Resumos
Buscou-se analisar as repercussões da crise econômica sobre os setores público e privado do sistema de saúde brasileiro e realizar uma análise de tendência de indicadores econômicos e assistenciais, elaborados a partir de dados secundários de fontes públicas oficiais, relacionados ao gasto, ao desempenho econômico de planos e seguros de saúde, à oferta e utilização de serviços. Os resultados demonstraram estagnação do gasto público em saúde, redução do gasto público per capita e do acesso aos serviços públicos de saúde. Contrariamente, em um contexto de queda da renda e do emprego, os planos de saúde mantiveram clientes, ampliaram as receitas, os lucros e a produção assistencial. O desempenho positivo das empresas, antes e a partir da crise, pode ser explicado pela tendência de manutenção de subsídios públicos para o setor privado e pelas estratégias empresariais financeirizadas. Conclui-se que a atuação do Estado brasileiro durante a crise aprofundou a restrição de recursos ao setor público e favoreceu a expansão dos serviços privados, o que contribuiu para aumentar a discrepância no acesso a serviços públicos e privados de saúde no país.
Palavras-chave:
Seguro Saúde; Sistemas Públicos de Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Orçamentos; Recessão Econômica
This study sought to analyze the repercussions of the economic crisis on the public and private sectors of the Brazilian health system and perform a trend analysis of economic and care indicators, based on secondary data from official public sources related to spending, the economic performance of health plans and insurance, and the supply and use of services. The results showed stagnation of public spending on health, as well as reduction of per capita public spending and of access to public health services. On the contrary, in a context of falling income and employment, health plans retained customers, increased revenues, profits, and their care production. The positive performance of companies, before and after the crisis, can be explained by the trend of maintaining public subsidies for the private sector and by financialized business strategies. We conclude that the actions of the Brazilian government during the crisis deepened the restriction of resources to the public sector and favored the expansion of private services, which thus contributed to increase the discrepancy in access to public and private health services in the country.
Keywords:
Health Insurance; Public Health Systems; Health Services Accessibility; Budgets; Economic Recession
Se pretende analizar las repercusiones de la crisis económica en los sectores público y privado del sistema de salud brasileño y realizar un análisis de tendencia de los indicadores económicos y asistenciales, con base en datos secundarios de fuentes públicas oficiales relacionados con el gasto, el desempeño económico de los planes y seguros de salud, a la oferta y uso de servicios. Los resultados mostraron estancamiento del gasto público en salud, reducción del gasto público per cápita y del acceso a los servicios públicos de salud. Por el contrario, en un contexto de descenso de ingresos y de empleo, los seguros médicos mantuvieron sus clientes, aumentaron los ingresos, las ganancias y la producción asistencial. El buen desempeño de las empresas antes y después de la crisis se debe a la tendencia a mantener los subsidios públicos en el sector privado y a las estrategias empresariales financiarizadas. Se concluye que las acciones del Estado brasileño durante la crisis profundizaron la restricción de recursos al sector público y favorecieron la expansión de los servicios privados, lo que contribuyó a aumentar la discrepancia en el acceso a los servicios de salud públicos y privados en el país.
Palabras-clave:
Seguro de Salud; Sistemas Públicos de Salud; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Presupuestos; Recesión Económica
Introdução
A crise econômica tornou concreto o debate sobre a sustentabilidade financeira de sistemas de saúde. A repercussão da crise mundial, iniciada em 2008 nos Estados Unidos e intensificada no Brasil nos últimos anos, tornou-se objeto de estudos sobre os efeitos das políticas macroeconômicas nos sistemas de saúde, especialmente quanto aos orçamentos públicos.
No Brasil, o gasto com saúde como percentual do Produto Interno Bruto (PIB) é compatível com o dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) 11. Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD.Stat: health care resources. https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=HEALTH_REAC (acessado em 01/Abr/2019).
https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSe... , mas predomina o financiamento privado. Embora o país tenha um sistema universal (Sistema Único de Saúde - SUS), o gasto público representava, em 2019, apenas 41% do total (incluindo gastos com assistência não SUS a servidores, com participação dos três entes federados), sendo o restante composto por pré-pagamento de planos e seguros voluntários (31%) e desembolso direto (28%) 22. Ministério da Saúde. Contas de saúde na perspectiva da contabilidade internacional: conta SHA para o Brasil, 2015 a 2019. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2022.. Há, portanto, uma presença destacada de planos de saúde, estimulada por políticas públicas que se conectam com um grande setor privado prestador de serviços.
A expansão das políticas de saúde dos países tende a acompanhar o crescimento econômico, declinar em momentos de crise econômica e recessão, especialmente devido a medidas de austeridade fiscal 33. Levcovitz E, Couto MHC. Sistemas de saúde na América Latina no século XXI. In: Santana JP, Padilla M, Nogueira RP, Rodrigues VA, organizadores. Observatório internacional de capacidades humanas, desenvolvimento e políticas públicas: tendências recentes das políticas sociais na América Latina: estudos e análises. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2018. p. 99-118., adotadas justamente quando famílias são atingidas pela queda do poder aquisitivo e outros fatores sociais que provocam aumento das necessidades de saúde e demanda por serviços públicos, além de reforçar a privatização e a mercantilização da saúde 44. Kondilis E, Giannakopoulos S, Gavana M, Ierodiakonou I, Waitzkin H, Benos A. Economic crisis, restrictive policies, and the population’s health and health care: the Greek case. Am J Public Health 2013; 103:973-80.,55. Teixeira CFS, Paim JS. A crise mundial de 2008 e o golpe do capital na política de saúde no Brasil. Saúde Debate 2018; 42(n.spe 2):11-21..
