Resiliência de sistemas de saúde

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Sobre o autor

A pandemia de COVID-19 nos ensinou sobre o inesperado e nos incitou a criar mecanismos de preparação para tal. Seja na vida privada ou na vida pública, tivemos de lidar com aprendizados quase diários sobre como enfrentar choques sobre os quais não tínhamos controle. A capacidade de enfrentar esses choques não é trivial, e mesmo quando eles são controlados, deixam consequências por vezes duradouras na vida dos indivíduos e na sociedade. Contudo, a literatura tem demonstrado que dados os exemplos recentes das pandemias de H1N1, H3N2, H2N2, Zika e Ebola, pandemias serão cada vez mais comuns, e não necessariamente eventos inesperados e imprevisíveis 11. Sundararaman T, Muraleedharan VR, Ranjan A. Pandemic resilience and health systems preparedness: lessons from COVID-19 for the twenty-first century. J Soc Econ Dev 2021; 23 Suppl 2:290-300.. Nesse sentido, cresce a preocupação da ciência em como lidar com essas situações, particularmente no caso dos sistemas de saúde. O tema tem sido tratado como resiliência dos sistemas de saúde e, dado seu caráter recente, é muito bem-vinda a contribuição do artigo Resiliência do Sistema Único de Saúde no Contexto da Pandemia de COVID-19: Como se Fortalecer, de José Patrício Bispo Júnior 22. Bispo Júnior JP. Resiliência do Sistema Único de Saúde no contexto da pandemia de COVID-19: como se fortalecer? Cad Saúde Pública 2022; 38:e00097522., publicado neste fascículo, que estimulou este editorial.

O termo resiliência tem muitos significados e hoje pode ser considerado um conceito guarda-chuva para cobrir diversos elementos antes tratados como sustentabilidade, ao que se agregou os elementos de adaptabilidade e transformação 33. Bruijn K. Resilience. J Flood Risk Manag 2020; 13:e12670.. Estudos sobre resiliência se originam na análise de resistência de estruturas de engenharia, já são tradicionais no campo da ocorrência de riscos climáticos, como eventos extremos, e incluem até a capacidade individual de lidar com adversidades ou se adaptar a circunstâncias estressantes, como a resistência à dor. Há muitas definições para resiliência que vão desde conceitos que focam aspectos singulares da recuperação de traumas até a resiliência como não somente reação, mas também aprendizado e proatividade 44. Youssef CM, Luthans F. Positive organizational behavior in the workplace: the impact of hope, optimism, and resilience. J Manage 2007; 33:774-800..

Na saúde pública o termo ganhou mais visibilidade em decorrência da relação com desastres 55. United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Sendai framework for disaster risk reduction 2015-2030. Geneva: United Nations Office for Disaster Risk Reduction; 2015. e estendeu-se para a aplicação nos sistemas de saúde a partir da ecologia, ampliando-se principalmente com a epidemia de Ebola, que estimulou o crescimento da produção científica sobre resiliência de sistemas de saúde 66. Biddle L, Wahedi K, Bozorgmehr K. Health systems resilience: a literature review of empirical research. Health Policy Plan 2020; 35:1084-109.. O tema é, contudo, bem inicial no caso brasileiro. Uma busca breve na base de dados Capes Periódicos (https://www.periodicos.capes.gov.br) indica apenas seis artigos nacionais revisados por pares sobre resiliência em sistemas de saúde, enquanto na literatura internacional e na análise de outros países há mais de trezentos.

Para Biddle et al. 66. Biddle L, Wahedi K, Bozorgmehr K. Health systems resilience: a literature review of empirical research. Health Policy Plan 2020; 35:1084-109., o conceito de resiliência de sistemas de saúde sofreu alterações significativas: de restrito a uma mera capacidade dos sistemas, passou tanto a incluir a contribuição dos indivíduos como a reconhecer os contextos sociais, econômicos e políticos mais amplos em que as respostas ocorrem. Mesmo assim, o conceito é muito abrangente e toma diferentes definições a depender do enfoque das análises. O que é relativamente comum na literatura é tratar a resiliência como relativa à capacidade de absorção, de adaptação e de transformação. Para os sistemas de saúde, Blanchet et al. 77. Blanchet K, Nam SL, Ramalingam B, Pozo-Martin F. Governance and capacity to manage resilience of health systems: towards a new conceptual framework. Int J Health Policy Manag 2017; 6:431-5. (p. 433-4) definem resiliência como “capacidade de um sistema de saúde de absorver, adaptar e transformar quando exposto a um choque e ainda manter o controle sobre sua estrutura e funções”. Os autores resumem as condições tratadas na literatura apontando a capacidade de absorção como a capacidade de o sistema continuar entregando o mesmo nível de assistência, em quantidade, qualidade e equidade, apesar do choque sofrido; a capacidade adaptativa como a capacidade dos atores de garantir a mesma assistência com recursos menores ou alterados, o que implica realizar adaptações organizacionais; e a capacidade transformadora como a habilidade dos atores de transformar as funções e estruturas do sistema em resposta a um ambiente em mudança.

