é o caso dos antidepressivos bupropiona (137%), amitriptilina (41,5%), escitalopram (37,9%) e trazodona (17,4%), do benzodiazepínico bromazepam (120%) e do hipnótico zopiclona (29,3%) 2626. Brasil. Consultar dados de vendas de medicamentos controlados, antimicrobianos e outros. https://www.gov.br/pt-br/servicos/consultar-dados-de-vendas-de-medicamentos-controlados-antimicrobianos-e-outros (acessado em 25/Mai/2021).
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. Cabe ressaltar que esses aumentos não são constantes ao comparar os mesmos períodos com anos anteriores, reforçando a associação com a pandemia e aumento agudo atual. Embora não seja uma surpresa, o aumento na venda desses medicamentos durante a pandemia deve ser avaliado de forma crítica e cautelosa: não se pode excluir o aumento esperado na incidência de transtornos psiquiátricos durante a pandemia 22. Bao Y, Sun Y, Meng S, Shi J, Lu L. 2019-nCoV epidemic: address mental health care to empower society. Lancet 2020; 395:e37-8. nem mesmo subestimar a importância do manejo terapêutico em casos adequados, o que justificaria, ao menos, uma parcela importante desses números.

A medicalização e farmaceuticalização fazem parte da cultura brasileira, especialmente em alguns nichos da população leiga, que chega a considerar um atendimento de saúde insuficiente caso não seja associado à prescrição de medicamentos 2727. Zorzanelli RT, Giordani F, Guaraldo L, Matos GCD, Brito Junior AGD, Oliveira MGD, et al. Consumo do benzodiazepínico clonazepam (Rivotril(r)) no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2009-2013: estudo ecológico. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:3129-40.. Contudo, apesar da indicação de psicofármacos ser uma prática comum em situações extremas, seu uso racional deveria ser preconizado sempre 2828. Fundação Oswaldo Cruz. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19: psicofármacos na COVID-19. https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/41826/2/Cartilha_Psicofarmacos.pdf (acessado em 25/Mai/2021).
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,2929. Banerjee D. The COVID-19 outbreak: crucial role the psychiatrists can play. Asian J Psychiatr 2020; 50:102014., mantendo seu emprego restrito a situações que apresentem respaldo em evidências. O momento de pandemia é sensível quanto ao impacto da prescrição e uso não racional - e até mesmo abusivo - de medicamentos, e suas implicações se estendem para além de fármacos empregados diretamente no contexto da COVID-19. A criação do World Smart Medication Day (Dia Mundial da Medicação Inteligente), em 6 de maio de 2021 3030. International Union of Basic & Clinical Pharmacology. World Smart Medication Day. https://iuphar.org/clinical-division/world-smart-medication-day (acessado em 25/Mai/2021).
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, vai ao encontro dessa demanda ao estimular medidas de educação que orientem o uso racional de medicamentos no mundo todo e aumentar a visibilidade sobre o assunto, haja vista o fardo do uso inapropriado em gerar prejuízos à saúde e ônus ao sistema de saúde global. No caso da farmaceuticalização do luto, a falta de clareza quanto aos benefícios, associada à possibilidade de riscos frente ao emprego de psicofármacos (p.ex.: iatrogenia, interações medicamentosas), e a interferência no processo natural de recuperação são graves 3131. Guina J, Rossetter SR, Derhodes BJ, Nahhas RW, Welton RS. Benzodiazepines for PTSD: a systematic review and meta-analysis. J Psychiatr Pract 2015; 21:281-303.. A superação do luto não deveria ser encarada como uma isenção da sua vivência ou um “apagamento da memória associada” a ele, mas como adaptação e transposição de uma resposta emocional que não deve, arbitrariamente, ser suprimida ou eliminada antes de uma avaliação adequada do paciente, junto ao seu contexto biopsicossocial 1818. The Lancet. Living with grief. Lancet 2012; 379:589.,1919. Kleinman A. Culture, bereavement, and psychiatry. Lancet 2012; 379:608-9..

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Revisado
    08 Jul 2021
  • Aceito
    19 Jul 2021
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br