A resposta de muitos governos aos efeitos da crise trouxe a austeridade de volta ao primeiro plano nas discussões sobre política econômica. Entre a possibilidade de redução do déficit pelo aumento dos impostos ou pelo corte de gastos, a segunda opção foi predominante e recaiu essencialmente sobre o gasto social 66. Stuckler D, Reevers A, Loopstra R, Karanikolos M, McKee M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. Eur J Public Health 2017; 27 Suppl 4:18-21..
As políticas adotadas para o enfrentamento da recessão tiveram diferentes desdobramentos sobre orçamentos e ações de saúde pública. Alguns países preservaram padrões históricos, como a França, ou expandiram o gasto público per capita com saúde em resposta à crise, como Alemanha e Estados Unidos. No Reino Unido, houve redução no ritmo de crescimento dos orçamentos públicos para saúde relativamente ao período pré-recessão. Espanha, Itália e Portugal apresentaram estagnação do gasto público per capita. Aqueles que aderiram à austeridade fiscal e reduziram seus orçamentos para a saúde, como Grécia e Irlanda 11. Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD.Stat: health care resources. https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=HEALTH_REAC (acessado em 01/Abr/2019).
https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSe... , tiveram como consequência a restrição do acesso 66. Stuckler D, Reevers A, Loopstra R, Karanikolos M, McKee M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. Eur J Public Health 2017; 27 Suppl 4:18-21.,77. Maresso A, Mladovsky P, Thomson S, Sagan A, Karanikolos M, Richardson E, et al. Economic crisis, health systems and health in Europe country experience. Copenhagen: European Observatory on Health Systems and Policies; 2015.. O Brasil se situou entre os países que cortaram gastos sociais, com impacto sobre o financiamento da saúde 88. Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018.,99. Andrietta LS, Levi ML, Scheffer MC, Alves MTSSB, Oliveira BLCA, Russo G. The differential impact of economic recessions on health systems in Middle income settings: a comparative case study of unequal states in Brazil. BMJ Global Health 2020; 5:e002122..
As especificidades da crise brasileira
A crise de 2008 refletiu-se na economia brasileira por meio da contração do crédito, queda no preço das commodities e desvalorização do Real diante do Dólar, evidenciando o padrão de especialização em bens de baixo teor tecnológico e o caráter dependente de nossa integração à economia mundial 1010. Carneiro R. A economia política do ensaio desenvolvimentista. Estud Av 2017; 31:61-6.. A retração da demanda agregada provocou dois trimestres consecutivos de queda do PIB em 2009. O governo concentrou medidas emergenciais na manutenção do consumo das famílias e da liquidez das empresas, por meio de crédito, investimentos estatais e programas sociais 88. Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018..
Os efeitos imediatos da crise de 2008 não foram sentidos no Brasil com a mesma intensidade de outros países. A economia brasileira se manteve sob os efeitos do ciclo de crescimento anterior. O período de 2004 a 2010 se caracterizou pela combinação de condições externas favoráveis e arranjo macroeconômico indutor da demanda 88. Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018.. Ressaltam-se fatores como a alta nos preços de commodities; políticas de transferência de renda, valorização do salário mínimo 1111. Brito A, Kerstenetzky C. A política de valorização do salário mínimo foi importante para a redução da pobreza no Brasil? Uma análise para o período 2002-2013. Rio de Janeiro: Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2018. (Texto para Discussão, 132). e estímulo ao consumo das famílias 1212. Schettini B, Santos CHM, Amitrano CR, Squeff GC, Ribeiro MB, Gouvêa RR, et al. Novas evidências empíricas sobre a dinâmica trimestral do consumo agregado das famílias brasileiras no período 1995-2009. Econ Soc 2012; 21:607-41.. A economia brasileira manteve a rota de crescimento até as eleições de 2010. A partir de então, a priorização de renúncias fiscais e a corrosão dos fatores que sustentaram o ciclo de crescimento prévio levou à desaceleração econômica entre 2011 e 2014 88. Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018..
Por essa razão, a dinâmica da crise no Brasil foi distinta da internacional e esteve condicionada pelo esgotamento do ciclo de crescimento 1313. Serrano F, Summa R. Aggregate demand and the slowdown of Brazilian economic growth in 2011-2014. Nova Economia 2015; 25(Spe):803-33.. Adota-se aqui a periodização elaborada por outras análises, que consideram que a recessão começou no último trimestre de 2014 e foi evidenciada na análise de indicadores econômicos a partir de 2015 1414. Oreiro JL. A grande recessão brasileira: diagnóstico e uma agenda de política econômica. Estud Av 2017; 31:75-88.. O período subsequente caracteriza-se por grande turbulência política, provocando mudanças em políticas macroeconômicas e reformas na legislação relacionada ao gasto público e ao orçamento da saúde 88. Carvalho L. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia; 2018..
