Fatores demográficos e socioambientais associados à insegurança alimentar domiciliar nos diferentes territórios da cidade de Salvador, Bahia, Brasil

Demographic and socio-environmental factors associated with household food insecurity in different territories of the city of Salvador, Bahia State, Brazil

Factores demográficos y socioambientales asociados a la inseguridad alimentaria domiciliar en los diferentes territorios de la ciudad de Salvador, Bahía, Brasil

Giselle Ramos Coutinho Sandra Maria Chaves dos Santos Cíntia Mendes Gama Silvana Oliveira da Silva Maria Elisabete Pereira dos Santos Natanael de Jesus Silva Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste estudo foi apresentar a prevalência da insegurança alimentar domiciliar em diferentes territórios da cidade de Salvador, Bahia, Brasil, e analisar fatores demográficos e socioambientais a ela associados. Os dados utilizados são de uma pesquisa maior denominada Qualidade do Ambiente Urbano de Salvador - QUALISalvador, realizada entre 2018 e 2020 em Salvador. A insegurança alimentar foi avaliada por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Foram analisados 15.171 domicílios. Modelos de regressão logística multinominal foram utilizados para analisar a associação de variáveis demográficas e socioambientais com insegurança alimentar leve (IAL) e moderada ou grave (IAMG), para Salvador e macrozonas. Salvador apresentou 40,96% de insegurança alimentar. Nas macrozonas, as prevalências se diferenciaram: Orla Atlântica (25,8%), Área Urbana Consolidada (33%), Subúrbio (45,7%) e Miolo (47,9%). Todos os fatores analisados apresentaram associação com IAL e/ou IAMG no modelo para Salvador, entre eles estão o responsável pelo domicílio ter escolaridade ≤ 4 anos (IAL: OR = 2,00; IC95%: 1.61-2,47/IAMG: OR = 4,94; IC95%: 3,83-6,35), renda familiar per capita de até 1/2 salário mínimo (IAL: OR = 2,62; IC95%: 2,37-2,93/IAMG: OR = 4,03; IC95%: 3,53-4,60), percepção sobre a qualidade do ambiente urbano como ruim (IAL: OR = 1,57; IC95%: 1,36-1,81/IAMG: OR = 2,03; IC95%: 1,73-2,38), com maior prevalência de insegurança alimentar em cenários de pior situação sociodemográfica. Na macrozona Miolo todos os fatores também se mantiveram associados à insegurança alimentar. Assim, os fatores de vulnerabilidade social estão associados à insegurança alimentar na capital e macrozonas, mas apresentam-se de formas especificas segundo características de cada território.

Palavras-chave:
Insegurança Alimentar; Zona Urbana; Desigualdades Sociais


This study aimed to present the prevalence of household food insecurity in different territories of the city of Salvador, Bahia State, Brazil, and to analyze demographic and socio-environmental factors associated with it. The data used are from a larger survey named Quality of the Urban Environment of Salvador - QUALISalvador, carried out from 2018 to 2020 in in the city. Food insecurity was assessed using the Brazilian Food Insecurity Scale. A total of 15,171 households were analyzed. Multinomial logistic regression models were used to analyze the association of demographic and socio-environmental variables with mild food insecurity (MFI) and moderate or severe food insecurity (MSFI) for Salvador and by macrozones. Salvador presented 40.96% of food insecurity. In the macrozones, the prevalence differed: Atlantic Coast (25.8%), Consolidated Urban Area (33%), Suburb (45.7%), and Core (47.9%). All factors analyzed were associated with MFI and/or MSFI in the model for Salvador, namely: household head having schooling ≤ 4 years (MFI: OR = 2.00; 95%CI: 1.61-2.47/MSFI: OR = 4.94; 95%CI: 3.83-6.35), having per capita family income of up to 1/2 minimum wage (MFI: OR = 2.62; 95%CI: 2.37-2.93/MSFI: OR = 4.03; 95%CI: 3.53-4.60), perception of the quality of the urban environment as poor (MFI: OR = 1.57; 95%CI: 1.36-1.81/MSFI: OR = 2.03; 95%CI: 1.73-2.38), with a higher prevalence of food insecurity in scenarios of worse sociodemographic situation. In the Core Macrozone, all factors were also associated with food insecurity. Thus, the factors of social vulnerability are associated with food insecurity in the capital and macrozones, but they are presented in a specific way according to the characteristics of each territory.

Keywords:
Food Insecurity; Urban Area; Social Inequalities


El objetivo de este estudio fue estimar la prevalencia de la inseguridad alimentaria familiar en diferentes territorios de la ciudad de Salvador (Bahía, Brasil) y analizar sus factores demográficos y socioambientales asociados. Los datos provienen de la encuesta Calidad del Ambiente Urbano de Salvador - QUALISalvador, realizada entre 2018 y 2020 en Salvador. La inseguridad alimentaria se evaluó mediante la Escala Brasileña de Inseguridad Alimentaria. Se analizaron 15.171 domicilios. Se utilizaron los modelos de regresión logística multinomial para analizar la asociación de variables demográficas y socioambientales con la inseguridad alimentaria leve (IAL) y moderada o severa (IAMG) para Salvador, por macrozonas. Salvador presentó el 40,96% de inseguridad alimentaria. En las macrozonas, las prevalencias fueron diferentes: Orla Atlântica (25,8%), Área Urbana Consolidada (33%), Subúrbio (45,7%) y Miolo (47,9%). Todos los factores analizados se asociaron con IAL e/o IAMG en el modelo para Salvador, entre ellos destacan el responsable del hogar con nivel de estudios ≤ 4 años (IAL: OR = 2,00; IC95%: 1,61-2,47/IAMG: OR = 4,94; IC95%: 3,83-6,35), con renta familiar per cápita de hasta 1/2 salario mínimo (IAL: OR = 2,62; IC95%: 2,37-2,93/IAMG: OR = 4,03; IC95%: 3,53-4,60), percepción de mala calidad del medio urbano (IAL: OR = 1,57; IC95%: 1,36-1,81/IAMG: OR = 2,03; IC95%: 1,73-2,38) y mayor prevalencia de inseguridad alimentaria en escenarios con peor situación sociodemográfica. En la macrozona Miolo, todos los factores también estuvieron asociados con la inseguridad alimentaria. Por tanto, los factores de vulnerabilidad social se asocian a la inseguridad alimentaria en la capital y en las macrozonas, pero son específicos según las características de cada territorio.

