Resumos
O aborto legal nos casos de gravidez resultante de estupro é previsto no Brasil desde 1940. No entanto, o acesso a esse direito ainda é muito restrito, havendo inúmeras barreiras que dificultam o acesso das mulheres aos serviços de referência que realizam o procedimento. Este artigo discute a trajetória das mulheres que realizaram aborto por estupro entre 2000 e 2018 em um hospital público de referência na cidade de Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil). Trata-se de um estudo qualitativo, documental e retrospectivo, que utilizou o conceito das Rotas Críticas para compreender as dificuldades enfrentadas, as decisões tomadas diante da violência sexual e da descoberta da gravidez e as consequências oriundas dessa situação. Os dados foram coletados dos prontuários clínicos das mulheres, totalizando 127 casos. A partir da análise de conteúdo, foram traçadas três categorias que se inter-relacionam, sendo ordenadas de modo a explicitar a sequência de fatos, ações e intercorrências na vida das mulheres, de acordo com a dinâmica das rotas críticas produzidas: entre o segredo da violência e o silenciamento do direito; o adoecimento psíquico e a desorganização social; fluxos institucionais: validação da palavra e objeção de consciência. Percebeu-se que existe um silenciamento diante da violência sexual, sendo que a realização do aborto legal se mostrou um problema invisibilizado e cercado de estigmas. A desorganização psicossocial decorrente da violência foi agravada pela desinformação, pela precariedade das redes de atendimento e pela objeção de consciência dos profissionais.
Palavras-chave:
Aborto Legal; Violência Sexual; Estupro
Se admite el aborto legal en casos de embarazo resultante de violación en Brasil desde 1940. Sin embargo, el acceso a este derecho sigue siendo muy restringido, con muchas barreras que dificultan el acceso de las mujeres a los servicios de referencia que realizan el procedimiento. Este artículo discute la trayectoria de las mujeres que tuvieron abortos por violación entre 2000 y 2018 en un hospital público de referencia en la ciudad de Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil). Se trata de un estudio cualitativo, documental y retrospectivo, que utilizó el concepto de Rutas Críticas para comprender las dificultades enfrentadas, las decisiones que se adoptaron ante la violencia sexual, el descubrimiento del embarazo y las consecuencias derivadas de esta situación. Se recogieron datos de los historiales clínicos de las mujeres, con un total de 127 casos. A partir del análisis de contenido, se delinearon tres categorías que se interrelacionan, ordenándose para explicar la secuencia de hechos, acciones y complicaciones en la vida de las mujeres, de acuerdo con la dinámica de las rutas críticas: entre el secretismo de la violencia y el silenciamiento de la ley; la enfermedad psíquica y la desorganización social; y los flujos institucionales: validación de la palabra y objeción de conciencia. Se notó que hay un silenciamiento frente a la violencia sexual, y la realización del aborto legal demostró ser un problema invisibilizado y rodeado de estigmas. La desorganización psicosocial derivada de la violencia se agravó por la desinformación, las redes de atención precarias y la objeción de conciencia de los profesionales.
Palabras-clave:
Aborto Legal; Violencia Sexual; Violación
Introdução
Estima-se que uma em cada três mulheres no mundo sofreu violência por parceiro íntimo ou violência sexual em algum momento de suas vidas 11. Starrs AM, Ezeh AC, Barker G, Basu A, Bertrand JT, Blum R, et al. Accelerate progress - sexual and reproductive health and rights for all: report of the Guttmacher - Lancet Commission. Lancet 2018; 391:2642-92.. No Brasil, há um número alarmante de estupros, com um aumento de 4,1% de casos notificados entre os anos de 2014 e 2018. Em 2018, foram notificados 180 estupros por dia 22. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019.. As consequências dessa violência afetam a saúde física e mental das vítimas, dificultando suas conquistas sociais e sua manutenção socioeconômica 33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11)..
Segundo a lei brasileira, o estupro é um crime contra a liberdade sexual. Zapater 44. Zapater M. Pode a lei penal impedir que mulheres sejam sexualmente assediadas? In: Bueno S, Lima RS, organizadores. Visível e invisível: a vitimização das mulheres no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019. p. 29-36. atribui a esse crime a natureza de violação de direitos humanos. Quando a vítima for menor de 14 anos, a relação sexual, ou prática de ato libidinoso, independentemente do consentimento, é considerada como estupro de vulnerável. Isso se deve ao entendimento jurídico de que, até essa idade, a pessoa ainda não tem plena capacidade de decidir sobre seus atos, o que também se aplica às pessoas que, por alguma incapacidade, momentânea ou permanente, não tenham condições de consentir, devido a alguma deficiência ou por estar sob efeito de substâncias psicoativas 55. Brasil. Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Diário Oficial da União 2009; 10 ago..