A literatura demonstra as disparidades entre o público e o privado 1515. Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1751-62. e os impactos da crise econômica nas condições de saúde, no financiamento 1616. Schramm JM, Paes-Sousa R, Mendes LVM. Políticas de austeridade e seus impactos na saúde: um debate em tempos de crise. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, Fundação Oswaldo Cruz; 2018. (Textos para Debate). e na oferta de recursos humanos 1717. Campoy LT, Ramos ACV, Souza LLL, Alves LS, Arcoverde MAM, Berra TZ, et al. A distribuição espacial e a tendência temporal de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde e para a Saúde Suplementar, Brasil, 2005 a 2016. Epidemiol Serv Saúde 2020; 29:e2018376.. Especificamente quanto ao impacto da crise no acesso aos serviços de saúde, a produção científica nacional é mais escassa e tende a focalizar a avaliação em recortes regionais 1818. Martins M, Lima SML, Andrade CLT, Portela MC. Indicadores hospitalares de acesso e efetividade e crise econômica: análise baseada nos dados do Sistema Único de Saúde, Brasil e estados da região Sudeste, 2009-2018. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4541-54., por área de atenção 1919. Rossi TRA, Sobrinho JEL, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4427-36. ou a utilização de serviços por meio de dados autorreferidos 2020. Mullachery P, Silver D, Macinko J. Changes in health care inequity in Brazil between 2008 and 2013. Int J Equity Health 2016; 15:140.. Há carência de estudos sobre os impactos da crise e dos cortes financeiros no SUS nos indicadores e serviços de saúde no que se refere ao acesso e à efetividade 1818. Martins M, Lima SML, Andrade CLT, Portela MC. Indicadores hospitalares de acesso e efetividade e crise econômica: análise baseada nos dados do Sistema Único de Saúde, Brasil e estados da região Sudeste, 2009-2018. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4541-54.. Os efeitos da crise nos planos de saúde são pouco explorados e enfatizam a cobertura de clientes 2121. Meirelles JML, Cunha MF. Os impactos da crise econômica brasileira no setor da saúde suplementar. Quaestio Iuris 2018; 11:1378-97..
Buscando compreender as repercussões da crise econômica sobre os setores público e privado do sistema de saúde brasileiro, este estudo analisa tendências de indicadores econômicos e assistenciais relacionados ao gasto, ao desempenho econômico de planos privados de saúde, à oferta e à utilização de recursos assistenciais, no período anterior e a partir da crise.
Métodos
O artigo se apoia em uma análise da tendência de indicadores econômicos e assistenciais, relacionados aos setores público e privado de saúde, por meio de dados secundários disponíveis em fontes públicas oficiais. Foram utilizados indicadores do financiamento público e do desempenho de planos de saúde, bem como da produção e oferta de recursos assistenciais.
As tendências foram delimitadas de forma a analisar os efeitos da crise econômica no sistema de saúde em dois períodos: pré-crise, de 2011 a 2014, e a partir da crise, de 2014 a 2019.
Para o financiamento do SUS, foram considerados indicadores do gasto público com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) por nível de governo (federal, estadual e municipal), o gasto per capita e os gastos tributários com saúde, que constituem despesas públicas indiretas do governo, baseadas em isenções ou abatimentos de impostos e outros tributos sobre assistência médica privada financiada por indivíduos e empregadores.
Gastos federais foram obtidos do Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) do Governo Federal 2222. Tribunal de Contas da União; Ministério da Economia. Relatório resumido de execução orçamentária (RREO). Brasília: Tribunal de Contas da União; Ministério da Economia; 2019.. Despesas estaduais e municipais foram extraídas do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) 2323. Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS): indicadores estaduais e municipais. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.. O gasto público total representa a soma dos três níveis. Os gastos per capita foram calculados dividindo o total pelas respectivas estimativas da população brasileira para 1º de julho de cada ano analisado, com base no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2424. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde: Brasil: 2007-2009. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2012.,2525. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde: Brasil: 2010-2015. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2017.. Os gastos tributários com saúde tiveram como fontes os demonstrativos de gastos tributários - bases efetivas do Ministério da Economia 2626. Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros, Ministério da Economia. Metodologia de cálculo de gastos tributários. Brasília: Ministério da Economia; 2019. -, nos quais foram selecionadas as rubricas “despesas médicas”, do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), e “assistência médica, odontológica e farmacêutica a empregados”, do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ).
Para as empresas de planos de saúde, foram analisadas receitas e despesas assistenciais, totais e per capita, divulgadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) 2727. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados e indicadores do setor. https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor (acessado em 15/Jun/2022).
https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-in... . Os valores per capita foram calculados pelo número de beneficiários em junho de cada ano. Com a finalidade de apreender o desempenho econômico das empresas de planos de saúde, foram calculados um indicador de lucratividade, a margem líquida - definida como a razão entre lucro líquido e receita líquida -, e um indicador de rentabilidade, o retorno sobre capital próprio - definido como a razão entre lucro líquido e patrimônio líquido ou social 2828. Galvão A, Rossetti JP. Finanças corporativas: teoria e prática empresarial no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier; 2008. -, a partir das demonstrações contábeis da ANS 2727. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados e indicadores do setor. https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor (acessado em 15/Jun/2022).
https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-in... .
Todos os valores monetários foram deflacionados para Reais (R$) de 31 de dezembro de 2021 pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) 2424. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde: Brasil: 2007-2009. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2012.,2525. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde: Brasil: 2010-2015. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2017.. As análises longitudinais (horizontais) e proporcionais (verticais) foram realizadas com dados deflacionados.
Os indicadores da oferta pública e privada contemplaram as seguintes informações: leitos de internação, leitos de internação por mil habitantes, leitos complementares - unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal/pediátrica e UTI adulto -, tomógrafos computadorizados e aparelhos de ressonância magnética (absoluto e por 100 mil habitantes). Os dados foram obtidos no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) 2929. Departamento de Informática do SUS. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/leiutibr.def (acessado em 15/Jun/2022).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... . As informações sobre número de leitos foram organizadas em duas categorias - “SUS” e “Não SUS” -, sendo esses últimos considerados disponíveis para os planos de saúde. Com relação aos equipamentos, utilizou-se a categoria “Disponíveis SUS” e foi criada a categoria “Não SUS”, calculada a partir da subtração das categorias “Em uso” e “Disponíveis SUS”. Os dados anuais foram calculados pela média da oferta nos 12 meses de cada ano.
