A Reprodução Social como perspectiva metodológica para análise contextualizada das condições de vida e de saúde

La Reproducción Social como perspectiva metodológica para el análisis contextualizado de las condiciones de vida y salud

Marcílio Sandro de Medeiros Lia Giraldo da Silva Augusto André Monteiro Costa Stefania Barca Solange Laurentino dos Santos Isabela Cristina de Miranda Gonçalves Flor Ernestina Martinez-Espinosa Diogo Ferreira da Rocha Sobre os autores

Resumos

Este artigo objetiva discutir o uso da categoria Reprodução Social, proposta por Juan Samaja, na análise sobre condições de vida e de saúde em um contexto de uma unidade de conservação ambiental da Amazônia brasileira. Trata-se de um estudo de abordagem compreensiva sobre os processos da reprodução social que integram a rede de determinação hierarquicamente organizada por meio da análise de interações sociais dos acontecimentos narrados e observáveis, aplicados a matriz de dados. A Reprodução Ecológica da vida na floresta dos ribeirinhos é expressa negativamente na vida biocomunal, pois as estratégias de ação propiciadas pelas Reproduções Política, Econômica e Cultural, ou seja, as ações da política ambiental, não valorizam o modo de vida local. O deficitário acesso aos bens e serviços sociais, incluindo a atenção à saúde, provenientes das Reproduções Política e Tecnoeconômica, repercutem na base material da Reprodução Biocomunal, cujo desfecho são elevadas frequências de queixas de doença e de acidentes de trabalho, como gastroenterites infecciosas, malária, tuberculose, hanseníase e intoxicação por animais peçonhentos. Garantir o acesso aos bens e serviços sociais, em especial à saúde, são imprescindíveis para uma maior resiliência às adversidades da floresta. Conclui-se, então, que a matriz de dados da Reprodução Social possibilitou compreender os processos da reprodução social que integram a rede de determinação hierarquicamente organizada, cujas interações modelaram as condições de vida e de saúde dos ribeirinhos.

Palavras-chave:
Condições de Vida; Diagnóstico da Situação de Saúde; Populações Vulneráveis; Ecossistema Amazônico


Este artículo tiene como objetivo discutir el uso de la categoría Reproducción Social, propuesta por Juan Samaja, en el análisis sobre condiciones de vida y de salud en un contexto de una unidad de conservación ambiental de la Amazonía brasileña. Se trata de un estudio de enfoque integral sobre los procesos de la reproducción social que integran la red de determinación jerárquicamente organizada por medio del análisis de interacciones sociales de los acontecimientos narrados y observables, aplicados a la matriz de datos. La Reproducción Ecológica de la vida en los bosques ribereños es expresada negativamente en la vida biocomunal, pues las estrategias de acción propiciadas por las Reproducciones Política, Económica y Cultural, es decir, las acciones de la política ambiental, no valoran el modo de vida local. El deficiente acceso a los bienes y servicios sociales, incluida la atención a la salud, procedentes de las Reproducciones Política y Tecnoeconómica, repercuten en la base material de la Reproducción Biocomunal, cuyo desenlace son elevadas frecuencias de quejas de enfermedad y de accidentes de trabajo, como gastroenteritis infecciosas, malaria, tuberculosis, lepra e intoxicación por animales venenosos. Garantizar el acceso a los bienes y servicios sociales, especialmente la atención a la salud, es esencial para una mayor resistencia a las adversidades del bosque. Se concluye, entonces, que la matriz de datos de la Reproducción Social permitió comprender los procesos de la reproducción social que integran la red de determinación jerárquicamente organizada, cuyas interacciones modelaron las condiciones de vida y salud de los ribereños.

Palabras-clave:
Condiciones de Vida; Diagnósticos de la Situación de Salud; Poblaciones Vulnerables; Ecosistema Amazónico


Introdução

As unidades de conservação ambiental (UCs) de uso sustentável são áreas protegidas de acordo com a Lei nº 9.985/200011. Brasil. Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Diário Oficial da União 2000; 19 jul. do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que objetivam compatibilizar o uso sustentável de seus recursos naturais e assegurar as condições e meios necessários para a melhoria das condições de vida das populações ribeirinhas, cujo modo de vida é voltado principalmente para a subsistência, sendo baseado no uso intensivo de mão de obra familiar por meio de tecnologias de baixo impacto ambiental derivadas de conhecimentos transmitidos oralmente intergerações e, normalmente, de base sustentável 22. Medeiros R, Araújo FFS. Dez anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza: lições do passado, realizações presentes e perspectivas para o futuro. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; 2011..

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM) é uma das 71 UCs do Estado do Amazonas, Brasil, que compõem o Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC), promulgada pela Lei Complementar nº 53, de 5 de junho de 2007, e é uma das 1.940 que integram também o SNUC. Ambas as políticas citadas dispõem sobre critérios e normas para a criação, recategorização, implantação e, principalmente, gestão das áreas protegidas 33. Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Relatório conclusivo de Auditoria Operacional e Ambiental em Unidades de Conservação Estaduais do Amazonas. https://www.tce.am.gov.br/portal/wp-content/uploads/relatorio_de_auditoria_operacional_e_ambiental_em_ucs.pdf (acessado em 25/Set/2015).
https://www.tce.am.gov.br/portal/wp-cont...
,44. Ministério do Meio Ambiente. Cadastro Nacional de Unidades de Conservação. https://www.mma.gov.br/cadastro_uc (acessado em 25/Set/2015).
https://www.mma.gov.br/cadastro_uc...
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Becker 55. Becker BK. Geopolítica da Amazônia. Estud Av 2005; 19:71-86. afirma que a política de UCs de uso sustentável na Amazônia alterou seu significado, pois começou a ser pensada de forma estratégica para a sobrevivência dos povos da floresta, assim como sua manutenção passou a ser considerada patrimônio comum da humanidade, sobretudo das florestas, da mega diversidade e da água. Por isso, constituiu-se um vetor de desenvolvimento endógeno, diferentemente do outro modelo tecnoindustrial.