Palabras-clave:
Inseguridad Alimentaria; Área Urbana; Desigualdades Sociales


Introdução

A segurança alimentar e nutricional, conforme a Lei nº 11.34611. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set., de 15 de setembro de 2006, compreende o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, respeitando a cultura e a sustentabilidade. A não garantia desse direito humano configura uma situação de insegurança alimentar que, no ambiente familiar, pode apresentar diferentes magnitudes, como a preocupação sobre a aquisição dos alimentos, alterações qualitativas e quantitativas e até a ausência do alimento para consumo 22. Segall-Corrêa AM, Marin-Leon L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27:241-51..

Diferentes determinantes relacionados à insegurança alimentar têm sido descritos na literatura 33. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700.,66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,77. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. http://olheparaafome.com.br (acessado em 20/Jul/2021).
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,88. Bezerra SM, Medeiros MC, Ferreira MAF, Vale D, Mirabal IRB, Lyra CO. Food and nutritional insecurity in Brazil and its correlation with vulnerability markers. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:3833-46.. Entretanto, a situação de insegurança alimentar moderada ou grave (IAMG) apresenta uma relação mais forte com as condições de maior vulnerabilidade. Um estudo no Brasil, que realizou análise de associação de fatores de determinação utilizando dados nacionais seriados, mostrou que entre os fatores associados à IAMG estão: residir nas regiões Norte e Nordeste, área urbana com acesso ao saneamento básico inadequado, densidade domiciliar de mais de duas pessoas por dormitório, pessoa de referência do domicílio do sexo feminino, raça/etnia diferente de branca, ter escolaridade menor ou igual a quatro anos e estar desempregada 44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917., além da baixa renda 55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700..

Existem diferenças da situação de insegurança alimentar entre países e dentro do país, que podem revelar enormes desigualdades sociais 33. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700.,66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,77. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. http://olheparaafome.com.br (acessado em 20/Jul/2021).
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,99. Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children’s Fund; World Food Programme; World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2021.. No Brasil, a situação de insegurança alimentar mostra-se desigual entre as regiões. Norte (63,1%) e Nordeste (71,9%) apresentam as piores condições quando comparados com Centro-oeste (53,3%) e Sul/Sudeste (46,9%) 77. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. http://olheparaafome.com.br (acessado em 20/Jul/2021).
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. Essa desigualdade também é vista ao comparar a área urbana (72,3%) e a rural (70,6%) do Nordeste 77. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. http://olheparaafome.com.br (acessado em 20/Jul/2021).
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. Entre os estados do Nordeste, a Bahia apresentou a terceira maior prevalência de insegurança alimentar (37,8%) 1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar: 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014..

No Brasil, pesquisas nacionais 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,77. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito nacional sobre a insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. http://olheparaafome.com.br (acessado em 20/Jul/2021).
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,1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar: 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014. sobre situação de insegurança alimentar não apresentam resultados desagregados em escala municipal. Atentos a essa questão, à diferença geográfica e tomando o município como unidade básica da organização política, Gubert & Perez-Escamilla 1111. Gubert MB, Perez-Escamilla R. Insegurança alimentar grave municipal no Brasil em 2013. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3433-44. estimaram, a partir de modelos preditores, a prevalência da insegurança alimentar grave (IAG) nos municípios brasileiros a partir dos dados nacionais de 2013. Os municípios da Região Nordeste apresentaram maiores discrepâncias (0,83% a 18,58%). A Bahia teve mais de 90% dos seus municípios com prevalências muito altas (5,93% a 18,53%) de IAG. Os autores constatam que a localização geográfica dos municípios tem forte influência na predição da IAG.

Diferentes indicadores confirmam que o Brasil apresenta situações de profundas desigualdades sociais 1212. United Nations Development Programme. Regional Human Development Report 2021. Trapped: high inequality and low growth in Latin America and the Caribbean. Nova York: United Nations Development Programme; 2021.. As diferenças na distribuição da insegurança alimentar na população revelam essas desigualdades, consideradas como estruturais. Diante disso, considera-se que as diferenças sociais, em sua escala intraurbana e em termos geográficos, culturais ou demográficos, são reflexos de processos históricos, econômicos, sociais e culturais que se transformam em desigualdades à medida que são estabelecidas relações de poder. A posse de bens, o acesso a serviços e riquezas, frutos do trabalho coletivo, porém acumulados de forma privada por gerações 1313. Barreto ML. Health inequalities: a global perspective. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:2097-108.,1414. Moreira E. Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2019., são elementos estruturais que determinam e interferem na garantia da segurança alimentar e nutricional.

Salvador, capital da Bahia, é uma cidade desigual. Seu processo de constituição e desenvolvimento econômico, social e político tem determinado como os espaços geográficos são conformados 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.,1717. Soares AMC. “Territorialização” e pobreza em Salvador - BA. Estudos Geográficos 2006; 4:17-30. - o fato é que cada território da cidade tem elementos históricos únicos, que reverberam em desigualdades 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.. Nesse sentido, suas macrozonas se diferenciam em questões de infraestrutura, acesso a serviços básicos, rendimento médio e escolaridade da população. Enquanto a Orla Atlântica e a Área Urbana Consolidada apresentam as melhores condições, as macrozonas Miolo e Subúrbio têm condições mais precarizadas 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

Percebe-se uma lacuna na reflexão sobre a associação entre a situação de insegurança alimentar e os fatores socioeconômicos, a desigualdade expressa no território intraurbano e o acesso diferenciado à infraestrutura urbana ofertada pela administração da cidade. Dessa forma, este artigo teve como objetivo apresentar a prevalência da insegurança alimentar domiciliar nos diferentes territórios da cidade de Salvador e analisar os fatores demográficos e socioambientais associados a ela, de modo a contribuir para a compreensão desse fenômeno em escala intraurbana.