A gravidez indesejada pode ser uma das consequências do estupro, ocorrendo em aproximadamente 7% dos casos 33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11).,66. Blake MD, Drezett J, Machi GS, Pereira VX, Raimundo RD, Oliveira FR, et al. Factors associated with the delay in seeking legal abortion for pregnancy resulting from rape. Int Arch Med 2015; 8:41-2.. Descobrir uma gestação após a violência sexual é, muitas vezes, percebido como uma nova violência 77. Lima MCD, Larocca LM, Nascimento DJ. Abortamento legal após estupro: histórias reais, diálogos necessários. Saúde Debate 2019; 43:417-28. e pode desencadear reações psicológicas e sociais complexas 88. Drezett J. Aspectos biopsicossociais da violência sexual. Jornal da Rede Feminista de Saúde 2000; 22:9-12.,99. Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. Apesar de estar previsto em lei desde 1940, a realização do aborto nesses casos ainda não é um direito garantido no Brasil, e as mulheres percorrem longos caminhos na busca pelo procedimento 77. Lima MCD, Larocca LM, Nascimento DJ. Abortamento legal após estupro: histórias reais, diálogos necessários. Saúde Debate 2019; 43:417-28.. A escassez de serviços é um dos entraves, e os atendimentos, quando realizados, são, muitas vezes, marcados por julgamentos morais, hostilidade e discriminação, sendo mais uma fonte de violência 1010. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:563-72..
Este artigo discute a busca pelo aborto legal após um estupro, considerando a trajetória realizada pelas mulheres desde a ocorrência da violência sexual até a realização do procedimento. Uma vez que a literatura referente ao tema é escassa no Brasil, sendo a maioria das pesquisas oriundas de grandes centros das regiões Sudeste e Nordeste do país 33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11)., contribuiremos para o entendimento das dinâmicas que envolvem o aborto legal aportando dados da Região Sul.
Metodologia
Esta é uma pesquisa retrospectiva documental, de cunho qualitativo, realizada em um serviço de referência para aborto legal em um hospital público de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, por meio da análise dos prontuários de mulheres que sofreram violência sexual e realizaram o aborto legal entre 2000 e 2018. A equipe técnica desse serviço é composta por profissionais das áreas médica, enfermagem, psicologia e serviço social. A média de casos atendidos até 2013 foi de dois por ano, havendo um crescimento gradativo que chega a um total de 29 abortos legais em 2018, com uma média de 18 casos anuais nos últimos cinco anos analisados. Os dados da história, sintomas psicológicos ou clínicos e demais informações pertinentes à paciente e à violência sofrida, bem como a discussão das questões que envolveram a tomada de decisão sobre o aborto, protocolos preenchidos e encaminhamentos realizados, foram registrados nos prontuários clínicos. Até o ano de 2016, os dados foram coletados em prontuários físicos e nos demais anos, em prontuários eletrônicos.
A (re)construção da série histórica de abortos por estupro foi realizada em duas etapas. A primeira ocorreu a partir da associação dos diagnósticos relacionados à violência sexual e à gravidez, de acordo com o Classificação Internacional de Doenças (CID-10) 1111. Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10. São Paulo: Edusp/Porto Alegre: Artmed Editora; 1993.: Y05 Agressão sexual por meio de força física; Y04 Agressão por meio de força corporal; T742 Abuso sexual; Z35.1 Supervisão de gravidez com história de aborto; Z32 Exame ou teste de gravidez; Z32.0 Gravidez (ainda) não confirmada; Z32.1 Gravidez confirmada. Analisou-se também a relação de abortos por razões médicas e legais (CID O04). O total de casos encontrados foi de 223, dos quais, após a leitura dos prontuários, 96 foram descartados por não se tratar de aborto relacionado à violência sexual ou o aborto não ter sido o desfecho. Optou-se por excluir os casos em que o aborto não foi realizado, devido à falta de registros nos prontuários referentes a essas situações. Outros dois casos foram excluídos pela não localização do prontuário físico, resultando em um total de 127 casos de aborto legal por estupro atendidos no período.
As informações obtidas foram submetidas à análise de conteúdo 1212. Minayo MCS, Sanches O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad Saúde Pública 1993; 9:239-62., por possibilitar, além da descrição das ocorrências, a compreensão dos aspectos subjetivos, tais como valores, crenças, atitudes e opiniões relatadas pelas mulheres e registradas nos prontuários. As categorias de análise foram baseadas no conceito de rotas críticas de Sagot 1313. Sagot M. A rota crítica da violência intrafamiliar em países latino-americanos. In: Meneghel SN, organizador. Rotas críticas mulheres enfrentando a violência. São Leopoldo: Editora Unisinos; 2007. p. 23-50., que discute o processo de busca de ajuda como forma de retraçar os caminhos e decisões tomadas pelas mulheres para sair da situação de violência. Nos prontuários, buscamos identificar as trajetórias percorridas para o acesso ao direito do aborto legal. A rota se inicia com a decisão da mulher de romper o silêncio sobre o estupro e segue com a identificação das dificuldades enfrentadas e do impacto da violência e da experiência institucional sobre sua vida. Nossa análise identificou o percurso (rotas críticas) e as dificuldades enfrentadas (nós críticos), explicitando fatores que inibiram ou impulsionaram as mulheres na busca pelo aborto legal após a violência sexual e a descoberta da gravidez. Esses fatores, além do percorrido geográfico, incluíram os aspectos biopsicossociais envolvidos na situação.
