Organização da atenção primária à saúde de municípios de São Paulo, Brasil: modelo de atenção e coerência com as diretrizes do Sistema Único de Saúde

Organización de la atención primaria de salud de municipios de São Paulo, Brasil: modelo de atención y coherencia con las directrices del Sistema Único de Salud

Elen Rose Lodeiro Castanheira Lígia Schiavon Duarte Mônica Martins de Oliveira Viana Luceime Olívia Nunes Thais Fernanda Tortorelli Zarili Carolina Siqueira Mendonça Patricia Rodrigues Sanine Sobre os autores

Resumo:

Este trabalho tem como objetivo analisar os principais padrões de organização das redes municipais de serviços de atenção primária à saúde (APS) e avaliá-los segundo os indicadores de interface entre gestão e gerenciamento local. Trata-se de pesquisa avaliativa que analisou 461 municípios de São Paulo, Brasil, que participaram do Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB) em 2017/2018, classificados segundo a composição dos arranjos organizacionais de 2.472 serviços de APS. Para avaliar os padrões identificados, foram selecionados oito indicadores de gestão e gerenciamento local. Os resultados apontam dois grupos de municípios: homogêneos, com serviços de um mesmo arranjo (43,6%); e heterogêneos, com diferentes arranjos (56,4%). Os grupos foram subdivididos em sete padrões que variaram entre homogêneo-tradicional, homogêneo-Estratégia Saúde da Família, homogêneo-misto e diferentes combinações no grupo heterogêneo. Todos os indicadores apontaram diferenças significativas entre os grupos (p < 0,001), com destaque para o grupo homogêneo-tradicional, com padrão organizacional distante do modelo desejado para uma APS abrangente e resolutiva, enquanto aqueles com unidades de saúde da família (USF), e com unidades básicas com agentes comunitários de saúde e/ou equipes de saúde da família (UBS/USF) demonstraram um padrão mais aproximado desse modelo - com ações de planejamento e avaliação comprometidos com a realidade local e com a qualificação do trabalho. Discute-se a importância das políticas implementadas pela gestão federal e estadual e seu poder de indução na definição do modelo de atenção à saúde na APS dos municípios.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Modelos de Assistência à Saúde; Avaliação de Serviços de Saúde; Organização e Administração

Resumen:

El trabajo tiene el objetivo de analizar los principales patrones de organización de las redes municipales de servicios de atención primaria de salud (APS) y evaluarlos conforme los indicadores de interfaz entre la dirección y gestión local. Se trata de una investigación evaluativa que analizó 461 municipios de São Paulo, Brasil, que participaron de la Encuesta de Evaluación de la Calidad de los Servicios de Atención Primaria (QualiAB) en 2017/2018, clasificados según la composición de los arreglos organizativos de 2.472 servicios de APS. Para evaluar los patrones identificados, se seleccionaron ocho indicadores de dirección y gestión local. Los resultados indican dos grupos de municipios: homogéneos, con servicios de un mismo arreglo (43,6%) e heterogéneos, con arreglos diferentes (56,4%). Los grupos se subdividieron en siete patrones que iban desde homogéneo-tradicional, homogéneo-Estrategia de Salud de la Familia, homogéneo-mixto y diferentes combinaciones en el grupo heterogéneo. Todos los indicadores señalaron diferencias significativas entre los grupos (p < 0,001), con destaque para el grupo homogéneo-tradicional, con patrón organizativo alejado del modelo deseado para una APS completa y resolutiva, mientras aquellos con unidades de salud de la familia (USF), y con unidades básicas con agentes comunitarios de salud y/o equipos de salud de la familia (UBS/USF) demostraron un patrón más cercano a este modelo -con acciones de planificación y evaluación comprometidas con la realidad local y con la calificación del trabajo. Se discute la importancia de las políticas implementadas por la gestión federal y la gestión estatal y su poder de inducción para definir el modelo de atención a la salud en la APS de los municipios.

Palabras-clave:
Atención Primaria de Salud; Modelos de Atención de Salud; Evaluación de Servicios de Salud; Organización y Administración

Introdução

No Brasil, a estruturação de serviços de atenção primária à saúde (APS), especialmente quando organizados segundo o modelo Estratégia Saúde da Família (ESF), constitui-se em um importante diferencial para a consolidação dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e para a obtenção de melhores resultados em prol de um cuidado mais equânime, abrangente e universal 11. Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de atenção primária à saúde que traz resultados. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):18-37.,22. Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da atenção primária à saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):208-23..

