Resumos
Desde o lançamento da terceira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), a psiquiatria biológica vem sistematicamente aplicando seu raciocínio classificatório a fenômenos sociais de múltiplas naturezas. Nessa perspectiva, ganha relevância o discurso do trauma, pelo qual acontecimentos de magnitude devastadora passaram a receber interpretações neurocomportamentais e foram, finalmente, reconhecidos menos por seus impactos culturais e subjetivos que pelas alterações fisiológicas que propiciam. Apoiado em revisão narrativa, este artigo procurará explorar a transição da racionalidade traumática entre o século XIX, quando o trauma fora concebido em associação ao conceito cognitivo de memória, e o século XX, quando finalmente esse fenômeno foi anexado à pesquisa neurocientífica do estresse. A pluralidade de modelos conceituais e paradigmas determinísticos pode contribuir para que a pesquisa do trauma produza protocolos de enfrentamento multifatoriais mais adequados à experiência humana do sofrimento pós-traumático.
Palavras-chave:
Trauma Psicológico; Transtorno de Estresse Pós-Traumático; Neurociências; Memória
Since the release of the third version of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III), biological psychiatry has been systematically applying its classification reasoning to social phenomena of many natures. From this perspective, the discourse of trauma gained relevance and events of devastating magnitude began to receive neurobehavioral interpretations until finally being recognized less for their cultural and subjective effects than for the physiological changes they cause. By a narrative review, this study aims to analyze the transition of traumatic rationality from the 19th century, when trauma was associated with the cognitive concept of memory, to the 20th century, when this phenomenon was finally attached to neuroscientific research on stress. The plurality of conceptual models and deterministic paradigms can contribute to the fact that trauma research produces multifactorial coping protocols more appropriate to the human experience of post-traumatic suffering.
Keywords:
Psychological Trauma; Post Traumatic Stress Disorder; Neurosciences; Memory
Desde la publicación de la tercera versión del Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos Mentales (DSM-III), la psiquiatría biológica ha aplicado sistemáticamente su razonamiento clasificatorio a fenómenos sociales de múltiple naturaleza. Desde esta perspectiva cobra relevancia el discurso del trauma, a través del cual eventos muy devastadores pasaron a tener interpretaciones neuroconductuales y finalmente fueron reconocidos menos por sus impactos culturales y subjetivos que por los cambios fisiológicos que provocan. A partir de una revisión narrativa, este artículo busca explorar la transición del razonamiento traumático entre el siglo XIX, cuando el trauma se concibe en asociación con el concepto cognitivo de memoria, y el siglo XX, cuando este fenómeno se vincula a la investigación neurocientífica sobre estrés. La diversidad de modelos conceptuales y paradigmas deterministas puede contribuir a que la investigación del trauma produzca protocolos de afrontamiento multifactoriales más adecuados a la experiencia humana del sufrimiento postraumático.
Palabras-clave:
Trauma Psicológico; Trastorno de Estrés Postraumático; Neurociencias; Memoria
Introdução
Nos sistemas diagnósticos em psiquiatria, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é definido como uma resposta a um evento traumático específico e responsável por um conjunto particular de sintomas 11. Hinton DE, Good BJ, editores. Culture and PTSD: trauma in global and historical perspective. Filadélfia: University of Pennsylvania Press; 2016.. Essa formulação etiológica não parece extraordinária se considerarmos que, desde sempre, as sociedades humanas supostamente atrelaram a exposição a um terror avassalador ao surgimento de reminiscências perturbadoras, excitação e comportamentos evitativos 22. van der Kolk BA. Trauma and memory. In: van der Kolk BA , McFarlane A, Weiseah L, editores. Traumatic stress: the effects of overwhelming experience on mind, body, and society. Nova York: Guilford Press; 1996. p. 279-303.. Porém, o que permite a um acontecimento devastador consolidar um quadro mórbido e, por consequência, a sua respectiva sintomatologia? O campo dos estudos sobre o estresse traumático procurou solucionar esse problema inferindo um elemento mediador entre o estímulo traumático e sua possível resposta adaptativa - a esse elemento, deu o nome de memória traumática 33. Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. Nova Jersey: Princeton University Press; 1995..
A invenção da memória traumática possibilitou que o trauma pudesse ser referido a duas origens genealógicas simultâneas, acolhendo em seu domínio léxico toda a variedade da traumatização: daquela que incide sobre a transcendência da superfície subjetiva àquela que concerne à imanência da substância corporal 44. Reis R, Ortega F. Perspectivas neurocientíficas para uma teoria do trauma: revisão crítica dos modelos integrativos entre a biologia e a cultura. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00352820.. Quer nas descobertas da pesquisa médico-cirúrgica do século XVII, em que representava o resultado de lesões tissulares pela ação de agentes vulnerantes, quer na interpretação psicodinâmica do século XIX, em que nasceu relacionada à ação parasitária de uma reminiscência patogênica inconsciente, a memória traumática manteve seu estatuto ontológico 33. Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. Nova Jersey: Princeton University Press; 1995.. Ela viabilizou a emergência de uma metáfora do trauma que organizou as consequências somáticas e psicológicas de um acontecimento inesperado em torno de uma mesma semiologia, pois a influência recíproca do corpo na mente, e da mente no corpo, autorizava uma continuidade indiscernível e fundamentada em mecanismos etiológicos análogos. Por esse motivo, a concepção de memória traumática contribuiu para uma compreensão relativamente integrada do sofrimento humano.
Nela, as recordações seriam representadas como coisas análogas a objetos, passíveis de armazenamento em uma localização mental semelhante a uma biblioteca, esperando para serem recuperadas. Por outro lado, memórias traumáticas conservam, ainda, de acordo com os pesquisadores do TEPT, uma significação particular: são usualmente consideradas como registros mentais especiais, descritivamente diferenciados daqueles originados de experiências ordinárias; seriam memórias intrusivas, insistentes e de qualidade excepcionalmente indelével 22. van der Kolk BA. Trauma and memory. In: van der Kolk BA , McFarlane A, Weiseah L, editores. Traumatic stress: the effects of overwhelming experience on mind, body, and society. Nova York: Guilford Press; 1996. p. 279-303.. A justificativa para essa diferença residiria em mecanismos específicos de codificação que produziriam não registros simbólicos, mas verdadeiros sucedâneos literais de suas vivências aterradoras originárias. A essa hipótese, que surge no campo dos estudos sobre o estresse traumático no fim do século XX, Porter & Birt 55. Porter S, Birt A. Is traumatic memory special? A comparison of traumatic memory characteristics with memory for other emotional life experiences. Appl Cogn Psychol 2001; 15:101-17. nomearam de trauma argument.
Nos Estados Unidos, onde estudos epidemiológicos começaram a esquadrinhar a acurácia dos critérios diagnósticos para o TEPT nas diferentes versões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), já se reconhecem taxas significativamente altas para a exposição a eventos traumáticos (89,7%) 66. Kilpatrick DG, Resnick HS, Milanak ME, Miller MW, Keyes KM, Friedman MJ. National estimates of exposure to traumatic events and PTSD prevalence using DSM-IV and DSM-5 criteria. J Trauma Stress 2013; 26:537-47. e para a prevalência de condições pós-traumáticas (6,8%) 77. Kessler RC, Sonnega A, Bromet E, Hughes M, Nelson CB. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry 1995; 52:1048-60. na população. Esses primeiros dados consolidados situam o fenômeno do trauma como um verdadeiro campo semântico pelo qual a racionalidade ocidental contemporânea logrou significar experiências sociais, individuais ou culturais perturbadoras 88. Fassin D, Rechtma R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009..