Os indicadores de produção de serviços de saúde foram baseados em dados sobre internações, consultas, procedimentos quimioterápicos e radioterápicos. Os indicadores utilizados foram: taxa de internação geral por mil habitantes; número de consultas médicas ambulatoriais e por pessoa; quantidade de procedimentos radioterápicos por mil habitantes; e quantidade de procedimentos quimioterápicos por mil habitantes. Para calcular a produção por habitantes, os números absolutos foram relativizados pelo potencial de usuários do SUS, considerado de duas formas: o total da população brasileira segundo o IBGE e o total subtraído do número de clientes de planos de saúde em cada ano, a fim de identificar a quantidade de potenciais usuários do SUS. Embora os clientes de planos de saúde também possam ser atendidos no sistema público, a exclusão dessa parcela da população nos denominadores pode sinalizar diferenças nos resultados dos indicadores de produção e oferta.
Os dados de produção de serviços públicos foram retirados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) 3030. Departamento de Informática do SUS. Produção ambulatorial (SIA/SUS). https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-ambulatorial-sia-sus/ (acessado em 20/Jun/2022).
https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-in... e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) 3131. Departamento de Informática do SUS. Produção hospitalar (SIH/SUS). https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-hospitalar-sih-sus/ (acessado em 20/Jun/2022).
https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-in... . Com relação aos planos de saúde, foram usados dados extraídos dos mapas assistenciais da ANS e relativizados pelo número de clientes de planos em junho de cada ano 2727. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados e indicadores do setor. https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor (acessado em 15/Jun/2022).
https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-in... . No que se refere à quimioterapia, foram considerados os procedimentos ambulatoriais e hospitalares, disponíveis no SIA, no SIH e no mapa assistencial. A radioterapia megavoltagem nos planos de saúde foi comparada à radioterapia com acelerador linear de fótons e radioterapia com acelerador linear de fótons e elétrons no SUS.
Por fim, o valor médio por internação no SUS despendido pelo Governo Federal foi extraído do SIH 3131. Departamento de Informática do SUS. Produção hospitalar (SIH/SUS). https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-hospitalar-sih-sus/ (acessado em 20/Jun/2022).
https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-in... ; e nos planos de saúde, do mapa assistencial da ANS 2727. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados e indicadores do setor. https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor (acessado em 15/Jun/2022).
https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-in... . O cálculo foi obtido por meio da razão entre o valor gasto com internações e o número de internações em cada ano.
Resultados
Gasto público em saúde
A Tabela 1 mostra os gastos públicos com ASPS por nível de governo de 2011 a 2019. No período de crise, o gasto público com saúde no Brasil sofreu pequenas flutuações. Considerando o coeficiente de uma regressão linear em cada período, verificou-se que as taxas médias de crescimento anual variaram de 4,3% no período de 2011 a 2014 para 0,7% no período de 2014 a 2019. A participação da União vem sendo reduzida ao longo da série estudada, passando de 45,3%, em 2011, a 42,4% em 2014 e chegando a 42,2% em 2019. A parcela dos estados e Distrito Federal se manteve em torno de 26% no mesmo período, enquanto os municípios parecem ter absorvido a redução do Governo Federal, passando de 28,8%, em 2011, para 31,6% em 2019 (Tabela 1).
O gasto per capita, incluindo toda a população, apresentou variação média anual de 2,31% entre 2011 e 2014, atingindo R$ 1.610,00 nesse ano. A partir da crise, o gasto caiu para R$ 1.587,00 por pessoa em 2019 (quando excluídos os clientes de planos de saúde, R$ 2.044,00) (Tabela 1).
Quanto ao gasto tributário federal com saúde no Brasil, que representa o valor que o Governo Federal deixa de arrecadar a partir da dedução das despesas em saúde no imposto de renda dos contribuintes, tanto os gastos com despesas médicas (pessoa física) como os de assistência a empregados (pessoa jurídica) aumentaram entre 2011 e 2014. Desde o início da crise, ambos continuam a crescer, embora as deduções individuais tenham crescido mais do que no período anterior (em média, 6,5% por ano), enquanto as empresariais cresceram menos (em média, 4,8% ao ano).
Destaca-se que, em 2019, as deduções no imposto de renda foram de R$ 20,9 bilhões para pessoas físicas e de R$ 7,9 bilhões para jurídicas (Tabela 1). A soma dos dois subsídios equivalia a 6,9% do gasto público total com saúde em 2014 e a 8,6% desse total em 2019. Observa-se, no período pós-crise, menor variação anual média do gasto público total e per capita, além de maior variação no gasto tributário federal total, principalmente devido às deduções no IRPF.
Receitas de empresas de planos de saúde
A Tabela 2 mostra o volume de recursos mobilizados por empresas de planos de saúde no Brasil. No período anterior à crise, as despesas assistenciais exibiram maior crescimento médio anual (8,9%) do que as receitas provenientes de contraprestações (8,2%). Já no período de crise, as receitas passaram a apresentar maior crescimento anual (5,4%) em relação às despesas assistenciais (4,9%). Constata-se que as empresas de plano de saúde conseguiram aumentar suas receitas durante a crise. As despesas assistenciais per capita apresentaram crescimento, com maior variação anual média no período de crise (6,5%), alcançando R$ 4.269,00 por cliente em 2019.
Os indicadores de lucratividade e rentabilidade calculados indicam uma clara trajetória de piora até 2013 e melhora a partir de 2014, isto é, antes mesmo do início do período considerado de crise. Embora indicadores contábeis também devam ser comparados com outros setores, a evolução ao longo do tempo mostra inequívoca maior capacidade de gerar lucros diante das receitas e do patrimônio das empresas do setor, com variações anuais médias maiores no período de crise econômica em comparação ao período anterior (Tabela 2).