Metodologia

Desenho e amostra do estudo

Este é um estudo transversal, que utilizou os dados da linha de base da pesquisa maior Qualidade do Ambiente Urbano de Salvador - QUALISalvador, a qual objetivou produzir e difundir conhecimento sobre a realidade urbano ambiental da cidade de Salvador na escala intraurbana.

A amostra foi estratificada por bairro. Cada bairro foi considerado uma população de investigação, totalizando 160 bairros. Cada população incluiu todos os domicílios ocupados. Para o cálculo da amostra utilizou-se a população estimada de cada bairro com base nos dados do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e no número de domicílios cadastrados pela prestadora de serviço de saneamento básico, que atende 98% da população, sendo considerado 2,8 habitantes por domicílio. Assim, a amostra foi composta por 16.527 domicílios. Houve, ainda, acréscimo de 5%, considerando potenciais perdas, totalizando 17.352 domicílios. Os domicílios de cada bairro foram selecionados de forma aleatória sistemática sem reposição. Cada domicílio recebeu um número de identificação (Id) para posterior georreferenciamento. A pesquisa trabalhou com erro amostral de 8% e intervalo de 90% de confiança. Os números amostrais de cada bairro e todos os detalhes da amostragem estão apresentados em publicação específica 1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

Para este estudo, foram excluídos os domicílios com preenchimento errôneo da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) (0,5%) e aqueles que responderam “outros” da variável sexo do responsável pelo domicílio (0,1%). Isso totaliza, então, 15.171 domicílios para a análise.

Coleta de dados

Os domicílios foram localizados a partir do Id no software QGIS (https://qgis.org/en/site/). Posteriormente, utilizou-se o Google Earth (https://earth.google.com) para definir o endereço de cada domicílio. A coleta de dados foi realizada por estudantes pesquisadores selecionados por meio de edital. Foi utilizado um questionário estruturado com 62 questões, divididas em cinco dimensões: físico-ambiental; socioeconômica; serviço e infraestrutura; cultura e cidadania; bem-estar. O entrevistado respondente foi um morador do domicílio, maior de 18 anos, tendo sido dada prioridade ao responsável pelo domicílio. A coleta ocorreu entre dezembro de 2018 e julho de 2020, em unidades domiciliares, nos 160 bairros da capital baiana 1818. Salvador. Lei nº 9.278, de 21 de setembro de 2017. Dispõe sobre a delimitação e denominação dos bairros do Município de Salvador, Capital do Estado da Bahia, na forma que indica, e dá outras providências. Diário Oficial do Município 2017; 21 set.. Devido, principalmente, à dificuldade dos moradores de classe média e alta em aceitar participar da pesquisa, a técnica snowball sampling foi incorporada ao estudo para alcançar a amostra. Com o início da pandemia de COVID-19, o questionário da pesquisa foi adaptado para o ambiente virtual. Ao final da pesquisa, foram entrevistados 15.260 domicílios. Destes, 91,8% foram pela técnica aleatória sistemática face a face com base na amostragem, e 8,2% pela técnica snowball sampling, sendo que 7,2% foram online e 1% snowball sampling face a face.

As respostas foram digitalizadas no software KoBoCollect (http://www.kobotoolbox.org/) e exportadas em formato Excel (https://products.office.com/). Para estruturação do banco de dados foram realizadas três fases de checagem e posteriormente, para sua consolidação, foi realizada a imputação múltipla, devido à presença de dados omissos em algumas variáveis. Não houve imputação para a variável insegurança alimentar.

Territórios de estudo

Uma lei municipal estabelece que “o macrozoneamento é o instrumento que define a estruturação do território face às ações estratégicas de desenvolvimento urbano e socioeconômico1919. Salvador. Lei nº 9.069, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador - PDDU 2016 e dá outras providências. Diário Oficial do Município 2016; 30 jun.. As macrozonas 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.,1919. Salvador. Lei nº 9.069, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador - PDDU 2016 e dá outras providências. Diário Oficial do Município 2016; 30 jun.,2020. Santos M. O dinheiro e o território. São Paulo: GEOgraphia; 1999. são territórios distintos profundamente marcados por características socioeconômicas e ambientais diversas - a Área Urbana Consolidada e a Orla Atlântica são o lócus de moradia dos segmentos sociais situados nas maiores faixas de renda, já o Miolo e Subúrbio compreendem o território ocupado pela população situada nas menores faixas de renda, pela habitação popular 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

O Subúrbio, região banhada pela Baía de Todos os Santos, teve sua urbanização impulsionada pela implantação da linha férrea, em 1860. Nessa região, composta por 41 bairros, há o predomínio de casas populares sem estrutura de ordenamento prévia. O Miolo, localizado no centro geográfico de Salvador, é margeado pela Avenida Paralela e pela BR-324. É onde prevalecem conjuntos habitacionais populares, aglomerados de prédios de pequeno porte, nos seus 57 bairros. Nessas regiões, concentra-se a população não branca e de baixa e média renda de Salvador 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

A Área Urbana Consolidada e a Orla Atlântica são regiões qualificadas como “nobres” que concentram as oportunidades de trabalho, investimento dos equipamentos urbanos (shopping centers, teatros, parques e centros de convenções), compõem as áreas residenciais consideradas como privilegiadas, local de residência da população situada nas maiores faixas de renda e da população que se declara branca 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.. A Área Urbana Consolidada é caracterizada pelos bairros tradicionais da cidade, primeira região habitada na cidade e caracteriza-se pelos antigos casarões e prédios de luxo, distribuídos ao longo de 47 bairros. Na Orla Atlântica, localizam-se os prédios de grande porte, com planejamento e estruturação urbana, região da cidade que abarca 15 bairros. Desse modo, a despeito dessas características estruturantes nas referidas macrozonas, encontramos, nas chamadas áreas “nobres”, ilhas de pobreza - a periferia no centro 2121. Dias C. Práticas socioespaciais e processos de resistência na grande cidade: relações de solidariedade nos bairros populares de Salvador [Tese de Doutorado]. Salvador: Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia; 2017..