Este artigo abordará um problema fundamental para a pesquisa contemporânea do psicotraumatismo. Ele descreverá como a mesma memória traumática que, no século XIX, mediou, estabilizou e concluiu a transição da traumatização do corpo para mente foi rebaixada no último quarto do século XX e finalmente diluída entre a dimensão evolutiva das respostas condicionadas e a concepção neurobiológica puramente quantificável do estresse. Essa nova configuração epistemológica da pesquisa do trauma hierarquizou o duplo determinismo somático e psicológico da traumatologia moderna, revestiu seu fenômeno essencial com o instrumental neurocientífico e, por fim, viabilizou a emergência do campo dos estudos sobre o estresse traumático 99. Everly GS, Lating JM. Psychotraumatology: key papers and core concepts in post-traumatic stress. Nova York: Springer Science+Business Media; 1995.. A partir de então, o trauma passou a ser um problema de quantidades e as investigações tentaram precisar os mecanismos neurofisiológicos, os substratos neuroquímicos e as estruturas neuroanatômicas afetadas pelo estresse, na tentativa não apenas de efetuar uma discriminação formal do estresse de tipo traumático, mas de determinar matematicamente suas concentrações mínimas e seus limiares metabólicos. Nesse momento, predomina um paradigma fisicalista que cinde a vivência traumática, recrutando, para ela, interpretações materiais que secundarizam sua dimensão subjetiva e, no limite, a própria possibilidade de narrativização dessa experiência. Assim, incorporado pela densa tecnocracia desse método científico, o sofrimento traumático seria redutível a um estado cerebral.
Baseada no modelo do flashback, a pesquisa do traumatismo se apoiou na hipótese de que o evento traumático produziria uma memória formalmente diferenciada daquela que os acontecimentos ordinários seriam capazes de gerar. Assim, decidimos investigar a adaptação de modelos cognitivos de memória na especulação desse campo de pesquisa, em especial as contribuições de Brewin 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63., que procurou desenvolver um paradigma cognitivo-neurobiológico para a compreensão da codificação de experiências avassaladoras. Uma vez que o conhecimento acerca do estresse humano se apoia na pesquisa do estresse em animais, procurou-se examinar a influência da investigação experimental do condicionamento do medo sobre a interpretação neurocomportamental do estresse traumático capitaneada por autores como van der Kolk 1111. van der Kolk BA. The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Nova York: Penguin Books; 2016. e Shalev 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24.. Dessa forma, este artigo analisará a literatura do psicotraumatismo, objetivando abordar alguns dos antecedentes epistemológicos que condicionaram a incorporação do fenômeno do trauma à pesquisa neurobiológica do estresse.
Os sistemas de memória do trauma
A memória traumática é verdadeiramente especial? Das afirmações de Brown & Kulik 1313. Brown R, Kulik J. Flashbulb memories. Cognition 1977; 5:73-99. até o projeto de resgate da obra de Janet efetuado por van der Kolk & van der Hart 1414. van der Kolk BA, van der Hart O. The intrusive past: the flexibility of memory and the engraving of trauma. Am Imago 1991; 48:425-54., um vasto acervo de literatura científica emaranhou a teoria da memória à teoria do trauma, posicionando a significação da emocionalidade no centro do debate acerca da conversão de experiências em memórias e das memórias em sofrimento 1515. Christianson S, Loftus E. Memory for traumatic events. Appl Cogn Psychol 1987; 1:225-39.,1616. Kihlstrom JF. The trauma-memory argument. Conscious Cogn 1995; 4:63-7.. A incapacidade de processar o traumático da experiência e a “impressão de realidade” gravada no cérebro por um evento marcam a tentativa de equacionar esse fenômeno pela noção de memória traumática implícita - aquela que, em sua literalidade insistente, testemunha a existência de uma verdade histórica invulnerável a quaisquer contaminações por significados idiossincráticos, elaboração semântica e esquemas cognitivos - um tipo de memória insensível a toda forma de distorção 1717. Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: University of Chicago Press; 2000.. A partir de agora, a plausibilidade da teoria do trauma como literal e atemporalmente encapsulado em um sistema de memória especial seria enormemente potencializada pelo reforço de evidências neurobiológicas e pelo fundamento conferido por suposições acerca da neurofisiologia do cérebro 1717. Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: University of Chicago Press; 2000.,1818. McFarlane AC. Traumatic stress in the 21st Century. Aust N Z J Psychiatry 2000; 34:896-902.,1919. Bremner J, Southwick SM, Darnell A, Charney DS. Chronic PTSD in Vietnam combat veterans: course of illness and substance abuse. Am J Psychiatry 1996; 153:369-75..
O efeito que o despertar da emoção, particularmente a emoção extrema, tem na memória é um tópico que produz “evidências dramaticamente contraditórias e inspira controvérsias duradouras” 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63. (p. 159). Memórias de eventos traumáticos vividos pessoalmente são geralmente vivas e cheias de detalhes perceptivos em pacientes com TEPT, mas ao mesmo tempo tendem a ser desorganizadas e conter lacunas 2020. Foa EB, Molnar C, Cashman L. Change in rape narratives during exposure therapy for posttraumatic stress disorder. J Trauma Stress 1995; 8:675-90.. Esses fenômenos são bem ilustrados nessa condição mórbida, em que flashbacks intensos podem coexistir com memória narrativa desorganizada e incompleta. Considerando não ser incomum uma mesma memória ser retomada como representação consciente anódina ou vivência de emoção lancinante, também não seria insensato supor, por extensão, que pacientes com TEPT evoquem dois tipos de memória para o mesmo evento traumático. Aí está uma complexificação importante do trauma argument: enquanto van der Kolk 22. van der Kolk BA. Trauma and memory. In: van der Kolk BA , McFarlane A, Weiseah L, editores. Traumatic stress: the effects of overwhelming experience on mind, body, and society. Nova York: Guilford Press; 1996. p. 279-303. tendia a distinguir as memórias traumáticas por seus mecanismos de inscrição, no modelo de Brewin et al. 2121. Brewin C, Dalgleish T, Joseph S. A dual representation theory of post-traumatic stress disorder. Psychol Rev 1996; 103:670-86. a natureza da memória é menos relevante que sua função nos sistemas de operação do conteúdo mnêmico: em um caso, acentua-se a qualidade da memória como corpo informacional anômalo; no outro, destaca-se sua dupla forma de representação conferida pela emocionalidade 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63.. Neste modelo teórico, a memória narrativa reflete a operação de um sistema de memória verbalmente acessível (VAM), assim denominado com o objetivo de expressar sua integração com outras memórias autobiográficas e demonstrar sua capacidade de recuperação deliberada, como e quando necessário 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63.. Em contraste, as experiências de revivência refletem a operação de um sistema de memória acessível situacionalmente (SAM), cujo máximo exemplar é o fenômeno involuntário do flashback acionado por lembretes contextuais do trauma. Como ambos os sistemas conservam informações sobre o evento traumático, estaríamos falando de duas formas de representação da memória emocional, em vez de uma 2121. Brewin C, Dalgleish T, Joseph S. A dual representation theory of post-traumatic stress disorder. Psychol Rev 1996; 103:670-86. [A teoria da dupla representação do TEPT aplica uma ideia de sistemas de memória múltipla ao transtorno. Uma vez que as memórias de trauma são processadas em sistemas distintos, as duas representações geradas terão caráter relativamente independente 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63.].