Contudo, a consolidação das diretrizes contidas na proposta da ESF não ocorreu de modo homogêneo e tem sido ainda mais comprometida por instabilidades e retrocessos políticos ao longo dos últimos anos. O enfraquecimento das políticas de valorização da APS, agravado pela pandemia de COVID-19, também tem sido relatado em âmbito internacional 33. Giovanella L, Mendonça MHM, Buss PM, Fleury S, Gadelha CAG, Galvão LAC, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00012219.. Em países como Inglaterra, Canadá e França, em que, à semelhança do Brasil, há a estruturação de sistemas em que a APS desempenha papel central na organização da rede, reitera-se o cenário de crise provocada pelo liberalismo econômico associado à austeridade fiscal, que tem precarizado esse nível de atenção, comprometendo o cuidado comunitário e abrangente, assim como o sistema de saúde como um todo 33. Giovanella L, Mendonça MHM, Buss PM, Fleury S, Gadelha CAG, Galvão LAC, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00012219.,44. Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saúde Pública 2020; 36:e00040220.,55. Cordilha AC, Lavinas L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2147-58.,66. Filippon J, Giovanella L, Konder M, Pollock AM. A "liberalização" do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra: trajetória e riscos para o direito à saúde. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00034716.,77. Brandão JRM. A atenção primária à saúde no Canadá: realidade e desafios atuais. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00178217..

Esse cenário internacional encontra ressonância no Brasil, como nas mudanças deflagradas a partir de 2017. A passagem de um subfinanciamento crônico para um desfinanciamento e a implementação de medidas que favorecem a privatização e a focalização social - que prioriza a assistência para os que não têm acesso ao setor privado de planos e seguros de saúde 44. Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saúde Pública 2020; 36:e00040220.,88. Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1723-8.,99. Melo EA, Mendonça MHM, Oliveira JR, Andrade GCL. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):38-51. - são exemplos de proposições políticas que acentuam o modelo biomédico privatista. A aprovação do programa Previne Brasil denuncia esse movimento, que coloca em risco o direito universal à saúde sob o falacioso argumento da ineficiência da gestão pública 33. Giovanella L, Mendonça MHM, Buss PM, Fleury S, Gadelha CAG, Galvão LAC, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00012219.,44. Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saúde Pública 2020; 36:e00040220.,55. Cordilha AC, Lavinas L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2147-58.,66. Filippon J, Giovanella L, Konder M, Pollock AM. A "liberalização" do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra: trajetória e riscos para o direito à saúde. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00034716.,77. Brandão JRM. A atenção primária à saúde no Canadá: realidade e desafios atuais. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00178217.,1010. Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciênc Saúde Colet 2020; 25:1475-82.,1111. Miranda AS. A focalização utilitária da atenção primária à saúde em viés tecnocrático e disruptivo. Saúde Debate 2020; 44:1214-30.,1212. Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00164621..

Nessa conjuntura, além da necessidade de alteração das políticas de financiamento e qualificação da APS, pela gestão federal e estadual, destaca-se a posição estratégica dos gestores municipais enquanto agentes-chave na orientação das práticas e incorporação das diretrizes nos serviços de seus territórios, uma vez que são diretamente responsáveis pela organização da rede municipal de serviços de APS, incluindo a gestão do conjunto de recursos disponíveis e a definição das bases do modelo assistencial 1313. Noronha JC, Lima LD, Machado CV. O Sistema Único de Saúde - SUS. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, editors. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2nd Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 365-93.,1414. Araújo CEL, Gonçalves GQ, Machado JA. Os municípios brasileiros e os gastos próprios com saúde: algumas associações. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:953-63.,1515. Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, Schiesari LMC, Bigoni A, Costa CF, et al. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a Covid-19: uma análise preliminar. Saúde Debate 2022; 46(n.esp. 1):15-32.,1616. Duarte LS, Mendes A, Louvison MCP. O processo de regionalização do SUS e a autonomia municipal no uso dos recursos financeiros: uma análise do estado de São Paulo (2009-2014). Saúde Debate 2018; 42:25-37..