Após a leitura dos prontuários, os resultados foram divididos em três categorias de análise: (1) entre o segredo da violência e o silenciamento do direito; (2) o adoecimento psíquico e a desorganização social; (3) fluxos institucionais: validação da palavra e objeção de consciência. Essas categorias se inter-relacionam e demonstram a sequência de fatos, ações e intercorrências na vida das mulheres de acordo com a dinâmica das rotas críticas produzidas. Para garantir o anonimato, o nome das participantes foi codificado com letras e números (sendo 1 o caso mais antigo e 127 o mais recente).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (CAAE 98117718.5.0000.5329 e parecer nº 2.926.060).
Resultados e discussão
Na Tabela 1, apresentamos as características gerais dos 127 casos de aborto legal por violência sexual atendidos no período.
Dos 127 casos, a maioria (60%) tinha mais de 18 anos, sendo 23% menores de 14 anos. As idades variaram de 10 a 42 anos, sendo a idade média de 22 anos. A maior parte das mulheres era branca (77%), solteira (75%), com Ensino Fundamental incompleto (34,6%) e morava em Porto Alegre e Região Metropolitana (73%). Quanto à ocupação, 33% tinham trabalho remunerado e 55% eram estudantes. Em 30% dos casos, a violência foi a primeira relação sexual e em 64% tratava-se da primeira gravidez. A violência foi um episódio único em 74% dos casos, e 68,5% comunicaram o fato à polícia. Com relação aos agressores, 45% eram desconhecidos da vítima; os meios de coerção usados na violência foram uso de força física (42%), ameaças (34%), arma/faca (25%) e uso de substância psicoativa (27%). De acordo com o artigo 217-A da Lei nº 12.015/200955. Brasil. Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal e revoga a Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Diário Oficial da União 2009; 10 ago., 55% dos casos caracterizaram estupro de vulnerável: 23% de adolescentes menores de 14 anos; 5% de mulheres maiores de 18 anos com deficiência intelectual e 27% por estarem sob efeito de substância psicoativa no momento da agressão sexual. O perfil da amostra complementa e qualifica a análise qualitativa apresentada a seguir.
Entre o segredo da violência e o silenciamento do direito
Esta categoria evidencia o segredo em relação à violência sexual e apresenta fatores que inibiram ou retardaram a busca de ajuda. A negação, o desejo de esquecer, a culpa, o estigma e a desinformação sobre o direito ao aborto foram os principais aspectos envolvidos nessa dinâmica entre o segredo e o silenciamento. Nossos dados demonstraram que muitas mulheres acreditavam que guardar em segredo a violência sofrida permitiria esquecer o ocorrido e seguir a vida. O rompimento do segredo se dá com a descoberta da gravidez, como vemos nas descrições a seguir:
“Diz que foi a pior coisa que aconteceu em sua vida e que só queria esquecer, não contar para ninguém e esperar passar, mas com a gravidez seus planos desmoronaram” (B115, 20 anos).
“Disse para a avó que havia se desentendido com o namorado e por isso estava chorando (...) só contou para o namorado quando se sentiu estranha, enjoada, com os seios doloridos, suspeitando estar grávida” (Y91, 19 anos).
Estudos apontam que somente 10% dos casos de violência sexual são denunciados à segurança pública 22. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019.,33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11).. Destes, apenas metade recebe os cuidados profiláticos de emergência nos serviços de saúde 99. Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021., o que nos dá a amplitude social dos relatos acima, nos quais o segredo se torna uma estratégia para evitar o trauma, a culpa e o estigma social.
O silenciamento também é produto da falta de informação e esse é um dos motivos pela longa trajetória até a chegada ao hospital de referência. O hospital foi o primeiro serviço procurado em apenas 19 casos (15%), evidenciando a desinformação das mulheres em relação ao direito de interromper a gestação. O relato dos atendimentos revela que as mulheres só tomam conhecimento sobre o direito ao aborto após a confirmação da gravidez e isso ocorre por diferentes meios e setores da sociedade, entre eles: serviços de saúde (32%); órgãos de segurança ou proteção (39%) - delegacias, judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar; amigo(a) (9%); ainda, a partir de 2015, a informação foi acessada via Internet (11%). Nesses casos, as mulheres declaram ter digitado a palavra “aborto” ou “como fazer um aborto” e encontrado notícias ou informes sobre violência sexual e aborto legal. Dessa forma, a busca de informações pela Internet e a construção de uma rede de atendimento com diversos setores da sociedade aparecem como elementos potencializadores no acesso ao direito do aborto. A atenção primária à saúde revelou-se uma referência importante na busca de ajuda pelas mulheres, assim como os órgãos de segurança e proteção, representando juntos quase 70% das fontes de informação sobre o aborto legal.