Portanto, a memória traumática poderia de fato ter todas essas características contraditórias, a depender de qual sistema de memória está sendo acessado. A tese da duplicidade interativa dos sistemas suspende a necessidade de conferir racionalidade aos fenômenos traumáticos pela distinção qualitativa entre as categorias normais e especiais de memória. A centralidade desse modelo reside no grau de acomodação que terá com as pesquisas sobre o papel da neuroanatomia das vias subsistentes ao medo. Por isso, Brewin 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63. defende que sua teoria cognitiva está efetivamente justificada pelos diferentes sistemas de memória que atuariam separadamente no cérebro. Pela mesma razão, a hipótese da função mediadora do flashback marca a transição de um modelo cognitivo para um modelo neurobiológico do trauma 2222. Frankel FH. The concept of flashbacks in historical perspective. Int J Clin Exp Hypn 1994; 42:321-36.,2323. Brewin CR. Re-experiencing traumatic events in PTSD: new avenues in research on intrusive memories and flashbacks. Eur J Psychotraumatol 2015; 6:27180..
A partir de agora, o trauma habitará uma zona de confluência entre teses psicodinâmicas, comportamentais, cognitivas e neurobiológicas que descreverão seus efeitos por vias semiológicas distintas e vocabulários progressivamente cerebralizados. A amígdala passará a ser uma estrutura-chave responsável pelo início de respostas defensivas quando a pessoa é confrontada por sinais que sinalizam ameaça e o hipocampo responderá pela formação de memórias conscientes temporoespacialmente contextualizadas 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63.,2424. van der Kolk B, Greenberg M, Boyd H, Krystal J. Inescapable shock, neurotransmitters, and addiction to trauma: toward a psychobiology of post traumatic stress. Biol Psychiatry 1985; 20:314-25.. A discriminação dessas pistas seria possivelmente efetuada por vias subcorticais em continuidade com os órgãos dos sentidos, bem como por vias corticais de nível superior que fornecem processamento mais complexo, e para o fornecimento de informações contextuais. Enquanto níveis moderados de excitação aprimorariam o funcionamento do hipocampo, níveis muito elevados de emoção teriam o efeito oposto. Se espera que a amígdala seja uma estrutura menos propensa aos efeitos prejudiciais da alta excitação e por isso as várias manifestações do SAM, como priming, condicionamento e flashbacks, estarão fortemente associadas a ela. A recuperação de memórias desse sistema, portanto, determina que elas sejam revividas no presente, além de causar uma ativação correspondente da amígdala. Assim, durante o trauma seria possível que um sistema de memória fosse potencialmente minorado para que o outro ampliasse seu funcionamento.
A resposta de Brewin 1010. Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatry 2001; 13:159-63.,2323. Brewin CR. Re-experiencing traumatic events in PTSD: new avenues in research on intrusive memories and flashbacks. Eur J Psychotraumatol 2015; 6:27180. para o impasse em que submergiu a teoria do trauma desde o esgarçamento do paradigma psicodinâmico na psicopatologia psiquiátrica encaminhou o problema das representações estáticas da memória decorrente de experiências perturbadoras, antecipando um dobramento epistemológico ainda mais radical; por meio do intercâmbio dialógico entre sistemas mnêmicos, os fenômenos antes supostamente antagônicos da relembrança e da revivescência passam a responder a uma ordenação coerente que operou a rarefação do próprio conceito de memória, secundarizando sua importância na compreensão dos distúrbios relacionados ao traumatismo 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47.. A noção de memória permanecerá operativa, porém dissimulada sob as respostas emocionais condicionadas - na medida em que o condicionamento representa uma forma de memória 2626. Pitman R. Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biol Psychiatry 1989; 26:221-3. - e sob a unidade amorfa, mais originária e infinitamente replicável da concepção do estresse 2727. Bremner D. Does the stress damage the brain? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 118-42.. Esses dois mecanismos interdependentes direcionaram os esforços das pesquisas científicas da área para, a partir do DSM-III, delimitar as características etiológicas e fenomenológicas essenciais à experiência traumática.
O estresse, seu estímulo e sua resposta
Embora o termo estresse seja relativamente novo no léxico inglês, poucas palavras tiveram implicações de tão longo alcance 2828. Everly GS, Lating JM. The concept of stress. In: Everly GS, Lating JM, editores. A clinical guide to the treatment of the human stress response. Nova York: Springer; 2012. p. 3-15.. O conceito surgiu pela primeira vez em 1915 na Medicina para enfatizar os impactos do ambiente dos soldados sobre a abertura de diagnósticos de shellshock e de neurose de guerra, mas se tornou mais proeminente durante a Segunda Guerra Mundial, a ponto de ser identificado como o principal fator de colapso desses indivíduos 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47.. Apesar de as evidências dos efeitos adversos do estresse serem bem documentadas em inúmeras fontes 2727. Bremner D. Does the stress damage the brain? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 118-42., tentativas de uma definição unívoca permaneceram inconsistentes 2929. Kemeny ME. The psychobiology of stress. Curr Dir Psychol Sci 2003; 12:124-9.,3030. Murison R. The neurobiology of stress. In: Al'Absi M, Flaten MA, editores. The neuroscience of pain, stress, and emotion: psychological and clinical implications. Cambridge: Academic Press; 2016. p. 29-49..
Na tradição de Selye 3131. Selye H. The stress concept. Can Med Assoc J 1976; 115:718., a resposta de estresse representa um mecanismo fisiológico de mediação, ou seja, um meio fisiológico para provocar determinado resultado ou efeito. Mais especificamente, a resposta de estresse pode ser vista como o elo fisiológico entre qualquer estressor e seu efeito sobre o órgão-alvo. Ela contribui alocando recursos de energia e iniciando processos biológicos e comportamentais que serviriam para reduzir os desvios do estado homeostático ideal. Uma vez que a ativação sustentada ou inadequada do sistema de estresse é custosa e deletéria em vários níveis, o término apropriado da resposta é essencial para garantir que os efeitos catabólicos, antirreprodutivos e imunossupressores sejam limitados 3232. McEwen BS. Stress, adaptation, and disease: allostasis and allostatic load. In: McCann SM, Lipton JM, Sternberg EM, Chrousos GP, Gold PW, Smith CC, editores. Annals of the New York Academy of Sciences: v. 840. Molecular aspects, integrative systems, and clinical advances. Nova York: New York Academy of Sciences; 1998. p. 33-44.. Portanto, a resposta ideal a um estressor seria a rápida ativação seguida de imediata desativação tão logo a ameaça à homeostase não esteja mais presente.
A relação entre a perturbação da excitação individual e a patologia do adoecimento é o primeiro fato a ser considerado ao discutir as respostas gerais de estresse 3333. Tennant C, Langeluddecke P, Byrne D. The concept of stress. Aust N Z J Psychiatry 1985; 19:113-8.. Especula-se que o processo de discriminação da periculosidade de um estímulo ou estressor dependerá tanto de mecanismos inatos e do aprendizado quanto das interações entre eles 3030. Murison R. The neurobiology of stress. In: Al'Absi M, Flaten MA, editores. The neuroscience of pain, stress, and emotion: psychological and clinical implications. Cambridge: Academic Press; 2016. p. 29-49.. Sendo assim, alguns estímulos seriam automaticamente interpretados pelo cérebro como estressores, enquanto outros como inofensivos, sendo diferencialmente suscetíveis ao condicionamento do medo 3434. Mineka S, Öhman A. Phobias and preparedness: the selective, automatic, and encapsulated nature of fear. Biol Psychiatry 2022; 52:927-37.. A percepção e a avaliação constituem elementos centrais para saber se uma resposta de estresse é ou não montada a qualquer estímulo ou conjunto de estímulos em particular 3030. Murison R. The neurobiology of stress. In: Al'Absi M, Flaten MA, editores. The neuroscience of pain, stress, and emotion: psychological and clinical implications. Cambridge: Academic Press; 2016. p. 29-49..