Num contexto de reiterada contraposição e disputa de projetos de saúde, mas também de expectativas da retomada de políticas de fortalecimento do SUS, analisar os diferentes arranjos organizacionais de APS no período que antecedeu tais mudanças políticas fornece elementos para melhor compreender o presente e as medidas necessárias para a efetivação da APS como ordenadora do cuidado e nível estratégico do sistema de saúde. Além disso, permite refletir sobre o papel da gestão municipal na indução do modelo de atenção à saúde, as implicações para as práticas em saúde e para a reprodução das necessidades sociais de saúde 1717. Paim JS. Modelos de atenção à saúde no Brasil. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, editors. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2nd Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 459-93.,1818. Paim JS. Da teoria do processo de trabalho em saúde ao modelo de atenção. In: Ayres JRCM, Santos L, editors. Saúde, sociedade e história. São Paulo: Hucitec Editora/Editora Rede Unida; 2017. p. 375-92., o que assume renovado interesse no cenário atual.

Dada a complexidade inerente às discussões acerca da organização de serviços de APS, dentro da perspectiva de políticas públicas e modelos de atenção, bem como da relevância da análise das práticas de saúde e seu gerenciamento, considera-se que estudos visando às interfaces da gestão municipal com a organização dos processos de trabalho poderão auxiliar nas reflexões sobre a incorporação das diretrizes ético-políticas do SUS para a APS e suas práticas.

Nessa perspectiva, a experiência paulista mostra-se um rico cenário para a discussão proposta, dada a diversidade de arranjos operacionalizados na APS, e suas diferentes capacidades de respostas 1919. Sanine PR, Dias A, Castanheira ERL. Saúde da criança na atenção primária do estado de São Paulo: a repercussão dos diferentes arranjos organizacionais na qualidade dos serviços. Rev APS 2021; 24:353-66.,2020. Pupo LR, Rosa TEC, Sala A, Feffermann M, Alves MCGP, Morais MLS. Saúde mental na atenção básica: identificação e organização do cuidado no estado de São Paulo. Saúde Debate 2020; 44 (n.esp. 3):107-27.,2121. Castanheira ERL, Nemes MIB, Zarili TFT, Sanine PR, Corrente JE. Avaliação de serviços de atenção básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB. Saúde Debate 2014; 38:679-91., e o acúmulo no debate sobre modelos de atenção à saúde e proposição de políticas públicas - historicamente inspiradas em experiências e reflexões críticas sobre a APS realizadas nesse estado 2222. Mota A, Schraiber LB. Atenção primária no sistema de saúde: debates paulistas numa perspectiva histórica. Saúde Soc 2011; 20:837-52..

Tendo em vista esse panorama, questiona-se: “Quais as diferentes formas de organização da rede básica que podem ser identificadas em municípios do Estado de São Paulo?”, “Quais dessas organizações mantêm-se permeáveis às diretrizes da ESF?”, “Indicadores que reflitam interfaces entre gestão municipal e gerência local dos serviços diferenciam os modelos de organização da rede básica?”.

Assim, este trabalho analisa os principais padrões de organização das redes básicas de São Paulo, Brasil, e os avalia segundo os indicadores de interface entre gestão e gerenciamento local, utilizando como critério avaliativo a presença de componentes necessários a um modelo de atenção integral à saúde.

Metodologia

Trata-se de pesquisa avaliativa, de natureza quantitativa e corte transversal, dos municípios paulistas que participaram do Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB) em 2017, categorizados segundo os arranjos organizacionais dos serviços de APS que compõem a rede básica.