Contudo, a presença das populações no interior das áreas naturais protegidas envolve questões controversas, não consensuais entre os sujeitos implicados e negligenciadas do ponto de vista das legislações municipais, estaduais e federais 66. Martins A. Conflitos ambientais em Unidades de Conservação: dilemas da gestão territorial no Brasil. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales 2012; 17:1-11.,77. Veríssimo A, Rolla A, Vedoveto M, Futada SM. Áreas protegidas na Amazônia Brasileira: avanços e desafios. Belém: Imazon/São Paulo: Instituto Socioambiental; 2011..

Neste artigo, expressamos as conclusões derivadas de um estudo de doutorado realizado entre os anos de 2013 e 2018, que objetivou ampliar o conhecimento a respeito das interações entre condições de vida e de saúde das comunidades ribeirinhas em áreas de UCs cogeridas por instituições não-estatais. A fragilidade do sistema de atenção à saúde (e de informações) no contexto da Amazônia Brasileira requereu uma abordagem metodológica que atendesse à complexidade da realidade socioambiental das UCs. Adotou-se, então, uma perspectiva teórica baseada na categoria da Reprodução Social, como proposta por Juan Samaja, por comportar análises interativas em distintos níveis hierárquicos, para compreensão da vida em sua integralidade.

A base conceitual da Reprodução Social aplicada aos temas da saúde de forma integrada

A categoria de Reprodução Social tem sido objeto de amplo debate na teoria social e é definida de distintas formas, com objetivos teóricos-metodológicos diferentes. No marxismo clássico, designa a criação de obras sociais (incluindo o tempo e o espaço) e a produção “espiritual” (imaterial), incluindo a produção material ou a fabricação de coisas, ambos parte do desenvolvimento histórico, e isso implica na reprodução da própria sociedade 88. Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática; 1991..

Na Sociologia da Educação construtivista, Pierre Bourdieu & Jean Claude Passeron, no livro La Reproduction. Éléments Pour une Théorie du Système d’Enseignement (1970) 99. Bourdieu P, Passeron J-C. La Reproduction. Éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit; 1970., utilizam a categoria Reprodução Social na interpretação das relações de poder praticadas pelas instituições educativas. A proposta teórica se assenta na premissa de que as relações de poder, nas sociedades capitalistas, contêm sempre uma dimensão de violência simbólica, ou seja, da imposição de um grupo arbitrário de referentes culturais (saberes, linguagens, normas, valores, representações etc.) dos grupos dominantes ao conjunto da sociedade, como reforço da sua posição privilegiada 1010. Abrantes P. Revisitando a teoria da reprodução: debate teórico e aplicações ao caso português. Análise Social 2011; 46:261-81..

A noção de Reprodução Social, articulada pelo Feminismo Marxista Canadense de Ferguson 1111. Ferguson S. Feminismos interseccional e da reprodução social: rumo a uma ontologia integrativa. Cadernos Cemarx 2017; (10):13-38., objetiva capturar a natureza contraditória e constituída por muitas camadas de subjetividades e posições sociais através de uma perspectiva que insiste no caráter dinâmico e complexo do social, ou seja, se propõe a levar o feminismo da Reprodução Social para além da preocupação estreita das relações gênero/classe, como também do campo econômico.

A Reprodução Social aplicada aos temas da saúde elaborada por Juan Samaja é uma das três perspectivas teóricas da Epidemiologia Crítica no campo da Saúde Coletiva que objetivam compreender os processos sociais, políticos, econômicos, culturais e ambientais, sendo considerados como eventos mediadores da situação de saúde, que integram uma rede de determinações hierarquicamente organizadas 1212. Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública 2013; 31 Suppl 1:S13-27.,1313. Helene LMF, Salum MJL. A reprodução social da hanseníase: um estudo do perfil de doentes com hanseníase no Município de São Paulo. Cad Saúde Pública 2002; 18:101-13..

Castellanos 1414. Castellanos PL. Epidemiologia, saúde pública, situação de saúde e condições de vida: considerações conceituais. In: Barata RB, organizador. Condições de vida e situação de saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 1997. p. 31-75. fala que a reprodução social humana significa tanto atender às necessidades biológicas quanto também àquelas associadas às suas relações ecológicas, políticas e econômicas - mediadas pelo processo de produção e de trabalho - assim como nas formas de consciência e de conduta. As circunstâncias da Reprodução Social dos grupos humanos enfrentadas ao longo da vida, historicamente determinadas, se darão na condição de subordinados ou de vencedores 1515. Castellanos PL. Análises de situación de salud de poblaciones. In: Navarro FM, organizador. Vigilância epidemiológica. Madrid: McGraw-Hill Interamericana; 2004. p. 193-213., sabendo que esses processos se dão pela interação dos membros de diferentes instituições e agrupamentos de uma dada sociedade, visto que aquilo que se reproduz é o ser humano e suas relações, isto é, suas condições de existência ou, como reconceituado por Possas 1616. Possas C. Epidemiologia e sociedade: heterogeneidade estrutural e saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora; 1989., suas condições de vida e de saúde.

A base da Reprodução Social aplicada aos temas da saúde elaborada por Juan Samaja foi concebida a partir de uma análise histórico-dialética da função e da lógica da investigação científica em suas múltiplas dimensões e determinações, mediante a orientação de dois métodos: o Método Histórico-Dialético de Friedrich Hegel e Karl Marx, no século XIX; e o Método Psicogenético de Jean Piaget e a Semiótica de Charles Sanders Pierce, no século XX, os quais Samaja denominou de Método Dialético-Genético 1717. Medeiros MS. Comunidades ribeirinhas na amazônia ocidental: condições de vida e de saúde. Manaus: Editora Reggo; 2019.,1818. Medeiros MS. Condições de vida e de saúde no contexto de uma Unidade de Conservação Ambiental de uso sustentável na Amazônia Brasileira [Tese de Doutorado]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2018..

