Agradecemos a Barreira & Alencar 11. Barreira D, Alencar TMD. Rethinking HIV prevention in young people: "hierarchization" or "deinstitutionalization"? Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00164823. e Paiva & Ayres 22. Paiva VSF, Ayres JRCM. Human rights, vulnerability, and critical reflection on HIV/AIDS prevention in the syndemic context. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00186423. pelos comentários apontando caminhos mais efetivos para a resposta ao HIV no Brasil. Neste 2023, que marca 40 anos das primeiras ações brasileiras contra o HIV, inauguradas em 1983 pelo Grupo Somos, nosso objetivo é marcar a necessidade de retomar uma discussão com a sociedade brasileira que permita “acordar” a política de HIV e reformulá-la de acordo com a nova realidade socioepidemiológica.
No primeiro artigo deste debate 33. Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223., evidenciamos um desafio: se a variedade de métodos de prevenção existente nos permite almejar a eliminação do HIV, a persistência de barreiras de acesso e as intensas mudanças geracionais, que alteraram os modos de se relacionar sexualmente e de se mobilizar coletivamente, tornam mais complexos e entrelaçados os determinantes da epidemia de HIV no país. Nesse cenário, concordamos com Paiva & Ayres 22. Paiva VSF, Ayres JRCM. Human rights, vulnerability, and critical reflection on HIV/AIDS prevention in the syndemic context. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00186423. (p. 1) que a política precisa ser “debatida e construída no espaço público como bem comum, subsidiada por evidências científicas e orientada por exame de caráter ético-político”. Da mesma forma, concordamos com Barreira & Alencar que, neste momento, precisamos, sobretudo, de um salto programático.
É indispensável, assim, um olhar crítico das políticas de prevenção, perguntando-nos: que ações precisam ser intensificadas? Quais precisam ser criadas? E, mais ainda, quais precisam ser abandonadas, por não terem mais sentido? Diante das críticas de Barreira & Alencar à proposta de hierarquização da oferta dos métodos, questionamos: quais têm sido os resultados de insistir na oferta de uma cesta básica de insumos preventivos, tratando-os como iguais? Por que insistir nessa estratégia quando sabemos que a efetividade e aceitabilidade de cada método são diferentes ou que as escolhas individuais são atravessadas por desigualdades? Se queremos uma resposta subsidiada pela ciência, precisamos ir além das evidências de eficácia e aplicar à política o conhecimento consolidado sobre as dimensões psicossociais, econômicas e culturais que interferem na prevenção. Foi, aliás, uma compreensão parcial da ciência - superestimando dados de eficácia - que subsidiou o que Barreira & Alencar chamaram de sobrevalorização do preservativo. Assim, nossa defesa pela hierarquização da oferta não se opõe ao direito de acesso e à obrigatoriedade de disponibilização pública dos métodos, mas propõe um guia à organização da política, à orientação dos profissionais e gestores, e à clareza de informação à sociedade.
Não podemos, também, cair na armadilha, como infere-se das ponderações de Paiva & Ayres, de subestimar a importância da profilaxia pré-exposição (PrEP) pelos interesses econômicos da indústria farmacêutica. É preciso recuperar, nas dimensões ética e econômica, o papel da política brasileira na incorporação justa, universal e equitativa de tecnologias de saúde que beneficiam populações 44. Galvão J. Brazil and access to HIV/AIDS drugs: a question of human rights and public health. Am J Public Health 2005; 95:1110-6.; e lembrar que vacinas e profilaxias, antes de serem formas de qualquer tipo de controle, são instrumentos de agência humana diante de epidemias e doenças. Assim, a priorização da PrEP deve ser compreendida, também, como fortalecimento do complexo industrial da saúde, da produção técnica-científica e, por consequência, da capacidade regulatória do Brasil e do Sul Global.
Isso nos leva a outro ponto: o esclarecimento a Paiva & Ayres que não separamos PrEP e cena sexual, mas reconhecemos o potencial dessa profilaxia para permitir que decisões preventivas sejam tomadas e efetivadas fora dela. Isso não significa separar a PrEP da cena, pois nossa experiência com usuários dessa profilaxia nos ensina justamente que os sentidos construídos para as relações e as cenas também condicionam as decisões preventivas, como usar a PrEP para uma maior agência da vida sexual 55. Mabire X, Puppo C, Morel S, Mora M, Rojas Castro D, Chas J, et al. Pleasure and PrEP: pleasure-seeking plays a role in prevention choices and could lead to PrEP initiation. Am J Mens Health 2019; 13:1557988319827396.. Assim, é fundamental continuar a investir no “letramento para a prevenção”, visando a uma emancipação psicossocial que permita, às pessoas, encontrar formas de usar o potencial de cada tecnologia para assegurar proteção em suas diversas cenas. Para além disso, é importante reconhecer que a PrEP criou, sim, novas condições para as cenas sexuais, em muitos casos eliminando negociações sobre o uso do preservativo, como mostram estudos com homens gays, que com frequência declaram publicamente seu uso de PrEP, principalmente em aplicativos de encontro 66. Dos Santos LA, Grangeiro A, Couto MT. HIV pre-exposure prophylaxis (PrEP) among men who have sex with men: peer communication, engagement and social networks. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3923-37.. Estamos, assim, diante de uma nova era da epidemia, em que comunidades mais afetadas reformularam suas práticas sexuais, como fizeram ao incorporar o preservativo, as práticas soroadaptativas e, agora, a PrEP e o tratamento como prevenção (TasP). Mais uma vez, precisamos aprender com essas comunidades e pensar em como usar, nas políticas públicas, essas inovações em benefício dos ainda mais vulneráveis, como adolescentes gays e trans.