A identificação de padrões organizacionais da rede básica municipal, a partir de dados levantados pelo QualiAB, foi possível por ser um instrumento validado 2323. Zarili TFT, Castanheira ERL, Nunes LO, Sanine PR, Carrapato JFL, Machado DF, et al. Técnica Delphi no processo de validação do Questionário de Avaliação da Atenção Básica (QualiAB) para aplicação nacional. Saúde Soc 2021; 30:e190505.,2424. Castanheira ERL, Nemes MIB, Almeida MAS, Puttini RF, Soares ID, Patrício KP, et al. QualiAB: desenvolvimento e validação de uma metodologia de avaliação de serviços de atenção básica. Saúde Soc 2011; 20:935-47. que inclui, no processo avaliativo, diferentes tipologias de serviços segundo sua autoclassificação. O questionário QualiAB (https://abasica.fmb.unesp.br/) é respondido pelo gerente local ou responsável pela coordenação da unidade, em diálogo com a equipe, a partir de adesão voluntária de municípios e unidades. Permite a formulação de indicadores relativos tanto à organização das ações de atenção à saúde como ao gerenciamento local 2424. Castanheira ERL, Nemes MIB, Almeida MAS, Puttini RF, Soares ID, Patrício KP, et al. QualiAB: desenvolvimento e validação de uma metodologia de avaliação de serviços de atenção básica. Saúde Soc 2011; 20:935-47.. Além disso, apresenta boa adesão de gestores das diversas regiões do Estado de São Paulo e já demonstrou um alto poder avaliativo, a partir de diferentes recortes 2525. Castanheira ERL. Caderno de boas práticas para organização dos serviços de atenção básica: critérios e padrões de avaliação utilizados pelo Sistema QualiAB. Botucatu: Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho; 2016.,2626. Placideli N, Castanheira ERL, Dias A, Silva PA, Carrapato JLF, Sanine PR, et al. Evaluation of comprehensive care for older adults in primary care services. Rev Saúde Pública 2020; 54:6.,2727. Nunes LO, Castanheira ERL, Dias A, Zarili TFT, Sanine RR, Mendonça CS, et al. Importância do gerenciamento local para uma atenção primária à saúde nos moldes de Alma-Ata. Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e175.,2828. Sanine PR, Zarili TFT, Nunes LO, Dias A, Castanheira ERL. Do preconizado à prática: oito anos de desafios para a saúde da criança em serviços de atenção primária no interior de São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00094417.,2929. Castanheira ERL, Nunes LO, Carrapato JFL, Sanine PR, Zarili TFT, Mendonça CS, et al. Avaliação de serviços de atenção básica pelo sistema QualiAB: desenvolvimento e análise (2006-2018). In: Akerman M, Sanine PR, Caccia-Bava MCGG, Marim FA, Louvison MCP, Hirooka LB, et al., editors. Atenção básica é o caminho! Desmontes, resistências e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para a avaliação e pesquisa na APS: a resposta do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) para a avaliação da atenção primária à saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2020. p. 371-96.,3030. Oliveira AV, Sabino BCN, Dias LR, Gouvea ABV, Garbelini GU, Paiva IG, et al. Avaliação da longitudinalidade em unidades básicas de saúde tradicionais e com estratégia de saúde da família utilizando o Primary Care Assessment Tool (PCATool). Revista Eletrônica Acervo Saúde 2020; 12:e3895..

Para definição de padrões municipais, os arranjos organizacionais autoidentificados pelas unidades foram agregados em três tipos: unidades de saúde da família - USF; unidades básicas tradicionais - UBS (unidades sem equipes de saúde da família - EqSF - e sem agentes comunitários de saúde - ACS -, integradas ou não à unidade de pronto atendimento, e postos avançados com equipes volantes); e unidades UBS/USF (unidades autodefinidas como UBS, com programa de ACS e/ou EqSF; e unidades autodefinidas como USF integradas à unidade de pronto atendimento). Essa classificação foi utilizada para identificar os padrões municipais de organização da APS segundo os tipos de serviços que compõem a rede básica de cada município.

Integraram o estudo 2.472 serviços de 461 municípios, do total de 2.743 serviços localizados em 595 municípios que participaram do inquérito. O critério de inclusão dos municípios foi a proporção de serviços de APS que responderam ao QualiAB, variando conforme o total de unidades existentes em cada um, de modo a manter a representatividade da rede municipal. Para a inclusão dos municípios com mais de seis serviços, foi considerada adesão de 75% ou mais do total de unidades; municípios com três a seis serviços - adesão de 2/3 das unidades; e nos municípios com dois serviços - adesão de um serviço (50% dos serviços do município). A variabilidade de critérios segundo o total de serviços foi uma forma de incluir os pequenos municípios, mantendo o critério de maioria simples, uma vez que o corte de 75% os excluiria.

Considerando o papel chave da interação entre a gestão municipal e a gerência local no processo de atenção à saúde, orientadas pelas diretrizes do SUS para a APS até 2017, selecionou-se indicadores referentes à gestão local cuja ocorrência depende de orientação ou autorização da gestão municipal de nível central. Entre os indicadores gerados pelas questões de múltipla escolha que compõem o instrumento QualiAB, foram selecionados oito indicadores de processo que permitiram mensurar a indução da gestão municipal na organização das unidades. Os indicadores selecionados foram agrupados em três domínios de análise (planejamento; gestão; e avaliação) detalhados no Quadro 1.