O Método Dialético-Genético foi desenvolvido em oposição aos modelos mecanicistas que são considerados por ele como insuficientes para compreender os fenômenos socioculturais, entre os quais se localizam os problemas de saúde, de característica completamente nova pois, além de disporem de processos físico-químicos e de transmissão das suas características por hereditariedade, típicos dos sistemas vivos orgânicos, dispõem de mecanismos de representação de estados objetivos e subjetivos pela linguagem escrita e por outras formas de simbolização e de crenças que permitiram a formação dos vários tipos de sociabilidade e de cultura 1717. Medeiros MS. Comunidades ribeirinhas na amazônia ocidental: condições de vida e de saúde. Manaus: Editora Reggo; 2019.,1818. Medeiros MS. Condições de vida e de saúde no contexto de uma Unidade de Conservação Ambiental de uso sustentável na Amazônia Brasileira [Tese de Doutorado]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2018..

O dispositivo heurístico do Método Dialético-Genético é concebido como pertencente a uma entidade processual que funciona recursivamente e que pode ser representado em forma de espiral. A Arquitetura da Complexidade, proposta por Herbert Simon, assim como a de Frédéric Hegel, da Aufhebung, constitui aspectos essenciais para compreender a proposição dos sistemas de matrizes de dados e a interdependência das dimensões da Reprodução Social desenvolvida por Samaja 1919. Samaja J. A reprodução social e a saúde: elementos metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade Editora; 2000.,2020. Samaja J. Epistemología y metodología: elementos para una teoria de la investigación científica. 3ª Ed. Buenos Aires: Eudeba; 2005.,2121. García R. Interdisciplinariedad y sistemas complejos. Revista Latinoamericana de Metodología de las Ciencias Sociales 2011; 1:66-101..

A partir dessa interpretação, os fenômenos físico-químicos são subsumidos nos biológicos, ou estão supras sumidos pelo biológico, o que significa que foram superados, mas estão conservados; já os fenômenos biológicos formam novas emergências que ocorreram em um processo histórico da vida. Seguindo essa hierarquização de complexidade, verifica-se que os fenômenos biológicos vão estar subsumidos pelos sociais, mas não desaparecem, apenas ficam regulados e ressignificados 2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004..

A Figura 1 descreve que na Reprodução Social emergem cultura, cosmologia, política, processos tecnoeconômicos e políticas públicas como expressões do Estado.

Figura 1
O processo evolutivo de configuração do sistema normativo humano e suas respectivas dimensões da Reprodução Social.

Nessa perspectiva, os problemas de pesquisa podem ser concebidos como sistemas complexos adaptativos, cuja aproximação hierárquica nos permite decompor o problema (sistema complexo) em níveis (subsistema complexo), cujo conteúdo apresenta uma complexidade e estrutura menor para entender o todo. A eleição dos estratos (o recorte) em que se descreve um sistema, assim como a unidade de ancoragem, depende das escolhas do pesquisador. Cada estrato possui seu próprio conjunto de termos, conceitos e princípios; e para cada estrato é imprescindível que se considere um sistema autônomo constituído de seus respectivos objetos e funcionalidades 2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004..

A análise do comportamento de um estrato/nível/dimensão (o recortado) permitirá perceber como interatuam seus respectivos sistemas na formação de estratos superiores, o que nos remete a reconhecê-lo não como menos importante (estrato inferior), mas essencialmente menos complexo que os superiores. Portanto, os sistemas sociais complexos se comportam como totalidades compostas de subsistemas. A sua análise não fragmenta a totalidade e, consequentemente, não desnaturaliza o problema ou realidade social 2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004..

Importa destacar que compreender a dialética dos fenômenos humanos como totalidades relacionais ou totalidades sociais implica compreender as dialéticas particulares das partes em si (os sujeitos) e do todo como uma unidade complexa 2121. García R. Interdisciplinariedad y sistemas complejos. Revista Latinoamericana de Metodología de las Ciencias Sociales 2011; 1:66-101.,2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004.,2323. Mesarovic MD, Macko D. Fundamentos de una teoría científica de los sistemas jerárquicos. In: Whyte L, editor. Hierarchical structures. Madrid: American Elsevier; 1973; p. 48-68..

Podemos, por essa perspectiva, compreender como a Reprodução Social e as condições de vida influenciam na situação de saúde. A teorização atenua o reducionismo biologicista e sociológico quando formulamos problemas ancorados apenas em uma ou outra perspectiva, desconsiderando as demais 2424. Santos SL, Augusto LGS. Multidimensional model for dengue control: a proposal based on social reproduction and risk situations. Physis (Rio J.) 2011; 21:177-96.. Assim, a natureza social da doença é menos visível no caso singular e isolado, aumentando sua expressão apenas quando se examina o modo de adoecer, de cuidar e de morrer dos coletivos humanos, o que não permite desconsiderar por completo a dimensão social no entendimento da abordagem clínica 2525. Laurell AC. La salud-enfermedad como proceso social. Cuad Méd Soc 1982; (19):7-25..

Logo, a condição humana é fruto das interações entre a cultura, a linguagem, os valores, as normas, a estrutura e organização social, entre outros processos que se apresentam em um sistema hierárquico complexo 2121. García R. Interdisciplinariedad y sistemas complejos. Revista Latinoamericana de Metodología de las Ciencias Sociales 2011; 1:66-101.. Dressler & Willis 2626. Dressler D, Willis WMJ. Sociologia: o estudo da interação humana. Rio de Janeiro: Interciência; 1980. corroboram essa assertiva quando afirmam que as consequências mais importantes da interação social são a socialização, pela qual o indivíduo apresenta e adota os padrões, e as normas de comportamento, que são consideradas apropriadas para sua cultura.