No entanto, esses serviços e recursos também apresentaram barreiras de acesso, como julgamentos morais, precariedade de infraestrutura, burocracia, falta de profissionais e desinformação sobre leis e fluxos, como mostram os relatos a seguir:
“Buscou atendimento no hospital F na sexta passada, mas nesse dia não tinha médico que atendesse a essas situações. Foi orientada a buscar outro hospital (...) sentiu-se julgada na acolhida da emergência porque quando chegou, a médica lhe disse que não era tão simples chegar e já fazer o aborto” (S130, 30 anos).
“Foi ao hospital Z onde descobriu a gravidez por ecografia abdominal devido a dores no baixo ventre, mas não contou sobre o estupro. Depois foi ao hospital F para solicitar o aborto. Foi orientada a voltar na semana seguinte. Uma amiga a levou ao centro de referência M e lá uma assistente social a acompanhou ao hospital G, mas disseram que estava superlotado devido aos partos. Então chegou aqui já com 17 semanas de gestação” (P99, 24 anos).
“Sentiu-se pior ainda na delegacia da mulher (...) exposta, humilhada porque todos os presentes ouviram seu relato. Ficou lá 3 horas e seu depoimento foi interrompido várias vezes por outras situações que chegavam pessoalmente ou pelo telefone. A atendente da Delegacia da Mulher comentou ‘que era uma pena fazer um aborto de gêmeos’ - isso piorou a sua culpa. Diz que essa fala ainda ecoa em sua cabeça após o aborto” (S37, 36 anos).
“Na delegacia da mulher foi encaminhada à defensoria pública e marcaram uma audiência com a juíza para autorizar o aborto” (J133, 21 anos em 2018).
Vemos que a desinformação que acomete as mulheres afeta igualmente a rede de serviços, tanto da saúde como da segurança pública, resultando em encaminhamentos desnecessários ou orientações equivocadas. Os relatos ilustram um percurso que intensifica o trauma da violência sofrida na medida que revitimiza as mulheres.
O medo do julgamento social também estimula a manutenção do segredo da violência. São recorrentes as verbalizações sobre “o porquê de terem ido à festa, de terem bebido, ou até sobre a roupa que vestiam, da culpa por não lembrar precisamente o que aconteceu ou como foram parar naquele lugar depois de terem aceitado uma bebida na festa”. As próprias mulheres questionam seu comportamento, culpabilizando-se pelo acontecido:
“Sente-se culpada. Diz que acredita que se não estivesse de saia isso talvez não tivesse acontecido” (L105, 25 anos).
“Conta que acordou num dos quartos da casa suja de esperma. Sentiu muita vergonha e culpa. Por isso não contou para ninguém (...) imaginou que alguém pudesse ter tido relação sexual com ela, mas logo decidiu fazer de conta que não havia acontecido nada” (D85, 20 anos).
Giugliani et al. 99. Giugliani C, Ruschel AE, Patuzzi GC, Silva MCB. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. falam da culpabilização das vítimas por meio de suas atitudes e comportamentos e da tolerância social em relação à violência sexual, que naturaliza dinâmicas abusivas enraizadas nas desigualdades de gênero e reproduz a cultura do estupro. As mulheres declaram se sentir julgadas pelos profissionais, tanto da saúde quanto das delegacias, e temem que isso se repita com seus familiares. Por isso, muitas decidem não revelar a situação de violência. Em pesquisa de opinião realizada em âmbito nacional, a frase “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas” recebeu a concordância de 42% dos homens e de 37% das mulheres 1414. Bueno S, Lima RS, Pinheiro M, Astolfi R, Santos T, Hanashiro O. A polícia precisa falar sobre estupro. Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas de estupro nas instituições policiais. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2016., o que revela a força com que a avaliação moral incide sobre as mulheres. É um julgamento que desencadeia sentimentos de culpa e responsabiliza a própria mulher pela violência sofrida 77. Lima MCD, Larocca LM, Nascimento DJ. Abortamento legal após estupro: histórias reais, diálogos necessários. Saúde Debate 2019; 43:417-28..
Esta dinâmica, que vai do segredo ao silenciamento, mantém a falta de informação que levou algumas mulheres a testaram alternativas abortivas, como chás ou pílulas, antes de chegarem ao hospital, tentando resolver sozinhas o problema da gravidez:
“Usou 4 comprimidos de cytotec na semana anterior, mas não conseguiu abortar” (L83, 15 anos).
“Usou chás abortivos e medicações que não sabe dizer o nome - tentando abortar” (L62, 34 anos).
Em outros casos, relacionados a crianças e adolescentes, a chegada ao hospital ocorreu por queixas clínicas diversas, como indisposições gástricas ou dores abdominais. A imaturidade cognitiva e psicossocial pode impedir a percepção das alterações físicas associadas à gestação e até o entendimento da violência a que estavam submetidas. A internação hospitalar e a investigação clínica revelaram o diagnóstico da gravidez, rompendo o segredo da violência sexual:
“Foi internada por náuseas, dores abdominais e problemas gástricos, sem melhora. Só então foi feito o diagnóstico de gravidez e aí veio a revelação do abuso sexual pelo padrasto” (E81, 10 anos).