Oferta e produção de serviços de saúde
A Figura 1 sintetiza indicadores de oferta de serviços de saúde da rede SUS e Não SUS. Nas Figuras 1a e 1b, observa-se que o número absoluto de leitos de internação e a média de leitos por pessoa disponíveis para o SUS vêm diminuindo, mesmo antes da crise. Constata-se uma perda de 35.080 leitos da rede SUS ao longo dos nove anos estudados. A perda média por ano foi de 3.806 leitos ao ano antes da crise e de 4.733 a partir da crise. Já na rede hospitalar ligada aos planos de saúde, há certa estabilidade, com crescimento no número absoluto de leitos e na média por pessoa na crise, acentuada pela redução do número de clientes. Em números absolutos de todo o período, houve um aumento de, aproximadamente, 8 mil leitos disponíveis para planos de saúde.
Indicadores de oferta de serviços de saúde realizados pela rede pública (SUS) e pela rede Não SUS. Brasil, 2011-2019.
Houve aumento da oferta de leitos de UTI neonatal/pediátrica (Figura 1c) e de leitos de UTI adulto (Figura 1d), em ambos os segmentos, mesmo com a crise. Os números de leitos disponíveis para os setores público e privado de saúde são muito próximos quando se trata de números absolutos.
Os equipamentos de tomografia computadorizada tiveram um crescimento acentuado na rede Não SUS e uma taxa que chega a quase seis aparelhos por 100 mil habitantes em 2019, enquanto no SUS essa taxa atinge somente um equipamento ao fim do período (Figura 1e). Com relação aos aparelhos de ressonância magnética, também foi possível observar um incremento mais expressivo na rede privada. Na rede SUS, as taxas da oferta não atingiram 0,5 aparelho por 100 mil habitantes, havendo estabilidade no período estudado (Figura 1f).
A Figura 2 apresenta os indicadores de produção de serviços e procedimentos de saúde realizados no Brasil, no período de 2011 a 2019, entre os setores público e privado. Observa-se, no período da crise, estabilidade na taxa de internação geral por mil habitantes no sistema público e um rápido aumento no setor privado, com taxa 3,4 vezes maior que o público (Figura 2a).
Indicadores de produção de serviços de saúde realizados pela rede pública (Sistema Único de Saúde - SUS) e pela rede privada. Brasil, 2011-2019.
O número de consultas absoluto (Figura 2b), que vinha aumentando na rede pública no período anterior à crise, iniciou um expressivo processo de decréscimo desde o início da crise. Já na rede privada, o número de consultas se manteve estável em todo período.
O número de consultas por pessoa também é superior na rede privada (sempre acima de quatro consultas por pessoa/ano) e esse valor manteve uma certa estabilidade, inclusive depois da crise. No SUS, a partir da crise, as tendências mudam, com queda acentuada nas médias do número de consultas por paciente realizadas pela rede pública, chegando a 1,7 consulta por pessoa em 2019 (Figura 2c).
Houve tendência de crescimento dos procedimentos quimioterápicos na rede SUS. Entre os planos de saúde, a quantidade por mil habitantes, embora superior à do SUS, apresentou queda acentuada a partir da crise, com exceção do ano de 2017, que registrou pico no número de procedimentos quimioterápicos realizados (Figura 2d). Na radioterapia, a situação se inverteu. No SUS, observou-se maior quantidade absoluta de procedimentos realizados e crescimento em todo o período, com estabilidade nos três primeiros anos da crise (média de 44,1 por mil habitantes). Posteriormente, essa taxa apresentou crescimento, atingindo 50,1 por mil habitantes em 2018. Optou-se por não apresentar os dados de 2019 para o SUS, pois estão incompletos (faltam os últimos seis meses) e parcialmente inconsistentes com a série (maio e junho), ainda que uma anualização com base nos primeiros quatro meses mostraria uma taxa de 50,3 por mil habitantes. Na rede privada, houve queda acentuada no número de procedimentos radioterápicos desde o início da série (Figura 2e).
Além das diferenças apresentadas entre os setores público e privado de saúde, os valores médios de remuneração para internação são bem discrepantes entre os segmentos. A magnitude dos valores pagos foi muito maior no setor privado, com média de R$ 9.445,76 por internação contra a média de R$ 1.631,29 na rede SUS no período estudado. Sabe-se, no entanto, que a parcela despendida pelo Governo Federal não é a única no financiamento das internações, havendo também aportes estaduais e municipais.
Discussão
As repercussões da crise econômica foram distintas para os setores público e privado de saúde no Brasil. Os resultados do estudo demonstram o aprofundamento da desigualdade na oferta, uso e financiamento da rede pública e privada. As principais consequências da crise para o sistema de saúde brasileiro foram: estagnação do gasto público, restrição de acesso a serviços públicos e sobrecarga das famílias e indivíduos no financiamento da saúde. No que se refere ao setor privado, não houve comprometimento dos retornos financeiros de planos de saúde.
Os gastos públicos em saúde sofreram os efeitos imediatos da crise, com redução do financiamento por dois anos consecutivos (2015 e 2016) e posterior retomada nos anos seguintes. Entretanto, ao considerar o gasto per capita, verificou-se a permanência em declínio, tendo em vista o aumento da população ao longo dos anos. A sustentação do gasto federal e do gasto municipal, ainda que em patamares muito baixos, evitaram uma queda mais acentuada das despesas do SUS.