O método Samajariano de análise das condições de vida e de saúde no âmbito comunitário

A análise da determinação da saúde na perspectiva da Reprodução Social difere da perspectiva da epidemiologia clássica, que utiliza um modelo de causalidade com base em fatores de risco. Essa última não responde como os problemas, sabendo-se que as representações dos problemas e as intervenções das políticas públicas sobre eles se processam nas populações, porque desconsidera suas diferenciações contextuais, vulnerabilidades, susceptibilidades e efeitos decorrentes 1313. Helene LMF, Salum MJL. A reprodução social da hanseníase: um estudo do perfil de doentes com hanseníase no Município de São Paulo. Cad Saúde Pública 2002; 18:101-13.,2727. Diderichsen F, Evans T, Whitehead M. The social basis of disparities in health. In: Evans T, Whitehead M, Diderichsen F, Bhuiya A, Wirth M, editores. Challenging inequities in health. New York: Oxford University Press; 2001..

Na Epidemiologia Social, o conceito de Reprodução Social é aplicado à análise das condições de vida e saúde que é determinada, de um lado, pela estrutura de produção, pelo tipo de ocupação e condições de trabalho e pelo padrão de consumo, os quais irão conformar o seu modo de andar na vida. A forma de inserção no mercado de trabalho, a capacidade de mobilização reivindicatória, as opções de escolhas “do que” e “de como” consumir e as vulnerabilidades produzidas por esse processo influenciaram na demanda e no modelo de atenção à saúde da sociedade 1212. Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública 2013; 31 Suppl 1:S13-27.,1616. Possas C. Epidemiologia e sociedade: heterogeneidade estrutural e saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora; 1989.,2828. Almeida-Filho N. Integração metodológica na pesquisa em saúde: nota crítica sobre a dicotomia quantitativo-qualitativo. In: Goldenber GP, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 143-56..

Logo, a Reprodução Social não se realiza apenas na infraestrutura econômica. Ela atravessa toda estrutura social, o que implica reconhecer as ações estatais no atendimento às demandas do ambiente social, como saúde, educação, saneamento, nutrição, segurança e lazer 1414. Castellanos PL. Epidemiologia, saúde pública, situação de saúde e condições de vida: considerações conceituais. In: Barata RB, organizador. Condições de vida e situação de saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 1997. p. 31-75.,2929. Lana FCF. Saúde, doença e condições de vida. REME Rev Min Enferm 2006; 10:105..

Samaja 1919. Samaja J. A reprodução social e a saúde: elementos metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade Editora; 2000.,2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004. assegura que esse paradigma dialético-genético, aplicado em especial no campo da saúde, permite pensar a complexidade diferenciando relações próprias do nível orgânico (individual) das relações sociais, sem derivar para uma redução de um nível a outro como, por exemplo, do social ao individual, de forma contextualizada. Para uma compreensão mais descritiva e eficiente de cada nível que compõe a totalidade do fenômeno estudado, Samaja propõe fazê-lo por meio da noção de Matriz de Dados.

O matriciamento dos elementos das observações está disposto de forma horizontal e vertical, sendo a primeira forma denominada de “unidades de análise”, representada pelo nível de ancoragem da investigação científica (contexto, ancoragem e subtexto), enquanto a segunda forma, vertical, é chamada de “unidades de observação” ou “variáveis”, em que o matriciamento é representado pelas categoriais ou dimensões da análise que forem relativas aos objetos teóricos do estudo 2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004.,2828. Almeida-Filho N. Integração metodológica na pesquisa em saúde: nota crítica sobre a dicotomia quantitativo-qualitativo. In: Goldenber GP, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 143-56..

Em resumo, as variáveis são os atributos ou assuntos de interesse observáveis da unidade de análise, que possuem dimensões estabelecidas a partir de critérios, estando elas carregadas de teoria. As dimensões de uma variável são um aspecto parcial da variável (ou o seu predicado) que é relativamente independente de outros aspectos e que, em conjunto, constitui a totalidade social 1717. Medeiros MS. Comunidades ribeirinhas na amazônia ocidental: condições de vida e de saúde. Manaus: Editora Reggo; 2019.,2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004.,2828. Almeida-Filho N. Integração metodológica na pesquisa em saúde: nota crítica sobre a dicotomia quantitativo-qualitativo. In: Goldenber GP, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 143-56..

Percurso metodológico da abordagem compreensiva da Reprodução Social aplicada à análise das condições de vida e de saúde

Os municípios, as áreas de Uarini e Fonte Boa/Maraã da RDSM, as comunidades e os domicílios foram definidos como unidades de análises de contexto, ancoragem e subtexto do estudo, respectivamente. A RDSM abrange os municípios de Alvarães, Fonte Boa, Japurá, Jutaí, Maraã, Tonantins e Uarini, os quais compõem as regiões de saúde do Triângulo e do Alto Solimões no Estado do Amazonas, onde o acesso é exclusivamente por barco. A população é de cerca de 11 mil pessoas, distribuídas em 200 comunidades e em 1.873 domicílios 3030. Medeiros MS, Augusto LGS, Barca S, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Gonçalves IC, et al. A saúde no contexto de uma reserva de desenvolvimento sustentável: o caso de Mamirauá, na Amazônia Brasileira. Saúde Soc 2018; 27:128-48..

Importa informar aqui que a RDSM é a única das UCs que conta com um instituto de pesquisa, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, fato que motivou a escolha da área protegida no Estado para a pesquisa 2929. Lana FCF. Saúde, doença e condições de vida. REME Rev Min Enferm 2006; 10:105..