Diversos autores referem que pais e padrastos são os principais agressores sexuais de crianças e adolescentes e apontam a idade precoce como dificultador do entendimento da relação abusiva 1515. Scoldelário AS. A família abusiva. In: Ferrari DCA, Vecina TCC organizadores. O fim do silêncio na violência familiar. São Paulo: Ágora; 2002. p. 95-106.,1616. Ribeiro MA, Ferriani MGC, Reis JN. Violência sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização nas relações familiares. Cad Saúde Pública 2004; 20:456-64..
Acrescentamos que o número reduzido de serviços de referência e a necessidade de um grande deslocamento geográfico na busca do procedimento são obstáculos a serem transpostos, que denotam a insuficiência dessa política pública. Na população estudada, menos de 50% das mulheres eram moradoras da capital, sendo que algumas percorreram mais de 400km para acessar o serviço. Na maioria dos municípios brasileiros, não há locais credenciados para a realização do aborto legal 1010. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:563-72.,1717. Andalaft-Neto J, Faúndes A, Osis MJD, Pádua KS. Perfil do atendimento à violência sexual no Brasil. Femina 2012; 40:301-6.. No país, dos 68 hospitais de referência cadastrados, apenas 37 tinham realizado pelo menos um aborto legal no período de 2013 a 2015 1010. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:563-72., o que evidencia a desigualdade no acesso como importante nó crítico no exercício do direito ao aborto 1818. Jacobs MG, Boing AC. O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019? Cad Saúde Pública 2021; 37:e00085321..
O adoecimento psíquico e a desorganização social
Nesta categoria, apontamos para as diferentes reações psíquicas decorrentes da violência, como medo, vergonha, raiva, nojo, desvalia, anedonia, alterações de sono e ideação suicida, e discutimos seu impacto em diversas esferas da vida. Identificamos que as reações emocionais dificultaram a busca de ajuda, prejudicaram os recursos psicossociais da vítima para responder ao trauma e se caracterizaram como obstáculos de acesso ao aborto legal:
“Refere que sente um medo intenso, tem a sensação que os agressores vão invadir sua casa. Não suporta a presença do companheiro. Sente raiva e nojo do feto” (K25, 28 anos).
“Mostra-se assustada, revoltada, chorosa, sentimentos negativos em relação à gravidez e ao feto. Diz que sua vida acabou. Não consegue dormir, nem comer, nem trabalhar. Pediu demissão” (C20, 27 anos).
“Tem dificuldade de dormir, de comer, de cuidar da filha de 4 anos” (L105, 25 anos).
Os relatos que analisamos corroboram estudos que demonstram a intensidade dos quadros clínicos e das reações psíquicas desencadeados pelas situações de violência sexual, desde os mais imediatos, como vergonha, medo, raiva e nojo 1414. Bueno S, Lima RS, Pinheiro M, Astolfi R, Santos T, Hanashiro O. A polícia precisa falar sobre estupro. Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas de estupro nas instituições policiais. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2016.,1919. Nunes MCA, Morais NA. Violência sexual e gravidez: percepções e sentimentos das vítimas. Rev Spagesp 2016; 17:21-36., até quadros crônicos de uso abusivo de álcool e/ou outras drogas ou de desencadeamento ou agravamento de outras doenças psíquicas 11. Starrs AM, Ezeh AC, Barker G, Basu A, Bertrand JT, Blum R, et al. Accelerate progress - sexual and reproductive health and rights for all: report of the Guttmacher - Lancet Commission. Lancet 2018; 391:2642-92.. Além disso, identificamos que a gravidez decorrente da violência sexual pode ser vivida como uma nova situação traumática, intensificando o quadro sintomático já estabelecido como sequela da violência 88. Drezett J. Aspectos biopsicossociais da violência sexual. Jornal da Rede Feminista de Saúde 2000; 22:9-12.. Pensamentos de morte, com ou sem tentativas prévias de suicídio, foram identificados em alguns casos:
“Chora muito, tem insônia, pensamentos de morte (...). Não consegue acessar a memória da situação e isso a deixa muito ansiosa” (E87, 31 anos - estupro desacordada).
“Mostra-se envergonhada e culpada. Demonstra grande fragilidade psíquica. Ainda com pensamentos de morte e ruína. Muito fechada, vínculos afetivos e sociais escassos e frágeis. Pesadelos recorrentes intensos. Medo de ficar sozinha e de sair na rua. Duas tentativas de suicídio após a violência sexual: uma tomando duas cartelas e meia de remédios - justificou para a família a tentativa de suicídio dizendo que estava muito sozinha na cidade X e estava deprimida [pois não contou nada sobre a violência sexual]. Quando teve atraso menstrual e percebeu a gravidez, tentou suicídio novamente, desta vez na casa da mãe, por enforcamento” (N97, 19 anos).