A relativa estagnação do gasto público no período de crise deve ser compreendida em um contexto de mudanças na legislação, em especial no âmbito federal. A Emenda Constitucional (EC) nº 86/2015 redefiniu os gastos federais para um percentual da receita corrente líquida. Em seguida, a EC nº 95/2016 instituiu o teto para gastos públicos e congelou os gastos sociais por 20 anos 3232. Vieira FS, Benevides RPS. O direito à saúde no Brasil em tempos de crise econômica, ajuste fiscal e reforma implícita do Estado. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as América 2016; 10:1-28.. Considerando que a EC nº 95/2016 começou a ser aplicada em 2018, as perdas orçamentárias derivadas dessa medida só apareceram no fim do período. Pesquisas estimaram a perda orçamentária no valor de R$ 22,5 bilhões entre 2018 e 2020 3333. Moretti B, Ocké C, Aragão E, Funcia F, Benevides R. Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos. Especial Coronavírus. https://www.abrasco.org.br/site/noticias/mudar-a-politica-economica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/46220/ (acessado em 02/Abr/2022).
https://www.abrasco.org.br/site/noticias... ,3434. Dweck E, Moretti B, Melo MFGC. Pandemia e desafios estruturais do CEIS: financiamento do SUS, federalismo da saúde e as relações público-privadas. Cadernos do Desenvolvimento 2021; 16:239-65..
A instituição do SUS enquanto política de Estado ocorreu mediante mobilização da sociedade após longo período de ditadura militar. A estrutura do sistema permitiu sua resistência a ataques e retrocessos promovidos por distintos governos e receituários de políticas de “instituições financeiras internacionais” 33. Levcovitz E, Couto MHC. Sistemas de saúde na América Latina no século XXI. In: Santana JP, Padilla M, Nogueira RP, Rodrigues VA, organizadores. Observatório internacional de capacidades humanas, desenvolvimento e políticas públicas: tendências recentes das políticas sociais na América Latina: estudos e análises. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2018. p. 99-118..
A conformação do SUS proporcionou uma ação descentralizadora e municipalista na operacionalização das políticas públicas de saúde no Brasil, ainda que persistam características de cunho centralizador 3535. Arretche M. Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Rev Bras Ciênc Soc 1999; 14:112-41.. No período estudado, as instâncias municipais aumentaram sua participação no custeio das ações e serviços públicos de saúde, embora desde a crise essa participação tenha sofrido oscilações. Apesar da importância dos entes subnacionais no financiamento e na oferta direta de serviços de saúde, sua limitada capacidade de arrecadação própria os mantém dependentes das transferências federais 3636. Peres UD. Dificuldades institucionais e econômicas para o orçamento participativo em municípios brasileiros. Caderno CRH 2020; 33:1-20..
As receitas municipais são mais suscetíveis em períodos recessivos, pois a fonte de arrecadação é baseada, principalmente, em impostos indiretos cuja destinação é predefinida por vinculação orçamentária 3636. Peres UD. Dificuldades institucionais e econômicas para o orçamento participativo em municípios brasileiros. Caderno CRH 2020; 33:1-20..
Por outro lado, o esforço para o financiamento da saúde pode ser explicado pelo processo político local, pois esse tipo de demanda social tem maior proeminência. O anseio pela viabilização do acesso a serviços coloca a saúde no centro da pauta de eleições municipais, pressionando para que recursos da saúde pública sejam ampliados, inclusive extrapolando os 15% da arrecadação estipulados em lei 3737. Mendes EV. Algumas reflexões sobre a saúde pública nas eleições municipais de 2012. Revista Consensus 2013; (6). https://www.conass.org.br/consensus/algumas-reflexoes-sobre-saude-publica-nas-eleicoes-municipais-de-2012/.
https://www.conass.org.br/consensus/algu... .
Políticas adotadas durante a crise em países europeus, nos quais o crescimento de taxas de utilização foi acompanhado do aumento de copagamentos e compartilhamento de custos, sobrecarregaram famílias e indivíduos no financiamento e alteraram a extensão e os critérios de elegibilidade de seguros e benefícios 3838. Thomson S, Figueras J, Evetovits T, Jowett M, Mladovsky P, Maresso A, et al. Economic crisis, health systems and health in Europe: impact and implications for policy. Genebra: World Health Organization; 2014..
Este estudo constatou que no Brasil ocorreu aumento da participação das famílias e indivíduos no financiamento da saúde, mas por outras vias. O incremento observado no gasto tributário de pessoas físicas evidencia que houve acréscimos nos valores pagos em mensalidades de planos, copagamentos e desembolso direto com assistência e medicamentos. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), a assistência à saúde aumentou a participação na despesa de consumo média mensal familiar: 6,5% em 2002-2003, 7,2% em 2008-2009 e 8% em 2017-2018. Nesse último período, destacam-se as despesas com remédios (44,8%), com planos de saúde (31,6%) e com serviços em geral (18,4%) 3939. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. POF - Pesquisa de Orçamentos Familiares. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020..
Os benefícios tributários concedidos pelo Governo Federal contribuem para o crescimento e para a manutenção da prestação privada de serviços de saúde 4040. Mendes A, Weiller JAB. Renúncia fiscal (gasto tributário) em saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde Debate 2015; 39:491-505.,4141. Ocké-Reis CO. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2035-42.. As deduções com saúde representam a maior entre as deduções de imposto de renda, à frente, inclusive, da dedução por contribuição previdenciária oficial.