A coleta de dados qualitativos foi proveniente das seguintes fontes de dados secundárias: (i) de revisão bibliográfica sobre características, fatos e acontecimentos históricos relacionados ao processo de criação e gestão da RDSM; (ii) de relatórios de gestão do IDSM explorados para identificação do número e do tipo de intervenção no nível comunitário na área protegida; (iii) de entrevistas abertas para exame das representações discursivas dos sujeitos sobre as competências e responsabilidades pela saúde local; (iv) de observação participante, mediante imersão local voltada à compreensão do modo de vida dos ribeirinhos. A partir dessas atividades, extraíram-se dados relativos às unidades de observações de contexto e ancoragem, referentes também à ação de apoio comunitário das forças sociais da Igreja, da organização dos ribeirinhos, do Estado (políticas de meio ambiente, de ciência, de tecnologia e de saúde) e de organizações públicas não estatais, tendo em vista que a elas é dada a atribuição de execução da política ambiental nesses territórios 3030. Medeiros MS, Augusto LGS, Barca S, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Gonçalves IC, et al. A saúde no contexto de uma reserva de desenvolvimento sustentável: o caso de Mamirauá, na Amazônia Brasileira. Saúde Soc 2018; 27:128-48.,3131. Medeiros MS, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Queiroz RSB, Barca S, Augusto LGS, et al. Health care in environmental conservation units in Amazonas: conflict of competency or responsibility issue? Revista Geonorte 2020; 11:35-51..

A coleta de dados quantitativos foi composta de dados primários e secundários obtidos, respectivamente: (i) de dados sociodemográficos, ambientais e de morbimortalidade, coletados nos sistemas de informação; e (ii) de questionário composto por 64 perguntas e estruturado sobre as condições de vida e de saúde, sendo usado para caracterizar as unidades de observação de contexto, ancoragem e, em especial, subtexto. Os comunitários domiciliados nas comunidades responderam ao questionário, representando, assim, os sujeitos do estudo, somando 239 pessoas 3030. Medeiros MS, Augusto LGS, Barca S, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Gonçalves IC, et al. A saúde no contexto de uma reserva de desenvolvimento sustentável: o caso de Mamirauá, na Amazônia Brasileira. Saúde Soc 2018; 27:128-48..

A amostragem estatística da população do estudo considerou a população total da RDSM e a prevalência de 18,5% de indivíduos que buscaram serviços de saúde e não foram atendidos, conforme apontou a pesquisa nacional Escuta Itinerante do SUS de 2013, organizada pela Ouvidoria Geral do SUS e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura 3030. Medeiros MS, Augusto LGS, Barca S, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Gonçalves IC, et al. A saúde no contexto de uma reserva de desenvolvimento sustentável: o caso de Mamirauá, na Amazônia Brasileira. Saúde Soc 2018; 27:128-48.,3232. Ministério da Saúde. Relatório da "Escuta Itinerante: acesso dos povos do Campo e da Floresta ao SUS". http://www.contag.org.br/arquivos/portal/Relatorio-final-CONTAG.pdf (acessado em 22/Set/2015).
http://www.contag.org.br/arquivos/portal...
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O plano de análise do estudo se baseou em uma matriz de dados. As unidades de análise em três níveis (subtexto, ancoragem e contexto) e as variáveis (atributos de interesse observáveis da unidade de análise), com suas respectivas dimensões da reprodução, consideraram para sua compreensão a dialética resultante do tipo de interação social que promovem a partir da interdependência das partes e do todo. Na análise, foram considerados os tipos de interação social agrupados pela Sociologia de Dressler & Willis 2626. Dressler D, Willis WMJ. Sociologia: o estudo da interação humana. Rio de Janeiro: Interciência; 1980. como aqueles que contribuem para a aproximação dos agentes sociais (cooperação, acomodação e assimilação), assim como por aqueles processos que contribuem para o afastamento deles (competição e conflito), sendo um dos aspectos de interesse da pesquisa compreender a natureza da mudança social decorrente da interação entre populações ribeirinhas, áreas protegidas e sistemas de atenção à saúde no contexto da Amazônia brasileira.

Por uma adaptação da proposta original de Samaja, e já realizada por outros autores, a Reprodução Ecológica-Política foi desdobrada em duas outras dimensões (Ecológica e Política) para destacar os fenômenos do espaço social do ecossistema amazônico 2828. Almeida-Filho N. Integração metodológica na pesquisa em saúde: nota crítica sobre a dicotomia quantitativo-qualitativo. In: Goldenber GP, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 143-56.,3030. Medeiros MS, Augusto LGS, Barca S, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Gonçalves IC, et al. A saúde no contexto de uma reserva de desenvolvimento sustentável: o caso de Mamirauá, na Amazônia Brasileira. Saúde Soc 2018; 27:128-48.,3333. Costa AM. A determinação social da microcefalia/zika no Brasil. Waterlat-Gobacit Network Working Papers 2016; 3:44-61.,3434. Augusto LGS. Complexidade e processo saúde doença. In: Augusto LGS, Beltrão AB, organizadores. Atenção primária à saúde: ambiente, território e integralidade. Recife: Editora Universitária da UFPE; 2008. p. 50-2.:

(i) Na Reprodução Ecológica, o espaço social pode se expressar negativamente na vida biocomunal, quando as estratégias de ação propiciadas pelas Reproduções Política, Econômica e Cultural não valorizam o modo de vida ribeirinho, sendo, nessa forma do exemplo, uma interação social de afastamento.

(ii) A determinação social na saúde resultante da Reprodução Política se expressa no atendimento (ou não) às necessidades do ambiente social.

(iii) A interação social proveniente da Reprodução Tecnoeconômica, cujo desfecho age também na determinação social na saúde, pode se expressar negativamente na vida dos ribeirinhos, quando os anteparos jurídicos e institucionais das relações de trocas são desiguais e injustos, expondo os sujeitos a situações de risco ocupacional ou ambiental, por exemplo.