As teorias da adaptação geral 3535. Selye H. Stress and the general adaptation syndrome. BMJ 1950; 1:1383-92. e da resposta de luta-e-fuga 3636. Cannon WB. The wisdom of the body. Nova York: W. W. Norton; 1932. são axiomáticas na compreensão das teses contemporâneas mais hegemônicas do traumatismo, uma vez que a percepção da ameaça, isto é, a transcrição do estímulo em determinada resposta psicobiológica, demonstrará por quais meios o estresse substituiu a memória como linguagem essencial das experiências humanas mais perturbadoras. Essa mudança de nomes não é uma simples reorganização de vocabulário; acima de tudo, ela representa uma transformação profunda da racionalidade pela qual o trauma será visualizado e esquadrinhado, em um movimento que abandonará seus efeitos internos para acentuar suas causas externas - e que resultará na possibilidade de quantificação radical das experiências humanas 1111. van der Kolk BA. The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Nova York: Penguin Books; 2016.. Por meio do estresse, o trauma se converteu em unidade quantificável e extensamente visível pelas lentes que materializavam as interações antes apenas virtualizadas de concentrações neuroquímicas e de circuitos neurofisiológicos. A memória teve sua unidade semântica pulverizada, distribuída e, finalmente, incorporada aos domínios do comportamento e do estresse - passando a subsistir dissimuladamente, porém sem que deixasse de exercer sua influência epistemológica organizadora 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47.. É por essa razão que a pesquisa do estresse apresenta a variedade de circunstâncias estressantes e suas respectivas influências sobre a gravidade da resposta fisiológica e psicológica. É também por idêntica finalidade que surgirá uma série de taxonomias estressantes, a maioria das quais diferenciando ameaças a necessidades fisiológicas básicas ou integridade física, conexão social, senso de identidade e recursos individuais 2929. Kemeny ME. The psychobiology of stress. Curr Dir Psychol Sci 2003; 12:124-9..
Da memória ao estresse
Do meio do século XX em diante, o estresse se destacou como conceito elementar para a operacionalidade da concepção do trauma psicológico 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47.. Isso ocorre por influência do trabalho de Grinker & Spiegel 3737. Grinker R, Spiegel J. Men under stress. On the war neuroses of Air Force crews and their psychiatric treatment. Filadélfia: Blakiston; 1945., que, em Men Under Stress [Homens sob Estresse], reafirmam a hipótese, já adotada pela Medicina das neuroses de guerra, de que mediante condições de estresse exageradas, o indivíduo pode apresentar um fracasso de adaptação passível de produzir um efeito de ruptura. Portanto, se o ambiente do combatente é o que determina o ponto de ruptura, é porque, obviamente, o poder determinístico do estresse atingiu seu ápice. Ele deterá, a partir de agora, as condições suficientes para realizar a patogênese, pois converteu-se em seu máximo agente causal 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47.. Os principais argumentos de Grinker & Spiegel foram amplamente adotados por Selye 3131. Selye H. The stress concept. Can Med Assoc J 1976; 115:718. em meados da década de 1950, contribuindo para a disseminação da doutrina do estresse até que ela incorporasse a pesquisa do trauma e fosse definitivamente oficializada como um diagnóstico em 1980 com o “transtorno de estresse pós-traumático” 2525. Delaporte S. Making trauma visible. In: Leese P, editor. Shellshock: traumatic neurosis and the British soldiers of the First World War. Nova York: Palgrave Macmillam; 2002, p. 23-47..
É notável que um termo carregado de ambiguidades tenha sido eleito para caracterizar a abordagem moderna do trauma. Utilizado na literatura científica de forma vaga - e admitindo acepções híbridas como o estímulo às respostas e suas pretensas consequências fisiológicas - o estresse transporta sua indeterminação para o centro do universo do traumatismo. Não sem motivos, Everly 3838. Everly G. Psychotraumatology. In: Everly G, Lating JM, editores. Psychotraumatology: key papers and core concepts in post-traumatic stress. Nova York: Springer Science+Business Media; 1995. p. 3-8. dedicou o primeiro capítulo de seu canônico livro Psychotraumatology [Psicotraumatologia] à tentativa de unificação das bases fundacionais do campo dos estudos sobre o estresse de natureza traumática. A mesma inconsistência conceitual preside a crítica de Arieh Shalev 3939. Shalev A. Stress versus traumatic stress: from acute homeostatic reactions from chronic psychopathology. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah, L, editores. Traumatic stress: the effects of overwhelming experience on mind, body, and society. Nova York: Guilford Press; 1996. p. 77-102. sobre a criação da categoria diagnóstica de TEPT pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) em 1980. Para ele, a categoria é problemática por três razões principais: primeiro, porque “estresse traumático” confunde dois construtos distintos - “estresse” e “traumatização mental”. Em segundo lugar, a ideia de “pós-traumático” promove uma definição retrospectiva de eventos como traumáticos, com base em seus efeitos patogênicos de longo prazo. Terceiro, a inclusão em uma única estrutura de incidentes comuns (como acidentes de trânsito) e atrocidades colossais (como o Holocausto) cria uma base desequilibrada para a teoria etiológica de transtornos relacionados ao estresse.
Ainda assim, a expressão “estresse traumático” preserva sua importância em angariar em torno de si a maioria das descrições não neurológicas de processos de traumatização. A admissão de que o estresse se aproxima do trauma por constituir reação fisiológica típica e pretensamente universal à ameaça 4040. McFarlane AC. Traumatic stress in the 21st century. Aust N Z J Psychiatry 2000; 34:896-902. pode ser constatada a partir da adoção, em 1952, de uma nosologia oficial com critérios diagnósticos formalizados para as categorias da reação ao estresse bruto 4141. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Washington DC: American Psychiatric Association; 1952. e da reação de ajuste à vida adulta 4242. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 2ª Ed. Washington DC: American Psychiatric Association; 1966.. Com o TEPT, conclui-se posteriormente a aposta em uma elucidação absoluta da etiologia do trauma pela externalização de seus fatores causais 2626. Pitman R. Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biol Psychiatry 1989; 26:221-3.. A partir de então, trauma e estresse se associarão por vias circulares e de tal modo tautológicas. Ao ambiente será facultada a responsabilidade pela emergência psicopatológica, enquanto se procurará sua explicação na dimensão mínima, porém em nada abstrata, do tecido celular. O TEPT como resposta normal a um acontecimento extraordinário 4343. Lifton R. Understanding the traumatized self: imagery, symbolization and transformation. In: Wilson JP, Harel Z, Kahana B, editores. Human adaptation to extreme stress: from Holocaust to Vietnam. Nova York: Harper & Row; 1988. p. 7-31. indica que a supressão da origem psicológica, atribuída por Young 3 à memória traumática, executa o deslocamento de sua causalidade para garantir a quantificação do sofrimento que a determina. Com isso, a teoria do trauma conseguiria purgar de seu objeto qualquer reverência à noção filosófica de representação, mesmo que um exame acurado de suas matrizes neurocientíficas contemporâneas sugira uma solidariedade - ora implícita, ora mesmo imediata - à teoria dissociativa originada no pensamento de Janet 4444. Putnam FW. Pierre Janet and modern views of dissociation. J Trauma Stress 1989; 2:413-29.,4545. van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-25.,4646. McNally RJ. Implicit and explicit memory for trauma-related information in PTSD. Ann N Y Acad Sci 1997; 821:219-24.. Se antes a inclusão ou exclusão no domínio do traumático obedecia a um proceder cujos critérios eram determinados apenas secundariamente pelo acontecimento vitimizador, a partir de agora, a traumatização será inteiramente capturada pelo par constituído por estímulo traumático e reação adaptativa, sem a qual o mesmo não seria sequer inteligível 4747. Caruth C. Unclaimed experience: trauma, narrative, and history. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1996.. A memória traumática era o resultado necessariamente inexato da codificação de um evento por determinado indivíduo. Ela era, portanto, o efeito de uma experiência. Transformada em estresse, a memória é diluída na lacuna prescrita entre sua gênese e seu resultado, entre estressor e resposta.