Insegurança alimentar

Este estudo tem como variável desfecho a situação de insegurança alimentar, medida por meio da EBIA. A escala é composta por 14 perguntas, que avaliam a situação de insegurança alimentar a partir da percepção do morador com referência aos três meses anteriores ao dia da pesquisa. Após o somatório de pontos afirmativos das questões, de acordo com a presença ou não de menor de 18 anos residentes no domicílio, realizou-se a classificação domiciliar em quatro categorias: (i) insegurança alimentar leve (IAL), preocupação em relação à falta de alimento, podendo já haver limitação qualitativa; (ii) insegurança alimentar moderada (IAM), redução qualitativa e quantitativa; (iii) IAG, não consumo alimentar; e (iv) se todas as respostas são negativas, caracteriza-se segurança alimentar, satisfação quando existe o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade 22. Segall-Corrêa AM, Marin-Leon L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27:241-51.,1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar: 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014..

Variáveis demográficas e socioambientais

As variáveis demográficas e socioambientais utilizadas para análise são: sexo (feminino e masculino); cor declarada (preta, parda, amarela ou indígena - diferente de branca - e branca); faixa etária em anos (até 29, 30 a 59 e maior de 60); escolaridade do responsável pelo domicílio em anos e estudo (até 4, 5 a 8 e mais de 8); renda familiar per capita em salártios mínimos (até 1/2, > 1/2 < 1 e > 1) de acordo com o salário mínimo do ano de 2018 (R$ 954,00); presença de menor de 5 anos no domicílio (sim e não); densidade domiciliar, constituída pela razão entre o total de moradores e o número de dormitórios no domicílio (≤ 2 moradores/dormitório e > 2 moradores/dormitório); fornecimento de água no domicílio (contínuo e intermitente/não há ligação à rede de abastecimento de água). Essas variáveis foram selecionadas de acordo com a literatura 11. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set.,33. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700.. Levando em consideração a multideterminação da situação de insegurança alimentar e a relação de determinantes regionais e locais 33. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99., bem como a disponibilidade da informação no banco de dados, optou-se por selecionar a variável relativa à percepção do morador respondente sobre a qualidade do ambiente urbano do bairro onde mora (bom, regular e ruim).

Análise estatística

As análises foram conduzidas no software Stata 12.0 (https://www.stata.com). Considerando o desenho complexo da amostra, o comandosvy foi aplicado para ponderação das estimativas de prevalência e medida de associação. Inicialmente, realizou-se análise descritiva (univariada) das características demográficas e socioambientais e da situação de insegurança alimentar para Salvador e as macrozonas. O mapa da distribuição espacial da prevalência de IAMG nos bairros da cidade foi construído utilizando o software QGIS, versão 2.18.28.

De acordo com o teste de Hausman, os dados utilizados neste estudo atendem a suposição de independência de alternativas irrelevantes para o modelo logístico multinomial 2222. Hausman J, McFadden D. Specification test for the multinomial logit model. Econometrica 1984; 52:1219-40.. Assim, o modelo de regressão logística multinomial (bruta) foi utilizado para analisar os fatores demográficos e socioambientais associados aos diferentes níveis de insegurança alimentar. Três categorias de desfecho foram definidas para melhor atender o modelo: segurança alimentar, IAL e IAMG, sendo a primeira tratada como categoria de referência. A magnitude da associação entre as variáveis socioambientais e demográficas, descritas anteriormente, e a variável desfecho foi estimada pelo cálculo da razão de chances (odds ratio - OR) e intervalos de 95% de confiança (IC95%). A associação de cada macrozona urbana de Salvador com a situação de IAL e IAMG domiciliar foi também estimada, tomando como referência a macrozona Orla Atlântica.

Em seguida, optou-se por realizar um modelo de regressão logística multinomial (ajustada). Nessa análise, as OR estimadas são ajustadas por todas as variáveis explicativas incluídas no modelo. Foram consideradas elegíveis para inclusão no modelo as variáveis independentes que mostraram valor de p < 0,05 na regressão logística multinomial (bruta). Em nosso estudo, adotamos o método stepwise forward, que começa com um modelo vazio e adiciona as variáveis uma a uma, começando por aquelas mais significativas. Para seleção do modelo com melhor ajuste, foram observados o nível de significância (valor de p < 0,05) das variáveis preditoras e os critérios de Akaike (AIC) e Bayesiano (BIC) 2323. Bozdogan H. Model selection and Akaike’s information criterion (AIC): the general theory and its analytical extensions. Psychometrica 1987; 52:345-70.,2424. Schwarz G. Estimating the dimensional of a model. Ann Stat 1978; 6:461-4..

Tendo como base o modelo final de associação encontrado para a cidade de Salvador, foi realizada regressão logística multinomial (ajustada) para verificar se as associações entre os fatores demográficos e socioambientais com a situação de IAL e IAMG nos domicílios permanecem em escala intraurbana. O modelo foi estratificado segundo as quatro macrozonas urbanas de Salvador: Miolo, Área Urbana Consolidada, Subúrbio e Orla Atlântica.

Questões éticas

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina, Universidade Federal da Bahia (UFBA; parecer nº 2.308.5716).