(iv) A Reprodução da Autoconsciência e da Conduta pode ser do tipo de interação social de assimilação da política ambiental quando a assistência social ou mesmo a assistência à saúde são contextualizadas à cosmologia ribeirinha, o que não foi o caso.

(v) As condições de vida são a expressão da Reprodução Biocomunal, porque retratam a base material dos indivíduos, onde o acesso aos bens e serviços sociais provenientes das Reproduções Política e Tecnoeconômica são imprescindíveis para uma maior resiliência às adversidades da floresta. Esse acesso determinará a forma e a frequência com que as populações adoecem, interferindo nos afazeres diários, necessários para reproduzir suas condições de organismos vivos sociais.

Os dados foram coletados entre agosto e setembro de 2016, somente após a anuência dos órgãos ambientais e a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética do Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (parecer nº 1.667.857).

Resultados

A Reprodução Social ribeirinha está marcada pelo ecossistema amazônico, cujas dinâmicas de enchente, cheia, vazante e seca regulam o ritmo de vida dos comunitários. Anualmente, nos meses de maio a junho, as terras de várzea estão sujeitas às inundações, como a cheia de 2015, que desestruturou todos os sistemas sociais.

A fauna aquática desempenha importante papel na vida da reprodução ecológica de várzea e nas demais reproduções, seja na dispersão de sementes, na base da dieta alimentar da população, fonte de renda, organização comunitária e sindical em torno da pesca, ou também como símbolo do imaginário popular.

A abundância dos recursos hídricos oculta o problema da falta de água potável durante os meses de seca, sendo o problema elencado como o terceiro maior pelos ribeirinhos nas entrevistas. As barreiras de ordem geográfica, típicas da vida na floresta, somadas às barreiras econômica, organizacional e cultural do acesso à saúde identificadas pela pesquisa, não foram solucionadas por nenhum dos três níveis de governo e nem pelo IDSM. Por outro lado, as tecnologias apropriadas à várzea para melhorias sanitárias, promovidas pelo IDSM, permitiram um tipo de interação social de assimilação da ecologia de várzea. Contudo, trata-se de projetos-piloto, que atenderam apenas 17 das 200 comunidades.

Dessa forma, a Reprodução Ecológica se expressa negativamente na vida biocomunal, caracterizando uma interação social de afastamento, pois as estratégias de ação propiciadas pelas Reproduções Política, Tecnoeconômica ou Cultural não protegeram os sujeitos e nem valorizaram o modo de vida ribeirinho.

A Reprodução Política da UC emerge em meio a um campo epistêmico da biologia conservacionista no âmbito de uma conjuntura de rediscussão dos modelos de Estado neoliberal e de desenvolvimento sustentável.

A política estadual amazonense administra a gestão da UC por meio das organizações sociais, cujo protagonismo foi do IDSM. A atuação é constituída por um rico portfólio de ações e produtos, que vão desde pesquisas, fiscalizações e intervenções em infraestrutura até pagamento por serviços ambientais. Mesmo assim, as ações sofrem descontinuidade e quase sempre não recebem apoio do nível municipal.

No que tange ao atendimento das demandas por assistência à saúde pelos municípios, a pelo menos 12 meses (entre os anos de 2015 e 2016) o atendimento comunitário se limita ao Agente Comunitário de Saúde, cuja avaliação pelos comunitários do serviço prestado variou entre as comunidades, sendo a pior situação na Área de Fonte Boa/Maraã. Nota-se um afastamento das interações sociais da política nesse território, sobretudo descontinuidade e ausência de diálogo entre os municípios e o IDSM.

A Reprodução Tecnoeconômica dos ribeirinhos tem base no trabalho da família, enquanto unidade doméstica de produção e consumo, e na articulação com os mercados. Proporcionalmente, a renda dos ribeirinhos era, à época do estudo, proveniente dos programas de distribuição de renda e de apoio à agricultura familiar, pesca e conservação ambiental (Bolsa Família, Bolsa Floresta, Bolsa Verde), variando entre BRL 32,00 e BRL 372,00 para o Bolsa Família, e sendo BRL 50,00 para o Bolsa Floresta. Essas são somados aos rendimentos intermitentes oriundos da venda da farinha de Uarini e, principalmente, da pesca do pirarucu, sendo essa última concentrada nos meses de setembro e outubro, quando o defeso é suspenso e as atividades de pesca e comercialização são liberadas. Geralmente, as rendas não ultrapassam o valor mensal de um salário-mínimo (valor da época = BRL 880,00), sendo essa a situação declarada da maioria da população (60,6%) do Mamirauá. Em relação aos três salários do Seguro Defeso, os ribeirinhos reclamaram por não os terem recebido.

A indução à diversidade de atividades econômicas pelo IDSM repercutiu positivamente na renda, constituindo um tipo de aproximação entre as Dimensões Tecnoeconômica e Política. Por outro lado, as estratégias de ação do IDSM não têm atuado na produção de anteparos jurídicos e institucionais em relação às trocas desiguais e injustas da comercialização do pirarucu, que apresenta grande variação entre o preço pago ao pescador e o pago pelo consumidor final, o que pode estar associado à sobre-exploração do pescado e ao aumento de acidentes de trabalho, cujo coeficiente registrado em 2015 foi de 403,9 por 100 mil habitantes em Uarini, e 411,7 em Alvarães, muito superior à média do país, que foi de 84,16 por 100 mil. Assim, evidencia-se uma interação de afastamento entre as Reproduções Tecnoeconômica, Ecológica e Política promovidas pelo IDSM.