Um estudo realizado com 37 mulheres vítimas de violência sexual encontrou alterações na qualidade do sono, aumento da sensação de medo de ter contraído alguma infecção sexualmente transmissível, medo de reação e julgamentos alheios, dificuldade nas relações interpessoais, impacto negativo na qualidade da vida sexual, além de percepção negativa sobre si e sobre o próprio corpo. Também foi detectada a presença de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e diminuição da autoestima, com correlação significativa entre depressão e TEPT 2020. Souza FBC. Consequências emocionais de um episódio de estupro na vida de mulheres adultas [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2013.. Nos relatos acima, vemos que a ideia do suicídio, diante da desorganização psíquica e da falta de informação, foi uma tentativa de resolver o problema da gravidez. As lesões autoprovocadas, entre elas as tentativas de suicídio, nem sempre são analisadas ao se discutir esse tipo de violência 2121. Engel CL. A violência contra a mulher. In: Fontoura N, Resende M, Querino AC, organizadores. Beijin +20 anos: avanços e desafios no Brasil contemporâneo. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2020. p. 159-216..
Abandono do trabalho, desistência dos estudos, dificuldades com os filhos, afastamento do companheiro, da família e de amigos fazem parte da desorganização que caracteriza essa situação e, em nossos dados, esses elementos estão diretamente relacionados à violência sexual e à gravidez indesejada:
“Não foi às aulas por vários dias. Tentou retomar, mas viu os agressores e teve a sensação que riam dela e então abandonou de vez a faculdade” (N97, 19 anos).
“Percebe que não está bem. Não conseguiu manter o emprego (...) agora tem tido pesadelos constantes, de perseguição. Tem medo de encontrar os homens que a violentaram (...) A família se afastou porque era contra o aborto (J132, 39 anos).
“Não manteve mais relação sexual com o marido depois disso (...) tem faltado ao trabalho” (S130, 30 anos).
“Não sai mais de casa e não deixa os filhos saírem. Desistiu de iniciar no emprego” (T90, 25 anos).
Percebemos que a desorganização na vida cotidiana amplifica o sofrimento e os riscos de adoecimento psíquico, acarreta novos obstáculos e impede a retomada do modo de vida anterior à violência. Os impactos de um estupro e de uma consequente gravidez afetam o mundo laboral e as relações como um todo, causando prejuízos sociais, ocupacionais e financeiros 33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11).. São problemas que atingem também a família e as pessoas próximas e que desagregam laços sociais, dificultam relações de cuidado e o acesso a recursos 33. Cerqueira D, Coelho D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2014. (Nota Técnica, 11)..
Fluxos institucionais: validação da palavra e objeção de consciência
Esta categoria analisa os obstáculos que se apresentam na trajetória de busca pelo aborto, mesmo após a descoberta do direito e chegada ao serviço de referência. São fluxos relacionados ao escrutínio da violência e à negativa de atendimento por objeção de consciência. Os registros hospitalares são marcados pela preocupação da equipe em buscar a veracidade dos fatos, sendo que, para a realização do aborto legal, a mulher deve ser qualificada como vítima de estupro. É isso que garante a ela o acesso ao direito. Como vemos nos registros, a cada caso essa legalidade precisa ser reconstruída:
“Não há indicativos de falsa alegação de violência” (M107, 32 anos).
“De acordo com a avaliação psicológica a confusão de memória da paciente é comum nesse tipo de situação traumática (...) a nova data do estupro informada pela paciente foi reconstituída pela busca de ajuda da amiga e agora está de acordo com o tempo gestacional, bem como a coerência do relato da paciente” (E87, 31 anos).
Percebemos que a chegada de uma mulher vítima de estupro no serviço traz uma certa suspeição sobre o que aconteceu e exige que as equipes validem o relato para que o direito ao aborto legal possa ser exercido 2222. Diniz D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét 2014; 22:291-8.. Trata-se de processo investigativo para provar a violência sofrida e que serve para atestar o “status de vítima”, na medida em que se produz uma verdade sobre o estupro. Fassin & Rechtman 2323. Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009. falam sobre a economia moral da transformação de uma pessoa em vítima como um processo que leva em conta os efeitos simbólicos de um trauma, enquanto demanda a adequação da narrativa aos valores morais, retirando a autonomia do sujeito vitimado e objetificando-o.
O acolhimento e a avaliação realizados pela equipe multiprofissional do serviço de referência obedecem a fluxos internos e a critérios técnicos estabelecidos pelas normativas do Ministério da Saúde 2424. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Norma técnica. 3ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Caderno 6)., de modo que fique demonstrada a legitimidade da indicação do aborto legal. Entretanto, mesmo após essa avaliação e assinatura de todos os termos requeridos pelo protocolo, durante a internação, novos questionamentos sobre a decisão da mulher podem refazer o processo decisório sobre o aborto, como forma de (re)validar a decisão de abortar. São vários os sinais presentes nos prontuários que indicam a busca constante da (re)confirmação da violência e da decisão tomada:
“Na baixa hospitalar médico plantonista retoma a pergunta sobre a certeza da decisão do aborto” (E87, 31 anos).