Resultados

Observou-se que a cor do responsável pelo domicílio diferente de branca esteve presente em 85,3% dos domicílios de Salvador. As macrozonas que apresentaram maior prevalência dessa característica foram Subúrbio e Miolo, com 91,09% e 90,74% respectivamente. Em Salvador, 18,98% dos domicílios têm chefe da família com mais de 8 anos de estudo. Destaca-se que o Subúrbio (8,57%) e o Miolo (10,59%) apresentaram menores prevalências dessa condição. Por outro lado, na Orla Atlântica, 51,17% dos chefes têm mais de 8 anos de estudo. Considerando o rendimento, em Salvador, 43,66% dos domicílios estão na faixa de renda familiar per capita de até 1/2 salário mínimo, condição que é vista em 55,59% dos domicílios no Subúrbio. Quanto à percepção do respondente sobre a qualidade do ambiente urbano do bairro onde mora, na Orla Atlântica há maior prevalência (62,83%) da percepção de boa qualidade, quando comparada à percepção da cidade e das outras macrozonas. A insegurança alimentar foi observada em 40,9% para a cidade de Salvador, sendo 23,8% IAL e 17,2% IAMG. Entre as macrozonas, Subúrbio e Miolo apresentaram prevalências de IAL e IAMG maiores que as encontradas para a cidade (Tabela 1). Já na Figura 1, tem-se espacialização da prevalência de IAMG domiciliar dos bairros que fazem parte das quatro macrozonas da cidade. Observa-se que há um bairro (na cor branca) da Orla Atlântica que apresentou 0% de IAMG.

Tabela 1
Prevalência da situação de insegurança alimentar e dos fatores demográficos e socioambientais, para Salvador e segundo macrozonas. Bahia, Brasil, 2018-2020.

Figura 1
Distribuição espacial da prevalência da insegurança alimentar moderada ou grave (IAMG) domiciliar nos bairros que integram as macrozonas. Salvador, Bahia, Brasil, 2018-2020.

Na análise bruta, todas as variáveis estiveram associadas à situação de IAL e IAMG para Salvador. Na análise ajustada, nota-se menor magnitude das associações, mas apenas a variável presença de menor de 5 anos no domicílio (IAL: OR = 1,29; IC95%: 1,16-1,44/IAMG: OR = 1,10; IC95%: 0,97-1,25) não manteve a associação com IAMG. Observou-se associação das respostas sobre escolaridade, renda per capita e percepção sobre o ambiente urbano com IAL e IAMG. Ou seja, as chances de IAL e IAMG eram maiores à medida que a escolaridade e renda per capita diminuíam e os respondentes tinham pior percepção sobre o ambiente urbano do bairro onde moravam (Tabela 2).

Tabela 2
Razões de chance brutas/ajustadas (odds ratio - OR) da insegurança alimentar leve (IAL), moderada ou grave (IAMG) no domicílio e fatores demográficos e socioambientais em Salvador, Bahia, Brasil, 2018-2020.

Na Tabela 3, ao analisar a insegurança alimentar por macrozona, observou-se associação da IAL e IAMG com a Área Urbana Consolidada, Miolo e Subúrbio em relação à Orla Atlântica. A IAMG apresentou maior magnitude de associação no Subúrbio e Miolo (3,4 vezes a chance). Ser do sexo feminino, ter idade entre 30 e 59 anos, ter 8 anos ou menos de estudo, faixa de renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo, fornecimento de água intermitente ou não haver ligação à rede de abastecimento de água e a percepção sobre as condições do ambiente urbano ruim ou regular associaram-se com IAL e/ou IAMG nas quatro macrozonas. Ter mais de dois habitantes por dormitório exclusivo associou-se à IAL e IAMG na Área Urbana Consolidada, no Subúrbio e Miolo. Presença de menor de 5 anos no domicílio associou-se a essa condição no Subúrbio e Miolo. E cor do responsável pelo domicílio diferente de branca apenas no Miolo (Tabela 4).

Tabela 3
Razão de chance bruta (odds ratio - OR) de insegurança alimentar leve (IAL), moderada ou grave (IAMG) nos domicílios das macrozonas de Salvador, Bahia, Brasil, 2018-2020.
Tabela 4
Razões de chance ajustadas (odds ratio - OR) de insegurança alimentar leve (IAL), moderada ou grave (IAMG) nos domicílios, segundo macrozonas e fatores demográficos e socioambientais. Salvador, Bahia, Brasil, 2018-2020.

Discussão

A situação de insegurança alimentar foi observada em 40,9% da população de Salvador, prevalência superior à encontrada para a área urbana do Brasil em 2017/2018 (35,1%) 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.. Também foi possível observar que a prevalência de insegurança alimentar se distribuiu de forma desigual na cidade, visto que as macrozonas Subúrbio e Miolo apresentaram as maiores prevalências de insegurança alimentar. Todas as variáveis analisadas mostraram-se associadas com a situação de IAL e IAMG no modelo para Salvador, sendo elas: o responsável pelo domicílio ser do sexo feminino, cor declarada diferente de branca, faixa etária (até 29 anos, 30 a 59 anos), escolaridade (até 4 anos, 5 a 8 anos), renda familiar per capita (até 1/2 salário mínimo, > 1/2 < 1 salário mínimo), presença de menor de 5 anos no domicílio, mais de dois habitantes por dormitório, fornecimento de água intermitente/não ter ligação à rede de serviço, percepção do morador respondente sobre a qualidade do ambiente urbano bairro onde mora (regular, ruim). Com relação ao modelo para as macrozonas, o Miolo apresentou os mesmos fatores associados do modelo para Salvador, enquanto na Orla Atlântica apenas seis fatores mantiveram-se associados e com menor magnitude de associação, mostrando diferenciação da região, evidenciando a desigualdade na cidade.