Em relação à Reprodução da Autoconsciência e Conduta dos ribeirinhos, verificou-se baixo envolvimento deles nos espaços de controle social e de apoio comunitário, organizados pelo IDSM com a finalidade de resolver os problemas do dia a dia, ou de reivindicar melhores condições de vida e saúde. Constatou-se que 87,9% não participaram do controle social; 69%, não participaram de cursos ou capacitações, mesmo naqueles espaços cuja participação é exigida como requisito para o recebimento do Bolsa Família e do Bolsa Floresta. Aqueles que demonstram ter algum interesse em participar do controle social ou do apoio comunitário demonstram maior interesse pelos assuntos religiosos (52,8%); pela associação nos lagos (51,8%); e pelo futebol (56%).

A análise da base material dos ribeirinhos possibilita constatar, tratando-se de estratégias de ações da política ambiental para a RDSM, o que é ou não sustentável, pois é na vida biocomunal que elas mais se expressam. No caso, a precariedade das condições de vida e de saúde dos ribeirinhos do Médio Solimões se expressam negativamente na renda e na escolaridade, sendo esses indicadores os que mais impactam negativamente no IDH da região. O valor registrado em 2010 variou entre 0,498 (Maraã) a 0,548 (Tonantins), sendo que esses valores foram inferiores à média do Amazonas (0,674) e do país (0,727).

Em relação à renda, 60,6% dos comunitários declararam viver com menos de um salário-mínimo por mês.

Já na educação, a precariedade significa, por exemplo, que em Alvarães somente 30,5% da população acima de 18 anos (na RDSM representam metade da população) concluiu o Ensino Fundamental, o que também corrobora com os achados das pesquisas no nível da ancoragem, que identificaram 32,5% dos sujeitos sem saber ler, apenas assinar o nome, ou frequentaram menos de dois anos de escola.

A melhoria da base material dos ribeirinhos é imprescindível para uma maior resiliência às adversidades da floresta, as quais determinarão a forma e a frequência com que as populações adoecem. No caso da RDSM, são registradas elevadas frequências de doenças, a saber: (i) gastroenterites infecciosas, dentre outras internações por condições sensíveis à atenção, que representam mais de 1/3 das internações hospitalares da região, cuja incidência é de 3,2/100 mil habitantes, superior à média do Amazonas, que foi de 1,3/100 mil habitantes; (ii) 28,9 casos novos de tuberculose por 100 mil habitantes em 2015 em Fonte Boa, e 7/100 mil habitantes em Uarini. A média registrada no Brasil, no Amazonas e em Manaus, em 2015, foi, respectivamente: 39,9, 70,1, e 98,3 por 100 mil habitantes; (iii) casos novos de hanseníase em 2015, que foi hiperendêmica em Fonte Boa (43,4/100 mil habitantes) e média em Uarini (7/100 mil habitantes).

O Município de Tefé é o único da região que possui laboratório para diagnóstico de tuberculose, assim como o centro de referência para saúde do trabalhador.

Discussão

Segundo Samaja 2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004., a Reprodução Biológica é, a partir do materialismo histórico-dialético, regulada ou determinada pela Reprodução Social. Há uma hierarquia da organização na história da vida, do biológico ao social. Nesse nível da Reprodução Social, emergem cultura, cosmologia, política, processos tecnoeconômicos e políticas públicas como expressões do Estado.

Nessa arquitetura da complexidade, o social é contexto do biológico, pois essas não são dimensões que têm relações aleatórias, mas de determinação hierárquica, sendo isso central para desvelar como as condições de vida, enquanto processos sociais, produzem processos biológicos. O reducionismo, então, ocorre quando formulamos problemas ancorados apenas em uma ou outra dimensão 3333. Costa AM. A determinação social da microcefalia/zika no Brasil. Waterlat-Gobacit Network Working Papers 2016; 3:44-61..

O modo de vida das populações ribeirinhas não deve ser pensado sem uma análise do sistema de representações sociais porque, como vimos, a Reprodução Ecológica tem intrínseca interdependência com os ciclos naturais dos sistemas inundáveis de várzeas, o que vai influenciar especialmente a Reprodução Tecnoeconômica, a da Autoconsciência da Conduta e a Biocomunal 1717. Medeiros MS. Comunidades ribeirinhas na amazônia ocidental: condições de vida e de saúde. Manaus: Editora Reggo; 2019.,2222. Samaja J. Epistemología de la salud: reproduccioón social, subjetividad y transdisciplina. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2004..

No âmbito do neoliberalismo, a descentralização da responsabilidade da prestação dos serviços públicos de forma indireta pelas organizações não estatais alcançou também os recursos naturais 3535. Godoy AMG. A sugestão sustentável e a concessão das florestas públicas. Revista de Economia Contemporânea 2006; 10:631-54., o que mediou as Reproduções Políticas desse contexto, pois a determinação social na saúde se expressa no atendimento, ou não, das demandas do ambiente social.

Vale informar que a análise do modelo de gestão das Unidades de Conservação do Amazonas foi o tema que mais exigiu tempo de pesquisa, pois a política Estadual opera por meio das organizações sociais. No caso da RDSM, a gestão é do Estado mas, na prática, as estratégias de ações ficam a cargo das organizações públicas não-estatais (IDSM e, mais recentemente, a Fundação Amazônia Sustentável).

Calegare 3636. Calegare MGA. Estratégias de mudança identitária para acesso a bens e serviços sociais na Amazônia. Rev Psicol Polít 2014; 14:151-69. constatou em duas UCs federais do Amazonas o uso da etnicidade para garantir o acesso aos serviços de saúde e educação, situação similar à constatada na comunidade de São Francisco de Aiucá, no Município de Uarini.

Na discursividade dos socioambientalistas, a responsabilidade com a saúde da população não compete à política ambiental. Por outro lado, admitem que o problema não está claro na agenda de trabalho das instituições ambientais em que trabalham no Mamirauá 3131. Medeiros MS, Sacramento DS, Santiago Neta IS, Queiroz RSB, Barca S, Augusto LGS, et al. Health care in environmental conservation units in Amazonas: conflict of competency or responsibility issue? Revista Geonorte 2020; 11:35-51..