“Na internação foi realizada nova ecografia para confirmar a idade gestacional” (T90, 25 anos).
Esses questionamentos podem ser entendidos como uma busca de proteção do profissional da área médica contra possíveis riscos de criminalização, que fazem parte do imaginário social sobre o abortamento, mas que representam mais um nó crítico da rota percorrida, pois produzem desgaste, dúvidas e sofrimento. Observa-se que a suspeição sobre a verdade do estupro e sobre a decisão pelo aborto legal desencadeiam outras violências, criando cenas e sensações que se somam ao trauma anterior:
“Diz que a internação foi uma experiência muito difícil, que ficou assustada, sentiu muita dor (...) a pior parte foi ver o feto! Não queria ver, mas o médico insistiu por três vezes e ela acabou concordando (...) conta que aquela imagem a acompanha e que essa foi a parte mais difícil e que acaba voltando em sua memória” (V89, 36 anos).
Assim, mesmo quando a mulher tem acesso ao aborto permitido por lei, ela não escapa, em diversas situações, de ser punida por esse ato, seja ao ser questionada várias vezes sobre sua escolha, seja sendo exposta a situações como a descrita acima, confrontando sua decisão. A inclusão de um modelo humanizado de atenção às mulheres em abortamento busca garantir uma prática segura e efetiva, dando ênfase à acolhida, ao não julgamento, às orientações e ao cuidado 2525. Ministério da Saúde. Atenção humanizada ao abortamento. Norma técnica. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Caderno 4).. Entretanto, percebe-se que a rotina clínica ainda apresenta lacunas e confusões a esse respeito. Nos prontuários, o aborto legal fica mesclado com as condutas relacionadas ao pré-natal e à gravidez desejada, o que pode ser percebido pelo uso de diversos descritores clínicos nas internações para aborto legal:
“Solicitados exames de pré-natal e de abuso sexual. (...) Indução do trabalho de parto” (K25, 28 anos).
“Paciente bem, boa movimentação fetal” (B72, 12 anos).
Segundo Madeiro & Diniz 1010. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciênc Saúde Colet 2016; 21:563-72., crenças religiosas e o medo do estigma permeiam as práticas ligadas ao aborto na área da saúde e acabam afastando os profissionais das equipes, pois muitos médicos temem ser vistos como “aborteiros” pelos seus pares. O uso de termos ligados ao pré-natal nos registros que analisamos pode estar ligado a essas crenças e medos, em uma tentativa de transpor os cuidados em saúde da gestante para as condutas do processo de abortamento.
O medo de ser incriminado também pode desencadear questionamentos sobre a veracidade da violência sexual sofrida pela mulher. Em nossa análise, identificamos alegações de objeção de consciência como mais um nó crítico. Nesses casos, médicos e outros profissionais da saúde recusaram-se a efetuar os procedimentos necessários para a realização do aborto, declarando impedimento por ditames morais, religiosos ou éticos.
“Interno paciente e aguardo profissional que concorde com interrupção (...) converso com paciente sobre decisão da equipe em não iniciar a interrupção por conflito ético” (anotação médica - F42,17 anos).
“Anestesiologista registra no prontuário ser contrário ao aborto, eximindo-se da assistência por alegação de objeção de consciência” (A5, 12 anos).
“Por não ser uma urgência, ficará para o dia seguinte a retomada do procedimento [anotação médica]. Paciente ouviu a médica do setor dizer que é contra o aborto e que deveria deixar a gestação chegar a termo e dar a criança para adoção” (L17, 37 anos).
Nos recortes acima, vemos a objeção de consciência explícita, na qual um profissional nega publicamente a realização do procedimento, mas também vemos comportamentos implícitos, como deixar “para o dia seguinte a retomada do procedimento”. Essas situações demonstram que os fluxos institucionais são um importante nó crítico do percurso de acesso ao aborto legal e obstaculizam a sua realização de forma humanizada. Tanto nos procedimentos burocráticos de validação da palavra como nas nuances de “consciência médica” que levam a tratar um aborto legal como pré-natal ou à alegação de objeção de consciência, vemos uma economia moral que precisa ser denunciada e enfrentada.
É importante ressaltar que a prerrogativa da objeção de consciência prevista no Código de Ética Médica não é um direito absoluto e não pode ser usada na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou caso a negativa traga danos irreversíveis à paciente 2424. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Norma técnica. 3ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Caderno 6).. Diante da negativa de um atendimento em saúde por objeção de consciência, a parte mais gravemente afetada é a pessoa que teve o cuidado negado. A negligência no atendimento de casos de aborto por objeção de consciência é um fenômeno que viola o princípio ético da não maleficência e tem graves consequências para as mulheres, especialmente para aquelas mais vulneráveis e marginalizadas. Uma mulher que teve um aborto negado pode ser obrigada a continuar com a gravidez indesejada, ou então recorrer a um aborto clandestino e inseguro 2626. Truong M, Wood SY. Unconscionable. When provides deny abortion care. Montevidéu: International Women's Health Coalition/Mujer y Salud en Uruguay; 2018..