Este artigo apresenta os fatores demográficos e socioambientais associados à insegurança alimentar em escala intraurbana, considerando as desigualdades territoriais observadas em Salvador 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.,2525. Ribeiro MG. Desigualdades urbanas e desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras. Sociologias 2016; (42):198-230.. O ambiente urbano é o resultado da constante ação e interação do ser humano com os elementos naturais e destes entre si - o ambiente resultado dessa interação, por sua vez, modula ações e comportamentos 2626. Santos M. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec Editora; 1978.. A cidade é a unidade administrativa primária de ações públicas e reflete o processo histórico das modificações sociais, físicas, econômicas, demográficas, políticas e culturais em seu território. Salvador é uma das cidades que acumulam ao longo de sua construção urbana essas modificações, as quais culminaram em desigualdades territoriais observadas a partir de indicadores que se diferenciam nas regiões da cidade 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008..

O cenário de alta prevalência de insegurança alimentar encontrado para Salvador apresenta-se como um alerta dentro de um contexto em que se tem no país normas, regulações e responsabilidades institucionais estabelecidas, frutos de avanços das discussões políticas por várias décadas, que levaram ao reconhecimento do direito humano à alimentação adequada 11. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set.,2727. Brasil. Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010. Altera o art. 6º da Constituição Federal, para introduzir a alimentação como direito social. Diário Oficial da União 2010; 5 fev.. Considerando que essas normas devem ser implementadas na escala municipal, essa situação revela a necessidade de continuar avançando na produção de conhecimento de forma descentralizada, na escala local, e na implementação das ações para garantia da segurança alimentar e nutricional.

Ao analisar a insegurança alimentar em níveis, pode-se compreender diferentes estágios do processo que envolve a fome. A IAL, encontrada em 23% dos domicílios, representa a dimensão psicológica associada à preocupação com a falta de alimentos, sendo que, em muitos casos, já há redução da qualidade nutricional da alimentação. Nesse contexto, problemas nutricionais podem ser desenvolvidos, como anemia e deficiência de vitamina A 2828. Carneiro LBV, Castro IRR, Juvanhol LL, Gomes FS, Cardoso LO. Associação entre insegurança alimentar e níveis de hemoglobina e retinol em crianças assistidas pelo Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00243418.. Em nível de maior gravidade tem-se a IAMG, que esteve presente em 17,1% dos domicílios, evidenciando um contingente significativo de famílias vivendo em situação de vulnerabilidade na capital. Essa condição pode ocasionar comprometimento da estatura em crianças e, na população em geral, pode levar ao que se tem chamado de dupla carga, que é a presença da obesidade e da desnutrição 2929. Aliaga MA, Ribeiro MS, Santos SMC, Trad LAB. Avaliação participativa da segurança alimentar e nutricional em uma comunidade de Salvador, Brasil. Ciênc Saúde Colet 2020, 25:2595-604.. Nesse cenário, há um processo constante de violações de direitos humanos no ambiente urbano que desde a década de 1940 é discutido por Josué de Castro 3030. Castro J. Geografia da fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro; 1948., autor que já reconhecia a fome como um fenômeno complexo e multidimensional, de determinação multicausal 33. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:187-99.,3131. Melgar-Quinonez H, Hackett M. Measuring household food security: the global experience. Rev Nutr 2008; 21:27-37..

Há um conjunto de fatores relacionados à insegurança alimentar, entre eles, a chefia da família. O responsável pelo domicílio ser do sexo feminino é mais prevalente em territórios com vulnerabilidades socioeconômicas que estão associados à insegurança alimentar, como ter baixa renda e baixa escolaridade 3232. Facchini LA, Nunes BP, Motta JVS, Tomasi E, Silva SM, Thumé E, et al. Insegurança alimentar no Nordeste e Sul do Brasil: magnitude, fatores associados e padrões de renda per capita para redução das iniquidades. Cad Saúde Pública 2014; 30:161-74.,3333. Graham E, Dallmann D, Melgar-Quiñonez H. Gender disparities in perceived life satisfaction within food insecure populations. Food Secur 2019; 11:493-502.,3434. Campos JM, Akutsu RCCA, Silva ICR, Oliveira KS, Monteiro R. Gênero, segurança alimentar e nutricional e vulnerabilidade: o Programa das Mulheres Mil em foco. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:1529-37.. A vulnerabilidade feminina à insegurança alimentar domiciliar, por vezes, se potencializa quando a sua cor da pele é diferente de branca, podendo ter até duas vezes a chance de vivenciar a IAMG 3535. Lignani JB, Palmeira PA, Antunes MML, Salles-Costa R. Relationship between social indicators and food insecurity: a systematic review. Rev Bras Epidemiol 2020; 23:e200068.,3636. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série G. Estatística e Informação em Saúde).. Em Salvador, 58,4% dos domicílios são chefiados por mulheres e a cor do responsável pelo domicílio mais prevalente nos moradores da cidade é a diferente de branca. Apesar de ser uma condição predominante no território, a cor diferente de branca mostra-se como um fator de diferenciação, associando-se à situação de IAL e IAMG. A população negra, grupo que faz parte da categoria “diferente de branco”, correspondeu a 85,93% da população de Salvador, contudo, recebe menores salários em comparação à população branca, estando no mesmo nível de escolaridade ou na mesma categoria profissional 3737. Lima M, Prates I. Desigualdades raciais no Brasil: um desafio persistente. In: Arretche M, organizadora. Trajetória das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; 2015. p. 163-92.. A compreensão desse contexto perpassa pelo resgate histórico da herança colonial e escravista, que não foi superada e ainda permite a desigualdade entre brancos e não brancos em relação a escolaridade, trabalho, renda, habitação, entre outros fatores.