Os maiores rendimentos das atividades produtivas dos ribeirinhos são provenientes da comercialização do pirarucu de manejo, que foi implantada, inicialmente, na década de 1980, pela Prelazia de Tefé, como forma de frear o comércio predatório do pescado, prática responsável pela escassez do mesmo para alimento da população local, sendo essa, na época, um dos principais argumentos de criação da proposta da tipologia de UC de uso sustentável 3737. Moura EAF. Práticas socioambientais na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá no Estado do Amazonas, Brasil [Tese de Doutorado]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2007..

No Estado do Amazonas, a produção do pirarucu saltou de 60 toneladas, em 2002, quando se iniciou a pesca da espécie manejada, para 1.797 toneladas em 2015, e a produção da RDSM representa 32,4% do total, o que a coloca como a maior produtora de pirarucu na modalidade de manejo sustentável do Brasil. Por outro lado, são registrados disputas e conflitos diversos em torno da comercialização com o “patrão”, e da vigilância dos lagos envolvendo pescadores profissionais associados e pescadores invasores. Esses têm sido transformados em Boletim de Ocorrência na Delegacia de Polícia de Fonte Boa, que se recusa a investigar, pois afirma se tratar de um problema de jurisdição dos órgãos ambientais federais ou da Polícia Militar Ambiental, essas que não possuem funcionários na região 1717. Medeiros MS. Comunidades ribeirinhas na amazônia ocidental: condições de vida e de saúde. Manaus: Editora Reggo; 2019.,1818. Medeiros MS. Condições de vida e de saúde no contexto de uma Unidade de Conservação Ambiental de uso sustentável na Amazônia Brasileira [Tese de Doutorado]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2018..

O baixo envolvimento dos ribeirinhos no controle social e no apoio comunitário organizado, em especial na participação em cursos, oficinas, capacitações e palestras sobre a saúde promovidos pelo IDSM, deveria refletir no sentido de se assumir a necessidade de outras estratégias, de base mais solidária e horizontal.

A situação acima pode ser indicativa de que os sujeitos não se percebem como protagonistas da sua Reprodução Social. Outra hipótese está relacionada à baixa escolaridade, pois 42% dos indivíduos não sabem ler, apenas assinam o nome, ou frequentaram menos de 2 anos de escola.

Valla 3838. Valla V. A crise de interpretação é nossa: procurando entender a fala das classes subalternas. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. (Caderno de Educação Popular em Saúde, 2). classifica a preferência dessa população por assuntos religiosos e futebol como busca simultânea das classes populares pela solidariedade ou pelo conforto do apoio social, mas também pela procura de alívio para seus sofrimentos.

A análise dos indicadores de renda familiar, anos de estudos e acesso no domicílio a banheiro, água encanada, energia e comunicação representaram os processos sociais, políticos, econômicos e culturais oriundos da ação do Estado ou dos grupos sociais presentes na RDSM. Esses repercutiram sobre a base material da vida biocomunal dos ribeirinhos, ou seja, sobre a forma e a frequência como as populações ribeirinhas adoecem, o que, consequentemente, permitirá a eles reproduzirem suas condições de organismos vivos sociais que são necessárias para a existência humana.

A precariedade do quadro sanitário e a naturalização das endemias, como por exemplo a Malária, não referida pelos ribeirinhos, mas que apresenta de médio a alto Índice Parasitário Anual (médio: 10,0 a 49,9; e alto: maior ou igual a 50,0). Dentre os sete municípios que compõem a RDSM, somente Japurá e Tonantins não fazem parte do Programa de Controle da Malária do Estado do Amazonas. Os demais municípios, Alvarães, Fonte Boa, Maraã, Jutaí e Uarini, somam-se às outras 46 cidades prioritárias do Programa 3939. Braz RM, Barcellos C. Análise do processo de eliminação da transmissão da malária na Amazônia brasileira com abordagem espacial da variação da incidência da doença em 2016. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27:12.

Em geral, os problemas graves de saúde como, por exemplo, aqueles relacionados à saúde materno-infantil, são resolvidos caso a caso, o que pode ser agilizado por apadrinhamento ou indicação política 4040. Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da atenção básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes Editora; 2013..

Os achados corroboram os dados do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, que avaliou o Sistema Estadual de Unidade de Conservação do Amazonas. O relatório afirma que a proteção ambiental não foi acompanhada por outras políticas de cunho social, o que tem contribuído negativamente para a baixa qualidade de vida das populações locais 33. Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Relatório conclusivo de Auditoria Operacional e Ambiental em Unidades de Conservação Estaduais do Amazonas. https://www.tce.am.gov.br/portal/wp-content/uploads/relatorio_de_auditoria_operacional_e_ambiental_em_ucs.pdf (acessado em 25/Set/2015).
https://www.tce.am.gov.br/portal/wp-cont...
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Conclusão

A matriz de dados de Juan Samaja possibilitou compreender os processos da reprodução social que integram a rede de determinação hierarquicamente organizada, cujas interações modelaram as condições de vida e de saúde.

A análise das dimensões das Reproduções Política e Tecnoeconômica possibilitou refletir o que é ou não sustentável nas estratégias de ações da política ambiental, organizadas para o contexto da RDSM, pois é na vida biocomunal que elas mais se expressam em forma de sofrimento, adoecimento e morte.

Dessa forma, garantir o acesso aos bens e serviços sociais, em especial à saúde, a qual deve respeitar o modo de vida local, são imprescindíveis para uma maior resiliência dos ribeirinhos às adversidades da floresta.

Agradecimentos

Ao financiamento da pesquisa: Programa de Apoio à Formação de Recursos Humanos Pós-graduação, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Revisado
    15 Jun 2022
  • Aceito
    23 Jun 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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