Segundo pesquisa realizada no Brasil, as decisões médicas relativas à realização do aborto legal se diferenciam quando as vítimas são mulheres adultas, para as quais as equipes de saúde tendem a apresentar maior objeção de consciência, pois crianças e adolescentes são mais facilmente percebidas como vítimas inocentes 2222. Diniz D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét 2014; 22:291-8.. Percebe-se uma avaliação social dos crimes sexuais, que tanto pode considerá-los como hediondos, em especial quando envolvem crianças, como pode envolver certa banalização da situação, a partir da imagem que se faz da vítima, de seu comportamento e moralidade 2727. Oliveira EM, Barbosa RM, Moura AAVM, Kossel K, Morelli K, Botelho FF, et al. Atendimento às mulheres vítimas de violência sexual: um estudo qualitativo. Rev Saúde Pública 2005; 39:376-82., o que reproduz a economia moral e a construção social da vítima 2323. Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009.. No entanto, na população analisada, não foi possível verificar diferenças entre os níveis de objeção de consciência em relação à idade das vítimas, estando a alegação presente tanto em casos de adolescentes quanto de mulheres adultas.
Considerações finais
A trajetória percorrida pelas mulheres para realização do aborto por estupro é singular e permeada de obstáculos. O impacto emocional e a tentativa de manter em segredo a violência sofrida somam-se às reações psíquicas que decorrem do trauma, às alterações no comportamento e à desorganização social com perdas afetivas e financeiras.
A desinformação, presente tanto na sociedade quanto na rede de saúde e proteção, foi uma das principais barreiras identificadas, criando encaminhamentos desnecessários, alongando os percursos e postergando a realização do aborto. Este estudo reforça os apontamentos de Machado et al. 2828. Machado CL, Fernandes AMS, Osis MJD, Makuch MY. Gravidez após violência sexual: vivências de mulheres em busca da interrupção legal. Cad Saúde Pública 2015; 31:345-53., indicando que, para além da criação de políticas públicas que atendam a essas situações, é necessário que haja uma adequada divulgação desse direito e dos serviços que podem ser acessados pelas mulheres após uma violência sexual. Além disso, nas circunstâncias em que o aborto é permitido, equipes e gestores de saúde devem assegurar o acesso ao procedimento de modo seguro, adotando uma postura institucional, com as medidas necessárias, pela garantia desse direito.
Ressaltamos a importância da sensibilização e da educação permanente dos profissionais que realizam o atendimento de mulheres que sofreram violência sexual e que buscam o aborto, com ênfase no acolhimento humanizado e no não julgamento 2525. Ministério da Saúde. Atenção humanizada ao abortamento. Norma técnica. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Caderno 4).. É importante destacar que esse trabalho de educação deve se estender aos atores e serviços que compõem a rede ampla de atendimento, tais como os de segurança pública, assistência social, setores do judiciário e do Ministério Público e a rede de saúde como um todo. Como demonstramos, nesses serviços são produzidas situações que agravam as rotas críticas.
Quando apontamos os nós críticos que envolveram a realização do aborto legal, mesmo após a chegada ao serviço de referência, elencamos aspectos ainda pouco visíveis dessa rota. Inferimos que o contexto de ilegalidade contribui para a manutenção do estigma relacionado ao aborto. As alegações de objeção de consciência, por exemplo, oneram o custo do procedimento, na medida em que prolongam o tempo de internação e produzem mais sofrimento. Percebemos o quanto o trabalho relacionado à realização do aborto legal fica à margem de outros cuidados de saúde, por envolver pressões sociais e constantes tensionamentos que dificultam sua implementação de acordo com as diretrizes e normas técnicas.
Este trabalho apresenta limitações, uma vez que a fonte dos dados é restrita a informações e documentos contidos em prontuários, cujo preenchimento foi realizado de modo não padronizado e por diferentes profissionais. Além disso, o estudo restringiu-se a um único serviço e excluiu da análise os casos de mulheres que buscaram o serviço e não realizaram o aborto. Acreditamos que as questões levantadas possam ser ampliadas em pesquisas futuras, que contemplem uma gama maior de serviços, bem como as situações em que o procedimento não foi realizado. No entanto, a análise destacou aspectos problemáticos e que provavelmente se repetem nos escassos serviços de referência em todo país.
Por fim, ressaltamos que questionar o direito ao aborto legal é reafirmar a inferiorização, a objetificação e a culpabilização das mulheres. Os projetos que visam à extinção desse já restrito direito representam um retrocesso social e uma ameaça à construção da equidade de gênero e à democracia.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
25 Nov 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
03 Jun 2022 - Revisado
29 Ago 2022 - Aceito
16 Set 2022