Com relação à escolaridade, quanto menor o número de anos de estudo do responsável pela família, maior a prevalência da situação de insegurança alimentar nos domicílios. Em Salvador, 81,02% apresentaram-se com até 8 anos de estudo. Ter escolaridade baixa ou intermediária pode limitar a inserção no mercado de trabalho formal, que poderia garantir maior estabilidade financeira e, consequentemente, maior acesso à alimentação e a melhores condições de vida 3838. Omuemu VO, Otasowie EM, Onyiriuka U. Prevalence of food insecurity in Egor local government area of Edo State, Nigeria. Ann Afr Med 2012; 11:139-45.. A maioria da população deste estudo está em idade economicamente ativa, menor de 60 anos. Entretanto, o desemprego na capital, em 2018, foi um dos mais altos no país, 16,1% 3939. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Quarto trimestre de 2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019., e o trabalho informal chegou a 41,6% 1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022. em 2018-2020, o que pode ter contribuído para alta prevalência de insegurança alimentar. Assim como em outros estudos 44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700., a idade do responsável pelo domicílio mostrou-se relacionada à situação de insegurança alimentar, e pessoas com mais de 60 anos têm maior probabilidade de receber aposentadoria por meio do sistema de seguridade social.

Em Salvador, 43,66% dos domicílios têm renda familiar per capita de até 1/2 salário mínimo. Esse dado indica uma dimensão da desigualdade econômica e social vivenciada pela população mais desfavorecida. Com base na cesta básica de maior valor no Brasil, em 2018, o salário mínimo ideal para garantir a alimentação e outras necessidades básicas era de R$ 3.960,57 4040. Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Valor da cesta básica aumenta em todas as capitais em 2018. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2018/201812cestabasica.pdf (acessado em 13/Mar/2019).
https://www.dieese.org.br/analisecestaba...
, sendo que o salário mínimo na época era de R$ 954,00. Por condicionar o acesso à alimentação, a renda é um dos principais fatores relacionados à situação de insegurança alimentar.

Maior densidade domiciliar, ou seja, ter mais de duas pessoas no mesmo dormitório exclusivo 44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,55. Morais DC, Lopes SO, Priore SE. Indicadores de avaliação da insegurança alimentar e nutricional e fatores associados: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:2687-700., indica uma condição de vulnerabilidade. Pode expressar o risco de desvio de funcionalidade dos cômodos da casa, elevado número de moradores que ali se alimentam e, consequentemente, comprometer a quantidade e qualidade da alimentação para todos os integrantes da família 1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022.,4141. Pasternak S. Habitação e saúde. Estud Av 2016; 30:51-66.. Esse quadro se agrava quando há criança menor de 5 anos no domicílio, fase da vida importante de desenvolvimento corporal e cognitivo 2828. Carneiro LBV, Castro IRR, Juvanhol LL, Gomes FS, Cardoso LO. Associação entre insegurança alimentar e níveis de hemoglobina e retinol em crianças assistidas pelo Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00243418.. A precariedade da habitação da cidade de Salvador já tem sido relatada e está relacionada ao contexto de pobreza vivenciado por muitas famílias da capital, que integram um contexto maior que se estende para o Nordeste do Brasil 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

No que diz respeito ao fornecimento de água, apesar do serviço de abastecimento atender 98,9% dos domicílios da capital, observou-se que em 19,7% dessas residências não havia fornecimento de água contínuo. Esse dado revela que o processo de universalização do acesso à água ainda não foi concluído. Destaca-se que o acesso à água é um dos indicadores de monitoramento da segurança alimentar e nutricional 4242. Brasil. Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010. Regulamenta a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional - SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada, institui a política nacional de segurança alimentar e nutricional - PNSAN, estabelece os parâmetros para a elaboração do plano nacional de segurança alimentar e nutricional, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2010; 26 ago.. Sua ausência prejudica atividades relacionadas à alimentação, como o processo de higienização, cozimento e o consumo adequado de água. Considerando a saúde pública e a dimensão de utilização biológica dos nutrientes que compõem a segurança alimentar e nutricional, esse contexto favorece doenças infecciosas.

A percepção da qualidade do ambiente urbano do bairro onde mora foi incorporada neste estudo como parte da caracterização do território a partir da subjetividade dos moradores, considerando que os aspectos necessários para essa avaliação (infraestrutura urbana, acesso a serviços e lazer) estão relacionados com a situação de insegurança alimentar. Neste estudo, à medida que a percepção da qualidade do ambiente urbano era regular ou ruim, havia maior chance de IAL e IAMG nos domicílios. Estudo realizado em uma região do Miolo 4343. Aliaga MA, Santos SC, Trad LAB. Política(s) de segurança alimentar e nutricional: narrativas de líderes e moradores de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc 2019; 28:124-36. revelou a compreensão dos moradores e líderes comunitários sobre seu território: “...A maioria das famílias que passavam necessidades e que tinham certas dificuldades... eram chefes de família eram as mulheres... uma outra questão (...) é que a questão da insegurança alimentar... ela está muito mais relacionada a pessoas que são negras (...) se a gente fala Salvador... a gente sabe que a maioria dos bairros periféricos são formados por negros... e é lá onde está o foco de todos os problemas... normalmente... né... todos... não só alimentação… é tudo na verdade...” (Susana, moradora). Tendo em vista que maiores prevalências de insegurança alimentar são encontradas em territórios que exibem desigualdades raciais, de gênero, habitacional e de acesso ao saneamento básico 44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,1111. Gubert MB, Perez-Escamilla R. Insegurança alimentar grave municipal no Brasil em 2013. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3433-44., a percepção ruim sobre onde se mora revela a noção dos que vivenciam essas vulnerabilidades. Nesse sentido, é necessário considerar esse aspecto para construção de políticas públicas.