Já o TEPT é uma desvirtuação do mecanismo normal de resposta ao estresse fundamentada em duas suposições básicas: (a) que o incidente que o ocasiona é “anormal” 4848. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 3ª Ed. Washington DC: American Psychiatric Association; 1980.; e (b) que todas suas reações presumidas seriam observadas dentro dos limites de uma resposta normal para um estressor 3939. Shalev A. Stress versus traumatic stress: from acute homeostatic reactions from chronic psychopathology. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah, L, editores. Traumatic stress: the effects of overwhelming experience on mind, body, and society. Nova York: Guilford Press; 1996. p. 77-102.. Portanto, o TEPT exibiria um padrão de reação generalizado para eventos traumáticos possivelmente predeterminados em função do intervalo limitado de respostas afetivas, cognitivas e comportamentais que o corpo humano pode erigir diante de um estresse opressor.
A função do estressor nos distúrbios relacionados ao trauma é uma questão de primeira ordem para um campo que pulverizou sua psicopatologia em subtipos traumáticos derivados da particularidade de seus eventos desencadeantes 4949. Hinton DE, Good BJ, editores. Culture and PTSD: trauma in global and historical perspective. Filadélfia: University of Pennsylvania Press; 2016.. A causa, o tratamento e a prevenção, desde a abertura etiológica preconizada pela APA 4848. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 3ª Ed. Washington DC: American Psychiatric Association; 1980., estão sujeitos à elaboração de entidades sindrômicas específicas originadas de acontecimentos igualmente excepcionais. A “síndrome do campo de concentração” 5050. Eitinger L. Pathology of the concentration camp syndrome: preliminary report. Arch Gen Psychiatry 1961; 5:371-9., a “síndrome do trauma de estupro” 5151. Burgess AW, Holmstrom LL. Rape trauma syndrome. Am J Psychiatry 1974; 131:981-6. e a “síndrome da esposa maltratada” 5252. Herman J. Trauma and recovery. Nova York: Basic Books; 1992. retratam o redirecionamento do olhar classificatório da psiquiatria para a própria materialidade compartilhada dos fenômenos sociais, e não mais para o território estranho e algo imaginativo da subjetividade e das ideias que traumatizam os indivíduos.
O trauma e seus postulados I
Parece atualmente incontornável que reações adversas ao trauma estejam em alguma medida relacionadas ao tipo, à gravidade e à cronicidade dos eventos traumáticos iniciais. Hobfoll et al. 5353. Hobfoll SE, Palmieri PA, Johnson RJ, Canetti-Nisim D, Hall BJ, Galea S. Trajectories of resilience, resistance, and distress during ongoing terrorism: the case of Jews and Arabs in Israel. J Consult Clin Psychol 2009; 77:138-48. sugeriram que, após o trauma, indivíduos que relatam níveis peritraumáticos mais elevados de sintomas de TEPT tendem a ter uma exposição ao trauma mais grave e crônica. O TEPT é a consequência mais pesquisada desses eventos e sua existência nosológica está tão intimamente relacionada a eles que o diagnóstico inexiste em sua ausência, assim como seus sintomas centrais de reexperiência e evitação devem necessariamente referi-los 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24.. Essa perspectiva implica um vínculo entre o evento e o TEPT subsequente. “Esse vínculo também é intuitivamente atraente e frequentemente aparece nas narrativas dos sobreviventes. Para um observador externo também, a associação entre um evento traumático e TEPT parece ter alguma verdade porque muitas vidas dos sobreviventes são dramaticamente alteradas por um encontro com alguma extrema adversidade. Assim, tanto da perspectiva do sobrevivente quanto dos observadores envolvidos, o evento traumático é a causa do TEPT” 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24. (p. 207).
Do ponto de vista epidemiológico, entretanto, isso é apenas parcialmente verdadeiro, pois muitos sobreviventes de trauma não desenvolvem TEPT 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24.. Apesar de os estressores traumáticos corresponderem a eventos incomuns, é provável que ao longo da vida um indivíduo seja virtualmente exposto a alguma circunstância extrema 5454. Hobfoll SE. Traumatic stress: a theory based on rapid loss of resources. Anxiety Research 1991; 4:187-97.. Isso implicaria uma prevalência alarmante de distúrbios traumáticos na população geral. Porém, a hipótese que instituiu o TEPT como resposta normal a uma situação anormal 4343. Lifton R. Understanding the traumatized self: imagery, symbolization and transformation. In: Wilson JP, Harel Z, Kahana B, editores. Human adaptation to extreme stress: from Holocaust to Vietnam. Nova York: Harper & Row; 1988. p. 7-31. não foi capaz de explicar por que cerca de 70,4% de pessoas em mais de 24 países relataram atravessar experiências traumáticas, mas apenas 1% da população geral 5555. Helzer JE, Robins LN, McEvoy L. Post-traumatic stress disorder in the general population. N Engl J Med 1987; 317:1630-4. efetivamente desenvolveu a síndrome psiquiátrica 77. Kessler RC, Sonnega A, Bromet E, Hughes M, Nelson CB. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry 1995; 52:1048-60.,5656. Kessler RC, Berglund P, Demler O, Jin R, Merikangas KR, Walters EE. Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of DSM-IV disorders in the National Comorbidity Survey Replication. Arch Gen Psychiatry 2005; 62:593-602.,5757. Yehuda R, LeDoux J. Response variation following trauma: a translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron 2007; 56:19-32.. Seria mais crível, portanto, que os quadros traumáticos respondam por uma falha dos mecanismos envolvidos na recuperação e restituição da homeostase fisiológica, possivelmente em consequência de disposições individuais prévias. Se o TEPT é melhor descrito como uma condição em que “o processo de recuperação do trauma é interrompido” 5757. Yehuda R, LeDoux J. Response variation following trauma: a translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron 2007; 56:19-32. (p. 19), o que pode ter tido valor de sobrevivência, por exemplo, na selva do Vietnã, a patologia pode se manifestar quando o veterano estiver sentado em uma mesa de jantar com seus membros familiares 20 anos mais tarde 1919. Bremner J, Southwick SM, Darnell A, Charney DS. Chronic PTSD in Vietnam combat veterans: course of illness and substance abuse. Am J Psychiatry 1996; 153:369-75.. Logo, a resposta ao trauma teria sido, sim, apropriada, ainda que apenas em certa virtualidade pretérita.