Reiterando nossa compreensão de que somente políticas fortes e democráticas reverterão o crescimento da epidemia entre jovens, não chamaríamos a necessidade de extrapolar a prevenção das instituições, representadas pelos serviços e profissionais de saúde, de uma “desinstitucionalização da prevenção”. Preferimos “ampliação da institucionalização”, reconhecendo que ações comunitárias sustentáveis exigem políticas que promovam o financiamento, apoio técnico e articulação com o sistema de saúde. Destacamos esse fato por alguns paradoxos: embora as ações comunitárias tenham um papel chave na resposta à epidemia, seu financiamento nacional e internacional, a partir dos anos 2000, reduziu drasticamente; apesar do caráter contínuo das ações comunitárias, o apoio público permanece, por mais de 40 anos, sendo realizado por editais voltados a projetos pontuais; e, embora as formas de organização social tenham se multiplicado, a relação política pública-comunidade permanece priorizando organizações não governamentais formais.
Ademais, é importante reconhecer que universalização e equidade, no sistema brasileiro, são absolutamente dependentes dos serviços e profissionais de saúde, e que o Sistema Único de Saúde (SUS) está organizado com base em ações na comunidade e no território, com privilégio para a integração entre vigilância em saúde e atenção básica. Nesse sentido, chamamos, novamente, a atenção para a menor priorização do HIV e a diminuição do financiamento federal dos programas governamentais descentralizados, com o enfraquecimento e, por vezes, o desaparecimento deles em estados e municípios.
Assim, as propostas de Barreira & Alencar de salto programático, desinstitucionalização e instituição da oferta da prevenção na primeira oportunidade, de forma simples e ágil, só serão alcançadas, no nosso entendimento, com a profunda reformulação das políticas de financiamento, visando à institucionalização, ampliação e articulação entre as respostas governamental e comunitária.
Nesse mesmo sentido, queremos destacar o papel da educação, em sinergia ao que Barreira & Alencar chamaram de direito à informação e Paiva & Ayres de letramento dos jovens e com os jovens. Ao nosso ver, esse processo não poderá prescindir do Programa Saúde nas Escolas. Em consonância com a Base Nacional Comum Curricular, esse é o ambiente mais provável para a construção de projetos de vida, considerando a singularidade e compreensão ampliada e plural de juventudes. Assim como é nesse ambiente de aprendizado colaborativo que adolescentes podem se apropriar da produção e circulação de conhecimento e desenvolver, criticamente, repertórios sobre saúde, métodos preventivos e direitos humanos.
Por último, chamamos a atenção para o ponto fundamental e que une a nossa visão, a de Paiva & Aires e de Barreira & Alencar: o enfrentamento da epidemia como um bem comum, construído a partir da comunidade. É frequente, no campo do HIV, usarmos o termo comunidade para nos referirmos às organizações da sociedade e aos movimentos sociais. Parece-nos, porém, que as mudanças evocadas no primeiro artigo deste debate 33. Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223. - organização dos jovens em coletivos, ampliação do movimento LGBTQIA+, novos modos de performar gênero e sexualidade - nos obrigam a redefinir essa compreensão. Um caminho promissor é adotar a perspectiva interseccional como base da resposta programática articulada junto com as comunidades, tal como elas se organizam e criam sentidos para suas lutas. Vale relembrar que a comunidade que construiu a bem-sucedida resposta brasileira foi formada por governos, sociedade civil e academia. Essa é, portanto, a comunidade que precisa ser resgatada e fortalecida. Os espaços de participação social e o diálogo com o conhecimento científico foram gravemente fragilizados nos últimos anos, reflexo do autoritarismo. Entendemos que esses espaços estão em reconstrução e queremos, aqui, valorizar esse processo e provocar a reflexão sobre a necessidade de reinventar formas de participação, políticas e práticas de saúde.
Agradecimentos
Agradecemos aos participantes, profissionais, pesquisadores, parceiros institucionais e financiadores (Unitaid, Organização Mundial da Saúde - OMS - e Ministério da Saúde do Brasil), que contribuíram para o desenvolvimento do Estudo PrEP1519 e permitiram acumular os conhecimentos apresentados neste trabalho.
Referências
- 1Barreira D, Alencar TMD. Rethinking HIV prevention in young people: "hierarchization" or "deinstitutionalization"? Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00164823.
- 2Paiva VSF, Ayres JRCM. Human rights, vulnerability, and critical reflection on HIV/AIDS prevention in the syndemic context. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00186423.
- 3Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223.
- 4Galvão J. Brazil and access to HIV/AIDS drugs: a question of human rights and public health. Am J Public Health 2005; 95:1110-6.
- 5Mabire X, Puppo C, Morel S, Mora M, Rojas Castro D, Chas J, et al. Pleasure and PrEP: pleasure-seeking plays a role in prevention choices and could lead to PrEP initiation. Am J Mens Health 2019; 13:1557988319827396.
- 6Dos Santos LA, Grangeiro A, Couto MT. HIV pre-exposure prophylaxis (PrEP) among men who have sex with men: peer communication, engagement and social networks. Ciênc Saúde Colet 2022; 27:3923-37.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
31 Out 2023 - Aceito
03 Nov 2023