Veja-se que esses elementos são normativos e permitem identificar as condições de enfrentamento dos sistemas, mas informam pouco sobre se os sistemas estão ou não preparados para eventos de crise. Para isso, Blanchet et al. 77. Blanchet K, Nam SL, Ramalingam B, Pozo-Martin F. Governance and capacity to manage resilience of health systems: towards a new conceptual framework. Int J Health Policy Manag 2017; 6:431-5. propõem quatro dimensões analíticas interdependentes que auxiliam na análise da resiliência dos sistemas. São elas: o conhecimento, que se refere à capacidade de coletar, integrar e analisar diferentes formas de conhecimento e informação; as incertezas, que se referem à habilidade de se antecipar e enfrentar incertezas e surpresas; a interdependência, que seria capacidade de considerar e lidar com dinâmicas e feedbacks de múltiplas escalas; e a legitimidade, que é a capacidade de construir instituições socialmente aceitas e contextualizadas. A dimensão de legitimidade se destaca ao incluir os aspectos político-institucionais, que, em geral, estão fora dos estudos sobre resiliência dos sistemas de saúde. De fato, em ampla revisão de estudos empíricos, Biddle et al. 66. Biddle L, Wahedi K, Bozorgmehr K. Health systems resilience: a literature review of empirical research. Health Policy Plan 2020; 35:1084-109. identificaram uma significativa proporção de estudos sobre resiliência em oferta de serviços de saúde, mas as instituições estiveram bastante ausentes nessas pesquisas.

A literatura tem também apontado outros aspectos relevantes sobre resiliência. Um deles é o papel da sociedade, em geral deixado de lado pelos estudos específicos sobre os sistemas de saúde, mas fundamental quando se trata de eventos climáticos extremos. No caso de pandemias, a resposta da população é fundamental tanto para lidar com as situações como para se recuperar delas, o que conformaria uma resiliência societal 33. Bruijn K. Resilience. J Flood Risk Manag 2020; 13:e12670.. A resposta positiva à vacinação contra COVID-19 no caso brasileiro permite associar a dimensão da legitimidade, decorrente de nosso Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SIPNI - http://pni.datasus.gov.br/), com a adesão da população, apesar das iniciativas contrárias do Governo Federal. Salienta-se também a atuação das redes de solidariedade nas favelas e comunidades pobres diante das perdas de trabalho e renda e, consequentemente, de alimentação básica.

Outro aspecto é a participação da força de trabalho em saúde na resiliência dos sistemas de saúde. Burau et al. 88. Burau V, Kuhlmann E, Falkenbach M, Neri S, Peckham S, Wallenburg I. Health system resilience and health workforce capacities: health system responses during COVID-19. Eur J Public Health 2021; 31 Suppl 4:iv14-20., ao analisarem a resiliência de sistemas em diferentes países durante a pandemia de COVID-19, encontraram baixa influência da força de trabalho. Os autores apontam para a necessidade de uma reconceituação dos requisitos institucionais na análise da resiliência, que dê lugar apropriado à força de trabalho em saúde, já que ela é parte integrante da governança em saúde.

Um terceiro aspecto é a intersetorialidade, relevante para o enfrentamento de crises e eventos adversos, especialmente pandemias. A necessidade de integração entre distintas áreas de ação sobre a saúde, como assistência social, educação, emprego, migração e meio ambiente, ficou evidente durante a pandemia em todos os países, e em muitos resultou em pesados investimentos estatais 99. Downey LE, Harris M, Jan S, Miraldo M, Peiris D, Buse K. Global health system resilience is in everyone's interest. BMJ 2021; 375:n3043.. Nesse sentido, reforça-se o papel dos Estados no desenho, implementação e manutenção de sistemas resilientes de políticas sociais e de saúde. Em direção contrária à perspectiva neoliberal de redução do Estado, restrição do financiamento público e privatização da assistência à saúde, o enfrentamento de eventos adversos depende mais, e não menos, da ativa participação estatal. Sistemas integrados, universais e públicos se confirmam não somente pela conhecida maior equidade e pelos melhores resultados em saúde, mas também na construção das capacidades das sociedades para lidar com as incertezas.

Na análise do caso brasileiro, Massuda et al. 1010. Massuda A, Malik AM, Vecina-Neto G, Tasca R, Ferreira-Junior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cadernos EBAPE.BR 2021; 19 spe:735-44. apontam exatamente as políticas de austeridade como elementos que fragilizaram a resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) à pandemia, que poderia ter sido mais efetiva dada a ampla e abrangente estrutura construída ao longo dos anos. Os autores destacam o quadro conjuntural decorrente do desastroso papel do governo e do Ministério da Saúde, mas também problemas crônicos do SUS, que a literatura já indica como fragilidades, como o subfinanciamento, a crescente dependência tecnológica nacional de insumos, a carência, a má distribuição e precária preparação da força de trabalho, as fragilidades e os vazios locais nos sistemas de informação, os vazios assistenciais, entre outros. Além da solução desses gargalos, os aspectos institucionais são destacados, como a necessidade de governança regional do sistema para unificar a regulação dos serviços especializados de municípios e estados.