Quadro 1
Indicadores de gerenciamento local interdependentes da gestão municipal da saúde, segundo três domínios. Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), São Paulo, Brasil, 2017.

Para avaliar os padrões das redes municipais de APS que pudessem identificar a indução de modelos de atenção operacionalizados nos serviços de APS, realizou-se a associação da tipologia municipal com os indicadores selecionados por meio da distribuição das frequências das variáveis, por teste do qui-quadrado com correção de Bonferroni, seguidos da aplicação de teste Z para proporções, nas estimativas estatisticamente significativas (p ≤ 0,05). Utilizou-se, para tais análises, o programa IBM SPSS v. 25.0 (https://www.ibm.com/).

Resultados

A identificação de padrões de organização das redes municipais de atenção básica foi realizada a partir do reconhecimento de dois grandes grupos em relação à composição dos serviços de APS: municípios com uma rede “homogênea”, ou seja, com todos os serviços de um mesmo tipo; e municípios com uma rede “heterogênea”, ou seja, composta por dois ou mais tipos de serviços de APS. A divisão interna desses dois grupos resultou em sete subgrupos de municípios, segundo os arranjos organizacionais dos serviços de APS (Quadro 2).

Quadro 2
Padrões da rede municipal de atenção básica segundo a composição de serviços de atenção primária à saúde (APS). Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), São Paulo, Brasil, 2017.

Dos 461 municípios avaliados, 201 (43,6%) classificaram-se como homogêneos e 260 (56,4%) como heterogêneos (Tabela 1).

Tabela 1
Padrões da rede municipal de atenção básica segundo a distribuição dos arranjos organizacionais dos serviços e de acordo com a razão de serviços por município. Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), São Paulo, Brasil, 2017.

Embora grande parte dos 2.472 serviços que integram o estudo se caracterizem como USF (n = 1.138), os 48 municípios que apresentaram serviços somente com esse tipo de arranjo organizacional (homogêneo-ESF) representam apenas 10,4% do universo estudado. No padrão homogêneo, concentraram-se municípios com um menor número de serviços, sendo que a subcategoria homogêneo-misto destaca-se por conter o maior número de municípios (n = 103) e a menor razão de serviços por município (1,41) (Tabela 1).

O grupo heterogêneo reuniu municípios com maior número de serviços, com uma razão de 8,05 serviços por município, chamando a atenção para o subgrupo heterogêneo-ESF, tradicional e misto que apresentou uma razão de 11,18. Destaca-se que é também nesse subgrupo de municípios que se concentrou o maior número de USF, que somada à presença no subgrupo heterogêneo-ESF e tradicional e no heterogêneo-ESF e misto representou 89,4% das USF participantes (Tabela 1).

Ainda na Tabela 1, evidenciou-se que os municípios classificados como homogêneo-misto (22,3% do total) e heterogêneo-ESF, tradicional e misto (20,2% do total) foram os de maior representação no universo de municípios estudados, colocando em destaque a presença de unidades UBS/USF, ou seja, serviços organizados no arranjo tradicional, mas que integram componentes da ESF em suas composições, como EqSF e/ou ACS.

Para conhecer melhor o perfil dos municípios que compuseram cada um dos referidos grupos, realizou-se a distribuição dos municípios por estrato populacional, segundo a classificação municipal. Tal análise permitiu observar que os municípios com até 10 mil habitantes (n = 203) são, em sua maioria, homogêneos (72,4%), marcadamente constituídos por unidades UBS/USF (44,3%). Já nos municípios com mais de 10 mil habitantes, os heterogêneos ganham importância conforme aumenta o porte populacional (Tabela 2).

Tabela 2
Padrões da rede municipal de atenção básica segundo extrato populacional. Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), São Paulo, Brasil, 2017.

Dos 172 municípios com população entre 10 mil e 50 mil habitantes, 73,8% concentraram-se na tipologia heterogênea, sobretudo nos grupos heterogêneo-ESF e mistos e no heterogêneo-ESF, tradicional e misto (25,6% e 25%, respectivamente) (Tabela 2).