Os fenômenos aparentemente disfuncionais que agora observamos em veteranos de guerra e vítimas de desastres naturais ou provocados teriam sido cruciais para sua sobrevivência ao evento que os vitimou. Só então a recalibração do sistema de alarme do cérebro, o aumento da atividade do hormônio do estresse ou outras alterações fisiológicas que demarcam a transformação engendrada pelo trauma adquiriram a significação desadaptativa observada posteriormente no TEPT 1111. van der Kolk BA. The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Nova York: Penguin Books; 2016.. Para isso, seria preciso explicar como uma reação supostamente funcional logrou, ela mesma, se não produzir, ao menos consolidar a patologia pós-traumática. Essa operação de reversão do próprio fundamento da resposta normal ao trauma - e a extrapolação do certo limiar que a corresponde - teve o poder de revolucionar intrinsecamente a própria função adaptativa. As pessoas traumatizadas se tornam paralisadas, interrompidas em seu crescimento, porque não podem integrar novas experiências em suas vidas. Uma vez que um evento traumático é uma causa necessária, mas certamente não suficiente, para desenvolver TEPT 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24., as investigações de supostos fatores de risco, como a degradação do sistema nervoso por situações adversas 3232. McEwen BS. Stress, adaptation, and disease: allostasis and allostatic load. In: McCann SM, Lipton JM, Sternberg EM, Chrousos GP, Gold PW, Smith CC, editores. Annals of the New York Academy of Sciences: v. 840. Molecular aspects, integrative systems, and clinical advances. Nova York: New York Academy of Sciences; 1998. p. 33-44. ou circunstâncias específicas relativas ao nascimento, embora capazes de quantificar a associação entre fatores causais putativos, não conseguem precisar com eficácia seus modos de operação. Uma disposição hereditária poderia elevar tanto a probabilidade de exposição a um evento traumático quanto a intensidade de sintomas que lhe sucedem. É por isso que, para Shalev 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24., a tradução de fatores de risco em trajetórias patogênicas ainda está incompleta.
No trauma, a resposta só adquiriu caráter patológico por terem sido alteradas as condições para sua ocorrência. O que nela é patológico não é necessariamente sua forma ou intensidade, mas precisamente sua fixidez [Yael Danieli 5858. Danieli Y, editor. International handbook of multigenerational legacies of trauma. Nova York: Plenum Press; 1998. (The Plenum Series on Stress and Coping). utiliza o termo “fixidez” para descrever o mecanismo pelo qual a exposição ao trauma impõe rupturas, regressões e paralisações no fluxo livre do self. A fixidez pode tornar o indivíduo particularmente vulnerável a novos traumas e rupturas ao longo da vida], isto é, seu desprendimento das circunstâncias ambientais que a propiciaram. O grau de automatismo da resposta ao trauma é prescritivo da gravidade do distúrbio subsequente. Como patologia da resposta normal ou, no vocabulário de Arieh Shalev 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24., como distúrbio da recuperação da resposta inicial e normal a eventos traumáticos, o TEPT consolida a ação recíproca de dois mecanismos contrastantes: a aprendizagem orientada pelo medo e o processamento de novidades incongruentes. “O primeiro tem a ver com medo, ameaça e perigo e levaria à evitação e distanciamento do evento traumático e lembranças relacionadas. A segunda origina-se da necessidade de atender inicialmente a experiências impensáveis e grotescas, presumivelmente por meio de imagens intrusivas repetidas. O TEPT pode ser a consequência de uma infeliz convergência entre a necessidade de lembrar e o imperativo de evitar” 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24. (p. 219).
A pesquisa neurocomportamental define o medo como um conjunto vagamente coordenado de respostas fisiológicas, comportamentais e cognitivas designadas à preparação do organismo para um futuro evento aversivo 5959. Bouton ME, Wadell J. Some biobehaviors insights into persistant effects of emotional trauma. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 41-60.. O aprendizado do medo é um tópico de fundamental importância para o campo dos estudos sobre o estresse traumático, pois por meio do modelo prototípico da ameaça se revela a solidariedade implícita que unifica a teoria do trauma às teorias evolutiva e da seleção natural das espécies. Para elas, se as reações de medo e defesa servem a funções adaptativas óbvias em todos os animais, servirão a funções similares nos humanos, dadas as suas heranças familiares 6060. Kirmayer L, Lemelson R, Barad M. Introduction: inscribing trauma in culture, brain and body. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 1-21.. A ameaça é a figura-tipo do traumatismo, o elemento desencadeador do aprendizado do medo e da cascata de reações que cabem a ele sob as formas restritas da luta, da fuga ou, ainda mais radicalmente, da paralisia. Diferentemente das teorias psicodinâmicas, que se estabeleceram por efeito da concepção de violência, a virada neurocientífica requisitará o modelo da ameaça. Nele, o circuito da traumatização obedece a um movimento ainda mais sutil, no qual o intervalo reflexo entre o estímulo e a resposta comportará a ameaça e seu conjunto de reações orgânicas e comportamentais apropriadas. Desse sistema de interações emerge, decisivamente, o aprendizado do medo como recurso de sobrevivência. Qual é a relação entre medo, estresse e trauma? O que faz com que algumas pessoas continuem a apresentar uma resposta de medo muito depois de a ameaça ter desaparecido 6060. Kirmayer L, Lemelson R, Barad M. Introduction: inscribing trauma in culture, brain and body. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 1-21.?
O trauma e seus postulados II
Acredita-se que a predação seja a mais urgente ameaça ao sucesso do futuro reprodutivo. Como resultado, sistemas comportamentais teriam evoluído para permitir que os animais enfrentassem seus predadores efetivamente. Assim, o medo teria evoluído como um conjunto de estratégias antipredação desenvolvidas para avaliar e responder ao perigo e, portanto, o domínio de sua complexidade alcançado quando aparelha os organismos para as ameaças contra as quais são confrontados 6161. Fanselow M, Lester L. A functional behavioristic approach to aversively motivated behavior: predatory imminence as a determinant of the topography of defensive behavior. In: Bolles RC, Beecher MD, editores. Evolution and learning. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates; 1988. p. 185-12.. Com isso, chegamos ao segundo postulado fundamental do estresse traumático: a ideia de que o comportamento normal, que, como vimos, é um comportamento “natural”, reflete um repertório de reações predestinado filogeneticamente pela experiência do organismo com sua história de ameaças atuais e, sobretudo, transgeracionais.
Como a habilidade do medo para dominar o comportamento que é normalmente protetivo pode, também, levar a consequências devastadoras se o sistema não estiver funcionando adaptativamente, a ativação excessiva ou inapropriada de respostas de medo pode levar ao desenvolvimento de psicopatologias 6262. Rau V, Fanselow M. Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 27-41.. O TEPT, nesse sentido, representa a solidificação de uma malha comportamental cujo caráter patológico é perceptível pela independência das respostas em relação aos seus respectivos dados contextuais desencadeadores 6363. Schauer M, Elbert T. Dissociation following traumatic stress. Z Psychol 2010; 218:109-27.. A resposta ao trauma coincide com a reação à ameaça, a qual traduz os sistemas afetivo-motivacionais ativados no intuito de buscar o equilíbrio por meio de condutas comportamentais com a função de afastar o organismo da possibilidade de aniquilação.