Se há muitas fragilidades, possivelmente o desfinanciamento seja a mais grave. Se o sistema de saúde brasileiro conta com aparato bastante sólido de políticas progressistas e suficientemente abrangentes para sustentar o direito à saúde, a partir da concepção ampliada da universalidade, a instabilidade surge exatamente devido à baixa efetividade desse aparato, restringindo sua capacidade de reação, adaptação e transformação. O SUS vem resistindo desde sua criação a várias medidas de austeridade, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Desvinculação dos Recursos da União (DRU), os entraves à regulamentação de recursos obrigatórios. No entanto, o golpe radical ocorreu com o teto de gastos (criado em 2016), cujos efeitos para a saúde e a equidade são dramáticos, já que não considera necessidades futuras relacionadas ao aumento e envelhecimento populacional, alterações no perfil epidemiológico e nas demandas de saúde, incorporação de tecnologia, pesquisa e inovação. Sob o novo regime, já houve queda de gastos em saúde entre 2017 e 2019. A pandemia de COVID-19 pressionou esse novo regime, exigindo aumento de gastos para a saúde. Contudo, se excluídos os gastos específicos com a pandemia, registrou-se uma queda de recursos destinados ao SUS 1111. Ortiz M, Funcia FR. Desfinanciamento federal do SUS e o impacto nas finanças municipais. Estadão 2021; 17 ago. https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/desfinanciamento-federal-do-sus-e-o-impacto-nas-financas-municipais/.
https://politica.estadao.com.br/blogs/ge...
. O desfinanciamento vem na mesma esteira do favorecimento ao setor privado, clara remercantilização do acesso à saúde, em processo que associa subsídios, baixa regulação e, mais recentemente, ampliação do setor privado na oferta direta de serviços ao SUS.

O caso brasileiro indica a relevância dos contextos político-institucionais na análise da resiliência dos sistemas de saúde. Diferentemente dos sistemas dos países centrais, onde a austeridade encontrou sistemas consolidados, no caso brasileiro a implementação do sistema de saúde ocorreu pari passu a políticas de austeridade. Contudo, enquanto esse processo permitiu uma expansão restringida do direito à saúde, atualmente o que se vê são estratégias claras de desmonte. Para a maioria dos países, a construção de sistemas universais e públicos convive com essa contradição. Assim, sua resiliência deve considerar a capacidade de pertencer a projetos nacionais que defendam o direito à saúde como elemento inalienável da vida em sociedade. A resiliência maior é ter saúde.

Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças” (Charles Darwin).

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    Sundararaman T, Muraleedharan VR, Ranjan A. Pandemic resilience and health systems preparedness: lessons from COVID-19 for the twenty-first century. J Soc Econ Dev 2021; 23 Suppl 2:290-300.
  • 2
    Bispo Júnior JP. Resiliência do Sistema Único de Saúde no contexto da pandemia de COVID-19: como se fortalecer? Cad Saúde Pública 2022; 38:e00097522.
  • 3
    Bruijn K. Resilience. J Flood Risk Manag 2020; 13:e12670.
  • 4
    Youssef CM, Luthans F. Positive organizational behavior in the workplace: the impact of hope, optimism, and resilience. J Manage 2007; 33:774-800.
  • 5
    United Nations Office for Disaster Risk Reduction. Sendai framework for disaster risk reduction 2015-2030. Geneva: United Nations Office for Disaster Risk Reduction; 2015.
  • 6
    Biddle L, Wahedi K, Bozorgmehr K. Health systems resilience: a literature review of empirical research. Health Policy Plan 2020; 35:1084-109.
  • 7
    Blanchet K, Nam SL, Ramalingam B, Pozo-Martin F. Governance and capacity to manage resilience of health systems: towards a new conceptual framework. Int J Health Policy Manag 2017; 6:431-5.
  • 8
    Burau V, Kuhlmann E, Falkenbach M, Neri S, Peckham S, Wallenburg I. Health system resilience and health workforce capacities: health system responses during COVID-19. Eur J Public Health 2021; 31 Suppl 4:iv14-20.
  • 9
    Downey LE, Harris M, Jan S, Miraldo M, Peiris D, Buse K. Global health system resilience is in everyone's interest. BMJ 2021; 375:n3043.
  • 10
    Massuda A, Malik AM, Vecina-Neto G, Tasca R, Ferreira-Junior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cadernos EBAPE.BR 2021; 19 spe:735-44.
  • 11
    Ortiz M, Funcia FR. Desfinanciamento federal do SUS e o impacto nas finanças municipais. Estadão 2021; 17 ago. https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/desfinanciamento-federal-do-sus-e-o-impacto-nas-financas-municipais/
    » https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/desfinanciamento-federal-do-sus-e-o-impacto-nas-financas-municipais/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2022
  • Revisado
    20 Set 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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