Entre aqueles com mais de 50 mil habitantes, 89,5% têm redes básicas heterogêneas, constituídas principalmente por municípios com padrão heterogêneo-ESF, tradicional e misto, e heterogêneo- ESF e tradicionais (48,8% e 22,1%, respectivamente). Nesse conjunto de 77 municípios de maior porte populacional, apenas nove foram classificados como homogêneos, sendo sete deles com serviços tradicionais e dois com unidades UBS/USF (Tabela 2).

A associação dos sete grupos de municípios, classificados segundo a composição da rede básica, com os indicadores selecionados apontou diferenças significativas entre eles (p < 0,001) (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição de municípios com padrões homogêneos e heterogêneos segundo indicadores de gestão selecionados por domínio. Inquérito de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), São Paulo, Brasil, 2017.

Ao considerarmos a correção pelo teste Z, os dois grupos que se destacam com diferenças significativas entre si em todos os indicadores são os homogêneo-tradicional e os homogêneo-ESF. Por outro lado, os municípios classificados como homogêneo-misto e como heterogêneo-ESF/misto apresentam proporções que não os diferenciam do homogêneo-ESF em quase todos os indicadores. Os municípios com redes que incluem os diferentes tipos de serviços considerados - heterogêneos-ESF, tradicional e misto - apresentam indicadores que ora se aproximam daqueles com ESF, ora se aproximam dos que incluem serviços tradicionais (Tabela 3).

De um modo geral, os municípios classificados como homogêneo-tradicional foram os que menos concentraram serviços com apoio técnico externo, que participaram de processos avaliativos organizados pela gestão federal e/ou estadual e que utilizaram seus resultados para o planejamento da assistência ou reorganização das estratégias. Também foram os que menos concentraram serviços que realizavam levantamento de informações sobre a realidade local (Tabela 3).

Entre os indicadores de planejamento, a “definição da área de abrangência realizada por planejamento participativo, considerando a realidade local”, é a base para o processo de territorialização. Entretanto, a maior frequência ocorreu apenas nas redes homogêneas ESF e mista (39,7% e 44,1%), que, mesmo sem ser elevadas, diferenciam-se das demais, uma vez que todos que têm um componente tradicional aproximaram-se pela menor ocorrência desse indicador (Tabela 3).

A “utilização dos dados de produção assistencial somente pela gestão municipal” também aproxima os municípios com componente tradicional; enquanto, “utilização dos dados da produção assistencial para orientar e planejar as ações da unidade”, com foco no planejamento local, apresenta maior frequência e não diferencia os grupos homogêneos-ESF e misto e os heterogêneos-ESF/misto. Comportamento semelhante se dá em relação ao levantamento da realidade local (Tabela 3).

Merecem destaque os grupos que concentraram maior número de serviços com uma periodicidade semanal ou quinzenal das reuniões de equipe, prática realizada em grande parte dos serviços localizados nos municípios do grupo homogêneo-ESF e heterogêneo-ESF e mistos (66,9% e 62%, respectivamente). Chama a atenção que, em relação a esse indicador, apenas 36,6% dos serviços do grupo homogêneo-misto relataram uma periodicidade semanal ou quinzenal das reuniões de equipe, aproximando-se do que ocorre nos grupos com componentes tradicionais (Tabela 3).

Já o “apoio técnico por Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e/ou equipe multiprofissional externa à equipe da unidade” mostrou-se frequente em todas as diferentes composições da rede municipal, com exceção da homogênea-tradicional.

De fato, os municípios classificados como homogêneo-ESF e homogêneo-misto apresentaram resultados semelhantes aos municípios heterogêneo-ESF e mistos em grande parte dos indicadores; em especial, aqueles que demonstram uma conformação com o preconizado no modelo da ESF, como ao concentrarem municípios com maior número de serviços de APS que declararam ter participado dos processos avaliativos organizados pela gestão federal e/ou estadual e que utilizavam os resultados das avaliações anteriores para o planejamento da assistência ou reorganização das estratégias do serviço (Tabela 3).