O comportamento defensivo reflete o que Rau & Fanselow 6262. Rau V, Fanselow M. Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 27-41. descreveram como o continuum de iminência à ameaça, isto é, a distância geográfico-temporal entre o predador e a presa e o nível de percepção da ameaça, representada pela distância psicológica que os separa. Ou seja, no modelo da iminência, a preocupação, o medo e o pânico são estados qualitativamente diferentes e organizados em espectro e suas posições dependerão da proximidade temporal, física e psíquica do organismo a uma ameaça 6464. Craske MG. Anxiety disorders: psychological approaches to theory and treatment. Boulder: Westview Press; 1999.. O TEPT é uma condição psicopatológica marcada por uma distorção do contínuo de iminência à ameaça. Nela, o comportamento adaptativo normal torna-se restrito e o comportamento defensivo não é mais adequadamente coordenado para a ameaça de iminência. A preocupação, o medo antecipatório e os comportamentos relacionados ao pânico passam, então, a ocorrer na ausência de uma ameaça, pois a exposição a um trauma ou estressor severo “reduz a habilidade para julgar a iminência de ameaça adequadamente e a reação apropriada, daí resultando um estado de ansiedade” 6262. Rau V, Fanselow M. Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 27-41. (p. 33). Uma vez que o universo do estresse traumático progride por meio de um exercício de reiterações de seus princípios fundamentais, a hipótese da iminência será também indexada à sua estrutura conceitual e considerada mediante a desvirtuação dos sistemas adaptativos.
Para a teoria do estresse traumático, interessa que o perigo seja biologicamente relevante, pois assim os estímulos neutros tendem a assumir grande importância adaptativa na antecipação de uma ameaça à sobrevivência. Isso já havia sido demonstrado cerca de um século antes, quando Ivan Pavlov 6565. Pavlov IP. Experimental psychology and psychopathology in animals. In: Gantt WH, editor. Lectures on conditioned reflexes. v. 1. Nova York: International Publishers; 1928. p. 47-60. condicionou cães a antever a chegada de alimento ao sinal de um alarme sonoro. Ao demonstrar que esses animais eram capazes de aprender a utilizar estímulos neutros para prever um evento biologicamente significativo, seja ele agradável como a nutrição ou aversivo como o choque, Pavlov instituía uma matriz interpretativa hegemônica para a compreensão dos distúrbios relacionados ao trauma 6666. VanElzakker MB, Dahlgren MK, Davis FC, Dubois S, Shin LM. From Pavlov to PTSD: the extinction of conditioned fear in rodents, humans, and anxiety disorders. Neurobiol Learn Mem 2014; 113:3-18.. Suas investigações seminais sobre o impacto dos eventos ambientais na fisiologia e no comportamento, ao enfatizar agrupamento de respostas reflexivas inatas à ameaça ambiental, formaram uma proposta de explicação paradoxalmente psicológica do TEPT, sustentada sobre o termo “reação defensiva” e paralela à concepção psicanalítica da repetição 2424. van der Kolk B, Greenberg M, Boyd H, Krystal J. Inescapable shock, neurotransmitters, and addiction to trauma: toward a psychobiology of post traumatic stress. Biol Psychiatry 1985; 20:314-25..
Anos mais tarde, Seligman & Maier 6767. Seligman M, Maier SF. Failure to escape traumatic shock. J Exp Psychol 1967; 74:1-9. descobriram que cães traumatizados secretavam quantidades muito maiores de hormônios do estresse do que o normal. Aprisionados em gaiolas e submetidos a um procedimento minucioso e repetitivo que ficou metodologicamente conhecido como “choque incontrolável”, esses animais passavam a recusar qualquer oportunidade de fuga mesmo quando suspensas as condições que restringiam sua liberdade. Isso apoiou o prelúdio das investigações acerca das propriedades biológicas do estresse traumático e reificou a percepção de que, assim como os cães de Seligman & Maier, “muitas pessoas traumatizadas simplesmente desistem” 1111. van der Kolk BA. The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Nova York: Penguin Books; 2016. (p. 75). Eles ficariam presos no medo que conhecem, pois seu sistema hormonal do estresse, que deveria fornecer uma resposta imediata à ameaça e depois devolvê-los rapidamente ao equilíbrio, falha na operação de retomada homeostática 5757. Yehuda R, LeDoux J. Response variation following trauma: a translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron 2007; 56:19-32.. Em consequência: “os sinais de luta-fuga-imobilidade continuam após o perigo terminar e, como no caso dos cães, não retornam ao normal. Em vez disso, a secreção contínua de hormônios do estresse é expressa como agitação e pânico e, a longo prazo, causa estragos em sua saúde” 1111. van der Kolk BA. The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Nova York: Penguin Books; 2016. (p. 77) [Douglas Bremner 2727. Bremner D. Does the stress damage the brain? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 118-42. defende que pacientes diagnosticados com TEPT apresentam mudanças de longo prazo no cérebro e nos sistemas responsivos ao estresse. Essas mudanças levariam tanto a problemas de memória quanto à manutenção de respostas de medo anormais e outros sintomas de TEPT].
As abordagens contemporâneas do trauma assumiram que os processos de memória e aprendizagem, como o condicionamento do medo, estariam na base dos sintomas de revivência persistente do evento traumático 2626. Pitman R. Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biol Psychiatry 1989; 26:221-3.,6868. Rothbaum BO, Davis M. Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In: King JA, Ferris CF, Lederhendler II, editores. Annals of the New York Academy of Sciences: v. 1008. Roots of mental illness in children. Nova York: New York Academy of Sciences; 2003. p. 112-21.. A teoria do condicionamento do medo aplicada aos processos de traumatização se baseia em uma operação epistemológica elementar que reduz o evento traumático à condição de acontecimento aversivo universal para daí transcrevê-lo em estímulo não condicionado comparável, por exemplo, a uma descarga elétrica ou a um estrondo sonoro. Agora como estímulo incondicionado (US), o evento traumático desencadeia uma resposta igualmente não condicionada (UR), caracterizada por forte excitação e medo intenso 2828. Everly GS, Lating JM. The concept of stress. In: Everly GS, Lating JM, editores. A clinical guide to the treatment of the human stress response. Nova York: Springer; 2012. p. 3-15.. Essa resposta ao trauma se associa a pistas, como cheiros, vozes ou visões, que estavam presentes durante o evento traumático 6969. Blechert J, Michael T, Vriends N, Margraf J, Wilhelm FH. Fear conditioning in posttraumatic stress disorder: evidence for delayed extinction of autonomic, experiential, and behavioural responses. Behav Res Ther 2007; 45:2019-33.. Como resultado desse emparelhamento, esses lembretes podem eliciar respostas semelhantes, mesmo na ausência de seus estímulos formadores. Assim, os sintomas de revivência podem ser entendidos como respostas condicionadas que permanecem insistentes, mesmo por muito tempo após o trauma 6969. Blechert J, Michael T, Vriends N, Margraf J, Wilhelm FH. Fear conditioning in posttraumatic stress disorder: evidence for delayed extinction of autonomic, experiential, and behavioural responses. Behav Res Ther 2007; 45:2019-33.. É por isso que autores como Rothbaum & Davis 6868. Rothbaum BO, Davis M. Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In: King JA, Ferris CF, Lederhendler II, editores. Annals of the New York Academy of Sciences: v. 1008. Roots of mental illness in children. Nova York: New York Academy of Sciences; 2003. p. 112-21. indicam que, à menor pista, as imagens do trauma podem ressurgir.