A crise não afetou o setor privado de saúde com a mesma intensidade. Apesar da leve e passageira redução no ritmo de crescimento entre 2014 e 2015, as receitas aumentaram em todo o período, mesmo com o desemprego crescente e a estagnação do número de clientes. A partir da crise de 2014, tanto as receitas quanto as despesas assistenciais cresceram, enquanto os gastos públicos apresentaram baixo crescimento, apesar do aumento da população. A receita das empresas de plano de saúde, de R$ 152,5 bilhões em 2011 e R$ 245,5 bilhões em 2019, representou, respectivamente, 53,1% e 73,6% do financiamento dos três entes federativos para o SUS. Vale ressaltar que o gasto público per capita reduziu durante a crise, enquanto a despesa assistencial por cliente de plano de saúde apresentou aumento no período.
As políticas de apoio governamental e renúncia fiscal precedem a crise, mas criam as condições para a blindagem do setor em períodos desfavoráveis. A acumulação de capital no setor de saúde evidencia tendências de internacionalização e financeirização 4242. Andrietta LS. Acumulação de capital na saúde brasileira: estudo exploratório de empresas e setores selecionados (2008-2015) [Tese de Doutorado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2019.,4343. Hiratuka C, Rocha MA, Sarti F. Mudanças recentes no setor privado de serviços de saúde no Brasil: internacionalização e financeirização. In: Gadelha P, Noronha JC, Dain S, Pereira TR, organizadores. Brasil Saúde Amanhã: população, economia, gestão. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. p. 189-220.,4444. Sestelo JAF. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: Edufba; 2018.. As expressões mais evidentes desse processo são a intensificação das fusões e aquisições, a concentração de mercados, a diversificação de atividades, a formação de grandes grupos econômicos, a ampliação de escala e a participação de investidores internacionais nas empresas da saúde 4545. Bahia L, Scheffer M, Tavares LR, Braga IF. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015.,4646. Scheffer M. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad Saúde Pública 2015; 31:663-6.. Somam-se, ainda, fatores como: estratégias empresariais; exclusão de idosos e carteiras de maior sinistralidade; aumentos de mensalidade, copagamentos e franquias; negativas de cobertura; glosas e atraso nos repasses aos prestadores de serviço; redução da comercialização de planos individuais e promoção de “falsos coletivos” 4747. Costa DCAR. Saúde pública e privada no Brasil em tempos de crise econômica e sanitária: interfaces, políticas governamentais e dinamismo das empresas de planos e seguros de saúde [Projeto de Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2021.. O conjunto desses elementos possibilitou a ampliação dos lucros das empresas, como mostram os indicadores de lucratividade e de rentabilidade, em tempos de retração do emprego e renda.
A grande disparidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços, consignada na literatura 1515. Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1751-62.,2020. Mullachery P, Silver D, Macinko J. Changes in health care inequity in Brazil between 2008 and 2013. Int J Equity Health 2016; 15:140., é confirmada pela análise de indicadores de produção e oferta. A crise econômica exacerbou a desigualdade entre serviços públicos e privados. Os resultados corroboram estudos que relacionam os cortes nos gastos públicos à redução da oferta e produção de serviços, tal como verificado em países europeus 66. Stuckler D, Reevers A, Loopstra R, Karanikolos M, McKee M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. Eur J Public Health 2017; 27 Suppl 4:18-21.,77. Maresso A, Mladovsky P, Thomson S, Sagan A, Karanikolos M, Richardson E, et al. Economic crisis, health systems and health in Europe country experience. Copenhagen: European Observatory on Health Systems and Policies; 2015.. As experiências internacionais apontam efeitos mais intensos em sistemas menos maduros por causa dos déficits históricos 1616. Schramm JM, Paes-Sousa R, Mendes LVM. Políticas de austeridade e seus impactos na saúde: um debate em tempos de crise. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, Fundação Oswaldo Cruz; 2018. (Textos para Debate).. No Brasil, os impactos da crise na estagnação do gasto público 99. Andrietta LS, Levi ML, Scheffer MC, Alves MTSSB, Oliveira BLCA, Russo G. The differential impact of economic recessions on health systems in Middle income settings: a comparative case study of unequal states in Brazil. BMJ Global Health 2020; 5:e002122. e no aumento das receitas de empresas de planos privados também foram abordados 4747. Costa DCAR. Saúde pública e privada no Brasil em tempos de crise econômica e sanitária: interfaces, políticas governamentais e dinamismo das empresas de planos e seguros de saúde [Projeto de Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2021.,4848. Andrietta LS, Monte-Cardoso A, Sestelo JAF, Scheffer MC, Bahia L. Empresas de plano de saúde no Brasil: crise sanitária e estratégias de expansão. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2021.. Em contrapartida, países como Coreia do Sul e Chile registraram aumentos anuais de gastos com saúde, mesmo após 2008, e apresentaram aumento na oferta e produção de serviços de saúde 11. Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD.Stat: health care resources. https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=HEALTH_REAC (acessado em 01/Abr/2019).
https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSe... .
Embora os princípios de universalidade e gratuidade do SUS estejam mantidos constitucionalmente, no período de crise aprofundou-se a discrepância entre produção e oferta de serviços de saúde públicos e privados, com destaque para a redução do número de consultas e do número de leitos no SUS. A análise do número total de leitos por mil habitantes no Brasil aponta uma tendência de redução que antecede a crise (2,4 em 2011; 2,2 em 2014; e 2,1 em 2019), tal como ocorrido no Reino Unido, que apresentou redução da proporção de leitos per capita entre 2000 e 2013 (4,1 leitos por mil habitantes em 2000; 3,3 em 2008; e 2,7 em 2014), e nos Estados Unidos no mesmo período (3,5 leitos por mil habitantes em 2000; 3,1 em 2008; e 2,8 em 2014) 11. Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD.Stat: health care resources. https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=HEALTH_REAC (acessado em 01/Abr/2019).
https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSe... .