Discussão

Foram identificados diferentes padrões na organização da APS em um número expressivo de municípios paulistas. Corroborando evidências dessa diversidade em outras regiões do país 11. Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de atenção primária à saúde que traz resultados. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):18-37.,3131. Santos NCCB, Vaz EMC, Nogueira JA, Toso BRGO, Collet N, Reichert APS. Presença e extensão dos atributos de atenção primária à saúde da criança em distintos modelos de cuidado. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00014216., a análise dos resultados apontou que a ESF pode ser considerada como um modelo que tem orientado os arranjos organizacionais de serviços de APS no Estado de São Paulo, ainda que não tenha sido plenamente incorporada como modelo substitutivo. Sustenta tal afirmação o fato de, mesmo com grande heterogeneidade de arranjos organizacionais, os indicadores evidenciarem ações, que configuram condições para implementação de práticas guiadas pelas diretrizes da ESF e que não tenham associação direta com ações de atenção à saúde, indica mecanismos que as viabilizam e fortalecem.

Apesar da presença majoritária do arranjo ESF entre os serviços participantes, foi possível identificar a tendência dos municípios menores, com um ou dois serviços de APS no seu território, terem redes do tipo misto, com unidades UBS/USF. A presença de EqSF e/ou ACS integrados à organização dos processos de trabalho amplia as possibilidades de reprodução do mesmo padrão de respostas dos serviços operacionalizados segundo o arranjo ESF, o que já vem sendo evidenciado em outros estudos avaliativos e tende a diferenciá-los em relação às unidades tradicionais 1919. Sanine PR, Dias A, Castanheira ERL. Saúde da criança na atenção primária do estado de São Paulo: a repercussão dos diferentes arranjos organizacionais na qualidade dos serviços. Rev APS 2021; 24:353-66.,2121. Castanheira ERL, Nemes MIB, Zarili TFT, Sanine PR, Corrente JE. Avaliação de serviços de atenção básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB. Saúde Debate 2014; 38:679-91.,3131. Santos NCCB, Vaz EMC, Nogueira JA, Toso BRGO, Collet N, Reichert APS. Presença e extensão dos atributos de atenção primária à saúde da criança em distintos modelos de cuidado. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00014216.,3232. Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1903-14.,3333. Lopes RC, Pavan MV, Almeida FA. Desafios para a implantação da Estratégia de Saúde da Família em municípios de grande porte no Brasil. Um estudo de caso. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba 2021; 23:59-66..

Ao mesmo tempo, os resultados confirmam o grande número de municípios com redes heterogêneas como heterogêneo-ESF, tradicional e misto, compostos na maior parte por municípios com mais de 50 mil habitantes, mas que inclui também parte expressiva dos municípios com 10 mil a 50 mil habitantes. Essa elevada frequência de municípios com os três tipos de serviços coincide com as indicações de outros estudos sobre a coexistência de diferentes arranjos de APS nos municípios paulistas 1919. Sanine PR, Dias A, Castanheira ERL. Saúde da criança na atenção primária do estado de São Paulo: a repercussão dos diferentes arranjos organizacionais na qualidade dos serviços. Rev APS 2021; 24:353-66.,2020. Pupo LR, Rosa TEC, Sala A, Feffermann M, Alves MCGP, Morais MLS. Saúde mental na atenção básica: identificação e organização do cuidado no estado de São Paulo. Saúde Debate 2020; 44 (n.esp. 3):107-27.,2121. Castanheira ERL, Nemes MIB, Zarili TFT, Sanine PR, Corrente JE. Avaliação de serviços de atenção básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB. Saúde Debate 2014; 38:679-91.,2222. Mota A, Schraiber LB. Atenção primária no sistema de saúde: debates paulistas numa perspectiva histórica. Saúde Soc 2011; 20:837-52. e com a resistência de alguns deles, em especial, aqueles acima de 100 mil habitantes em aderir plenamente à ESF 3333. Lopes RC, Pavan MV, Almeida FA. Desafios para a implantação da Estratégia de Saúde da Família em municípios de grande porte no Brasil. Um estudo de caso. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba 2021; 23:59-66.,3434. Viana ALA, Rocha JSY, Elias PE, Ibañez N, Bousquat A. Atenção básica e dinâmica urbana nos grandes municípios paulistas, Brasil. Cad Saúde Pública 2008; 24 Suppl 1:S79-90..

O maior alinhamento às diretrizes da ESF foi encontrado nos municípios com arranjos ESF ou mistos, com predominância de apoio multiprofissional realizado pelo NASF e/ou equipe multiprofissional externa, o que pode ser tomado como um indicador, ainda que indireto, do trabalho interdisciplinar voltado para a integralidade do cuidado 11. Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de atenção primária à saúde que traz resultados. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):18-37.,22. Facchini LA, Tomasi E, Dilélio AS. Qualidade da atenção primária à saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate 2018; 42(n.esp. 1):208-23.. Tal resultado ganha maior relevância diante de apontamentos de que as mudanças na APS, preconizadas pelas políticas atuais, representam uma forte ameaça ao modelo assistencial que valoriza a integralidade e equidade do cuidado por meio da multiprofissionalidade das equipes 1212. Mendes A, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saúde Pública 2022; 38:e00164621..