No caso do TEPT, como o medo não se extingue, os lembretes associados aos eventos traumáticos podem eliciar respostas patológicas de medo condicionado por décadas após o perigo ter passado 26. Por essa razão, muitos autores procuraram explicar a patogenia do TEPT e de outros transtornos por meio da teoria pavloviana do condicionamento 6969. Blechert J, Michael T, Vriends N, Margraf J, Wilhelm FH. Fear conditioning in posttraumatic stress disorder: evidence for delayed extinction of autonomic, experiential, and behavioural responses. Behav Res Ther 2007; 45:2019-33.,7070. Baldwin DV. Primitive mechanisms of trauma response: an evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neurosci Biobehav Rev 2013; 37:1549-66.. O TEPT é uma condição anômala porque nela o mecanismo do medo foi descaracterizado de sua função originária. O medo só é adaptativo quando seu nível é apropriado ao grau da ameaça, isto é, quando está circunscrito a situações em que a ameaça atual está presente 6262. Rau V, Fanselow M. Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 27-41.. Se após a exposição a um trauma a ativação de respostas de medo assume um padrão excessivo ou inapropriado, é devido à capacidade de esse estressor reduzir o próprio limiar de ativação da resposta, justapondo circunstâncias triviais determinadas e reações para elas extraordinárias. Isso expõe dois problemas da abordagem traumática do condicionamento: como o organismo percebe a ameaça e como ele consegue, em circunstâncias normais, atuar na extinção da reação de medo.
Considerações finais
Não é simples compreender como a tradição psicodinâmica chegou a embasar tão visceralmente a proposta neurocognitiva de investigação do trauma para depois ter sido rechaçada por ela. Para tanto, seria necessário distinguir como a literalidade da memória traumática assimilou os fenômenos do trauma em um determinismo de caráter estritamente fisicalista ou, em suma, como seus produtos repetidos partiram de concepções cognitivas e psicológicas para, em um segundo momento, subverter as próprias normas que regem a representação. Uma vez que o trauma não é uma experiência sujeita aos mecanismos “declarativos” usuais de memória de evocação, o que caracteriza sua memória é ela ser significativamente apartada, dissociada de toda representação verbal-linguística-semântica 4545. van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-25.. Por esse motivo, costuma-se dizer que elas são “memórias mudas”, pois, excluídas do campo representacional, não poderiam sequer estabelecer vínculos associativos com os demais conteúdos que participam do tráfego mnemônico - não remetendo a qualquer ideia, sentido ou significado, estariam, com efeito, desapropriadas de sua função comunicativa.
Argumentamos que o modelo de Brewin et al. 2121. Brewin C, Dalgleish T, Joseph S. A dual representation theory of post-traumatic stress disorder. Psychol Rev 1996; 103:670-86. procura reposicionar o problema da etiologia das condições pós-traumáticas, evitando recorrer a distinções categóricas para caracterizar as memórias de eventos traumatizantes e seus respectivos mecanismos de codificação. A tentativa de equacionar o fenômeno traumático por meio de duas formas de representação da memória emocional sublinhará o processo de destituição do próprio conceito de memória como unidade mínima e operativa dos sofrimentos oriundos do trauma. A partir de então, a significação da memória traumática será segmentada e distribuída entre a teoria do condicionamento do medo, por um lado, e a pesquisa neurobiológica do estresse, por outro. Esse desenvolvimento resulta no modelo do “estresse traumático”, principal operador conceitual da pesquisa contemporânea do trauma psicológico 99. Everly GS, Lating JM. Psychotraumatology: key papers and core concepts in post-traumatic stress. Nova York: Springer Science+Business Media; 1995..
Adotamos, portanto, a hipótese de que o estresse substitui a memória como linguagem primordial das experiências potencialmente traumáticas. Para tanto, procuramos demonstrar que a limitação da causalidade íntima e psicológica para essas condições segue um projeto de externalização que apoiará a etiologia sobre fatores exclusivamente contingentes ou situacionais. Dois postulados do campo dos estudos sobre o estresse traumático justificam essa hipótese: o primeiro assume que as condições pós-traumáticas seriam perturbações da recuperação neurofisiológica normal 1212. Shalev A. PTSD: a disorder of recovery? In: Kirmayer L, Lemelson R, Barad M, editores. Understanding trauma: integrating biological, psychological and cultural perspectives. Nova York: Cambridge University Press; 2007. p. 207-24.; o segundo diz que a reação ao trauma exibe um repertório neurocomportamental considerado desadaptativo pelo desacoplamento de suas matrizes desencadeantes. Toda a tradição neurocientífica do trauma mantém alguma concordância com esses dois axiomas.
Concomitantemente, a nova “linguagem” da memória traumática atenderia à necessidade de se conferir estabilidade formal à imagem do trauma, permitindo que o estresse adquira o status de mensageiro do evento traumático ora literalmente reproduzido. Assim, o sofrimento traumático só poderia causar dor, jamais servir a um processo subjetivo ou elaborativo. Essa é a tese que vincula o projeto neurocientífico para o trauma a uma crise da filosofia da representação que, por sua vez, estimulou a elaboração de uma teoria biológica da memória 1717. Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: University of Chicago Press; 2000.. Sugerimos que o processo histórico de supressão da memória traumática coincide com a impossibilidade de considerar as condições pós-traumáticas por meio de descrições qualitativas, excluindo dispositivos relevantes à classificação e ao tratamento dos transtornos secundários ao trauma 7171. Kaminer D. Healing processes in trauma narratives: a review. S Afr J Psychol 2006; 36:481-99.. Com isso, as competências culturais e narrativas indispensáveis à subjetivação de vivências avassaladoras são desconsideradas 7272. Beaudreau SA. Are trauma narratives unique and do they predict psychological adjustment? J Trauma Stress 2007; 20:353-7., porque a experiência pessoal do sujeito traumatizado deixou de ser o ethos de seu próprio padecimento: esse é um dos desfechos radicais do reducionismo biológico.
Assim, a memória literalizada do trauma passou a ser, a partir da segunda metade do século XX, pulverizada, fragmentada em unidades mínimas e suscetível à apreensão apenas sob as condições prescritas pela pesquisa neurobiológica. É certo que as técnicas de imageamento cerebral poderão capturá-la, dissecá-la, descrevê-la, porém a descreverão não mais a partir das concepções cognitivas e abstratas da memória, do nexo ou da lembrança, mas a partir do vocabulário materialista e quantificável da noção de estresse 3535. Selye H. Stress and the general adaptation syndrome. BMJ 1950; 1:1383-92.. Assim, o sofrimento exasperante, a “agonia impensável” ou a “emoção veemente” se tornarão estresse traumático, e um modelo natural, tanto biológico quanto matemático, será recrutado para retratá-lo. A memória traumática desapareceu, mas não deixou de existir. Se tornou estresse e resposta - somática e comportamental -, engendrando em seu perímetro incerto a soma de todas as categorias contemporâneas do traumatismo. Não haveria mais nada entre o agente causal do trauma e o corpo traumatizado, nenhuma consciência, nenhuma subjetividade, nenhum psiquismo. A partir de agora, a ordem traumática atenderá à soberania de tudo o que é visível, de tudo o que pode ser esquadrinhado, demonstrado, e de tudo o que for previsível. Com isso, se conclui uma inflexão definitiva na interpretação dos fenômenos relativos ao traumatismo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Mar 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
16 Jul 2022 - Revisado
04 Jan 2023 - Aceito
24 Jan 2023