O movimento de restrição da capacidade instalada hospitalar tem sido unidirecional, atingindo exclusivamente os leitos públicos. A capacidade instalada de equipamentos de tomografia e ressonância nuclear se mantém superior à do SUS.
Os dados para quimioterapia no setor privado entre 2014 e 2019 não evidenciaram uma tendência nítida, a série histórica apresenta oscilações. É possível que haja inconsistências nas informações prestadas à ANS por cooperativas médicas no ano de 2017, já que a quantidade de procedimentos quimioterápicos informados quadruplicou entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017, destoando daquelas prestadas pelas empresas das demais modalidades. Ainda assim, os dados revelam dois traços característicos: a desigualdade entre os procedimentos para clientes de planos e usuários do SUS (mais que o dobro em toda a série e pelo menos o triplo a partir de 2014, comparando a rede pública com ajuste do número de pessoas); e uma tendência persistente de crescimento na realização de quimioterapias, identificada na rede pública mesmo a partir da crise.
A radioterapia foi a única atividade na qual ocorreu, simultaneamente, um incremento na produção no SUS e uma redução na assistência suplementar. Historicamente, os procedimentos radioterápicos, assim como hemodiálises, são de alto custo, largamente financiados com recursos do SUS 4949. Lima SML, Portela MC, Ugá MAD, Vasconcellos MTL. Regulação dos serviços de radioterapia e quimioterapia pelas operadoras de planos de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:195-204.. Fatores como os investimentos para a instalação dos aparelhos e os mecanismos de regulação impostos pelos planos de saúde contribuem para autorização e pagamento desses procedimentos 4949. Lima SML, Portela MC, Ugá MAD, Vasconcellos MTL. Regulação dos serviços de radioterapia e quimioterapia pelas operadoras de planos de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:195-204., os quais dificultam o acesso ao serviço, bem como os valores de remuneração. Outra particularidade é a introdução de novas técnicas radioterápicas que têm permitido a redução do número de sessões para o tratamento de alguns tipos de câncer, o que poderia explicar parcialmente a redução das sessões reembolsadas pelo setor privado.
A autorização para abertura da saúde a empresas e capital estrangeiro e seu suposto potencial para reduzir a pressão sobre o SUS 5050. Supremo Tribunal Federal. ADI 5435. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4904582 (acessado em 08/Abr/2021).
http://portal.stf.jus.br/processos/detal... parecem não influenciar os diferenciais de uso de cuidados de saúde. A comparação dos resultados com o ajuste, incluindo ou não os clientes de planos de saúde, expõe a permanência das desigualdades entre o público e o privado, ainda que todos os recursos do SUS fossem destinados somente àqueles que não têm planos de saúde.
As medidas governamentais adotadas diante da crise econômica-fiscal-política-institucional, como a redução de recursos federais e a ampliação da interferência legislativa na saúde, desorganizaram o arranjo federativo do SUS 5151. Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4509-18.. Houve o corte de gastos públicos com saúde como medida para lidar com a crise, também observado em países da América Latina 33. Levcovitz E, Couto MHC. Sistemas de saúde na América Latina no século XXI. In: Santana JP, Padilla M, Nogueira RP, Rodrigues VA, organizadores. Observatório internacional de capacidades humanas, desenvolvimento e políticas públicas: tendências recentes das políticas sociais na América Latina: estudos e análises. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2018. p. 99-118..
Entre as limitações da pesquisa, situam-se as inconsistências relacionadas aos dados de quimioterapia e a ausência de dados de 2019 para radioterapia, conforme descrito anteriormente, além de o gasto privado com saúde ter sido analisado com base somente nas receitas de prêmios e despesas das empresas de planos, considerando que não há estatísticas anuais sobre valores de desembolso direto com saúde.
Considerações finais
Os achados deste estudo não só corroboram as evidências da literatura no que tange às discrepâncias entre o público e o privado, como apontam que as iniquidades na saúde pública e privada no Brasil foram aprofundadas pela crise, tendo em vista os impactos no gasto, na oferta e na produção de serviços.
A crise econômica gerou oportunidades para empresas de planos de saúde ampliarem receitas e concentrarem recursos assistenciais. O desempenho positivo das empresas pode ser compreendido como integrante do processo de acumulação de capital, que inclui estímulos governamentais para a expansão do setor privado.
Este artigo contribui para a compreensão dos impactos da crise no sistema de saúde brasileiro e da dinâmica de corte de recursos públicos para o SUS versus ampliação do mercado privado de saúde. Torna-se imprescindível avançar em pesquisas que identifiquem como o setor privado de saúde se organiza e continua crescendo durante períodos de crise, além de estudos sobre os efeitos da crise econômica aprofundada pela crise sanitária nos setores público e privado de saúde.
É fundamental que as dimensões pública e privada sejam consideradas em interpretações críticas sobre o sistema de saúde no Brasil. As crises capitalistas tensionam o conflito distributivo e afetam as condições de reprodução social. Consequentemente, ampliar o ângulo das análises sobre políticas de saúde torna-se essencial para detectar não apenas impactos negativos sobre o orçamento ou serviços, mas também as políticas orientadas a beneficiar interesses de determinados grupos econômicos que constrangem as possibilidades de consolidação do SUS.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Conselho de Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro ao projeto Crise Financeira e Impactos sobre as Empresas de Planos e Seguros de Saúde no Brasil: Uma Análise Exploratória (Chamada Universal MCTI/CNPq nº 01/2016; processo nº 432128/2016-6).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
25 Nov 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
09 Nov 2021 - Revisado
09 Ago 2022 - Aceito
11 Ago 2022