Observou-se que todos os fatores estudados se mantiveram associados à insegurança alimentar na macrozona Miolo. Um estudo realizado nessa região identificou que 80% dos responsáveis manifestaram preocupação com a falta de alimento para gerações futuras. Também foram encontrados resultados referentes ao estado nutricional, revelando a existência tanto da desnutrição quanto de excesso de peso, aspecto que está associado à insegurança alimentar. Nesse aspecto, com relação a crianças menores de 5 anos, 5% apresentaram magreza acentuada, e 7% sobrepeso 2929. Aliaga MA, Ribeiro MS, Santos SMC, Trad LAB. Avaliação participativa da segurança alimentar e nutricional em uma comunidade de Salvador, Brasil. Ciênc Saúde Colet 2020, 25:2595-604.. Esses achados estão relacionados com um quadro de vulnerabilidades sociais que permitem que a população esteja mais exposta à insegurança alimentar, como maior prevalência de desemprego, maior número de homicídios de pessoas negras, menos equipamentos públicos, menor acesso ao saneamento básico, característica dessa região e da macrozona Subúrbio, onde há bairros que chegam a ter renda média familiar per capita de R$ 198,56, enquanto a renda média da cidade de Salvador é de R$ 1.409,77 1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022..

Os fatores associados à insegurança alimentar nas macrozonas Orla Atlântica e Área Urbana Consolidada foram aqueles comumente encontrados na literatura 44. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917.,1111. Gubert MB, Perez-Escamilla R. Insegurança alimentar grave municipal no Brasil em 2013. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:3433-44.. Apesar de essas regiões apresentarem melhores condições de infraestrutura, rede de serviços, equipamentos urbanos, população com maior escolaridade e renda média familiar per capita de bairros chegando a R$ 5.742,30 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008.,1616. Santos M, Benevides T, Borja PC, Moraes LRS, Oliveira N, Pedrassoli JC, et al., organizadores. QUALISalvador: Qualidade do Ambiente Urbano na Cidade da Bahia. 2ª Ed. Salvador: Edufba; 2022., existem bairros que constituem “ilhas de precariedade” 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008., compostas por uma população mais exposta à vulnerabilidade social. Isso pode ter contribuído para a associação tanto da pior percepção da qualidade do ambiente urbano quanto dos outros fatores relacionados à insegurança alimentar.

Como anteriormente registrado neste trabalho, o território é uma categoria de análise de cunho marcadamente social. Nesse sentido, é simultaneamente matéria, processo, relação e significado 2020. Santos M. O dinheiro e o território. São Paulo: GEOgraphia; 1999.. Bezerra et al. 88. Bezerra SM, Medeiros MC, Ferreira MAF, Vale D, Mirabal IRB, Lyra CO. Food and nutritional insecurity in Brazil and its correlation with vulnerability markers. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:3833-46. concluíram que a falta de acesso aos alimentos nos distintos territórios que conformam a cidade é uma violação de direitos básicos. Como afirmam Carvalho & Pereira 1515. Carvalho IMM, Pereira GC. As “cidades” de Salvador. Salvador: Edufba; 2008., a cidade de Salvador se desenvolveu produzindo e reproduzindo situações de desigualdades em suas macrozonas, em seus bairros e no conjunto do seu território. As desigualdades demográficas e socioambientais aqui relacionadas conduzem a situações de vulnerabilidade social de parcela significativa dos moradores das áreas com menos infraestruturas, onde foram registrados os maiores percentuais de IAL e IAMG domiciliar.

Este estudo tem como pontos fortes o uso de um instrumento consistente e validado nacionalmente para avaliar a insegurança alimentar, sendo o tema aqui abordado analisado em diferentes territórios, o que favorece representatividade em termos da diversidade social e territorial da cidade objeto de estudo. Como é próprio de estudos transversais, há limitação no estabelecimento de relações de causalidade entre as variáveis analisadas. Devido à alta prevalência do desfecho encontrado no estudo, as razões de chance podem estar superestimadas. No entanto, considerando a importância de evidenciar a magnitude da insegurança alimentar em diferentes níveis, optou-se pela regressão logística multinomial. Considera-se também a limitação da interpretação dos resultados, destacando elevada recusa, por parte de alguns moradores, de colaborar com a pesquisa nos bairros chamados nobres e em alguns bairros vulneráveis, o que levou à mudança de técnica para completar a amostra - percentual relativamente baixo. Pondera-se, ainda, o processo amostral que não considerou 2% dos domicílios da cidade.

Conclusão

Salvador é uma cidade em que a desigualdade é um dos seus principais elementos constitutivos, historicamente impressa no seu território e explícita em seus fatores demográficos e socioambientais. Cada macrozona da cidade tem sua realidade distinta em termos de processo de ocupação, características demográficas e qualidade urbano ambiental nos aspectos físicos, sociais, econômicos e culturais, bem como na situação de IAL, IAM ou IAG. Os resultados aqui apresentados mostram que a capital tem alta prevalência de insegurança alimentar. Essa prevalência é diferenciada nos territórios, sendo uma das desigualdades evidenciadas.

A análise em escala intraurbana permitiu identificar de forma mais direcionada as regiões da cidade mais afetadas pela situação de insegurança alimentar. O Miolo e o Subúrbio são macrozonas da cidade com qualidade urbano ambiental precária e apresentam maior prevalência de IAMG em comparação com as demais regiões. Na Orla Atlântica e Área Urbana Consolidada predomina a situação de segurança alimentar, ainda que a insegurança alimentar domiciliar esteja presente de forma mais localizada. Observamos também que os fatores associados à IAL e IAMG apresentam-se de formas específicas nos territórios, sendo representados por condições de vulnerabilidade de vida e constituindo situações de diferenciação em termos demográficos e socioambientais. São distintos os territórios dentro de uma mesma região, sendo necessário olhar para cada particularidade da cidade, visando cuidados, investimentos e políticas públicas direcionadas para cada uma das macrozonas. Ainda, é necessário o monitoramento completo da segurança alimentar e nutricional, tendo como base o seu conceito ampliado quanto ao acesso à alimentação, além da necessidade de ações intersetoriais pautadas na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e na Política Nacional de Alimentação e Nutrição.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia e à Empresa Baiana de Águas e Saneamento pelo financiamento.

Referências

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2021
  • Revisado
    26 Jul 2022
  • Aceito
    11 Ago 2022
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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