Nesse sentido, destacam-se os municípios que compõem os grupos homogêneo-ESF, homogêneo-mistos e heterogêneo-ESF e mistos e que, assim, contam com EqSF e/ou atuação de ACS, cujos indicadores apontam maiores frequências na utilização dos dados de produção assistencial no planejamento das ações ofertadas pela unidade e no levantamento de dados para a compreensão da realidade local, o que sugere investimentos diferenciados em relação ao compromisso comunitário na organização de ações realizadas por esses serviços 3535. Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção primária à saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, editors. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2nd Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 493-545..

Nos municípios pertencentes aos grupos homogêneos ESF e misto, também ganha destaque a maior presença de definição da área de abrangência por meio de planejamento participativo considerando a realidade local, o que pode ser apontado como outra importante característica em relação ao tipo de territorialização e adscrição de clientela, processo que constitui atributo fundamental na orientação do modelo de atenção preconizado na ESF. Cabe salientar que, embora a necessidade de planejamento segundo a realidade local se imponha nas formulações de ações comunitárias e de cuidado abrangente, sua efetivação sempre se manteve como um desafio para o SUS; porém, assim como em outros países, está sob maior ameaça diante das medidas de austeridade fiscal instauradas como resposta à crise econômica 33. Giovanella L, Mendonça MHM, Buss PM, Fleury S, Gadelha CAG, Galvão LAC, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00012219.,55. Cordilha AC, Lavinas L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2147-58.,66. Filippon J, Giovanella L, Konder M, Pollock AM. A "liberalização" do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra: trajetória e riscos para o direito à saúde. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00034716.,77. Brandão JRM. A atenção primária à saúde no Canadá: realidade e desafios atuais. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00178217.,1010. Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciênc Saúde Colet 2020; 25:1475-82.,3636. Faria RM. A territorialização da atenção básica à saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2020; 25:4521-30..

A interpretação da maior participação nos processos avaliativos dos três grupos de municípios que tinham componentes da ESF e não serviços tradicionais merece prudência; pois, apesar de poder indicar maior envolvimento e/ou compreensão sobre os benefícios desses processos na melhoria da qualidade organizacional, também pode ser reflexo da indução dos modelos de avaliação implantados pelo Governo Federal - que até 2014 só permitiam a participação de serviços organizados no modelo ESF 3737. Silva RR, Gasparini MFV, Gomes PCIC, Akerman M. Avaliação da atenção básica no Brasil: lusco-fusco e aurora. In: Akerman M, Sanine PR, Caccia-Bava MCGG, Marim FA, Louvison MCP, Hirooka LB, et al., editors. Atenção básica é o caminho! Desmontes, resistências e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para a avaliação e pesquisa na APS: a resposta do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) para a avaliação da atenção primária à saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2020. p. 21-37.. Por outro lado, ao constatar que esses municípios foram os que concentraram maior número de serviços que afirmaram realizar a incorporação dos resultados dos processos avaliativos no planejamento de suas ações, é possível reafirmar a valorização dos processos avaliativos para a incorporação de mudanças nos processos de trabalho e, por decorrência, de melhoria da qualidade da assistência ofertada 3737. Silva RR, Gasparini MFV, Gomes PCIC, Akerman M. Avaliação da atenção básica no Brasil: lusco-fusco e aurora. In: Akerman M, Sanine PR, Caccia-Bava MCGG, Marim FA, Louvison MCP, Hirooka LB, et al., editors. Atenção básica é o caminho! Desmontes, resistências e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para a avaliação e pesquisa na APS: a resposta do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) para a avaliação da atenção primária à saúde. São Paulo: Hucitec Editora; 2020. p. 21-37.,3838. Sanine PR, Dias A, Machado DF, Zarili TFT, Carrapato JFL, Placideli N, et al. Influência da gestão municipal na organização da atenção à saúde da criança em serviços de atenção primária do interior paulista. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00242219..

Nos três grupos que mais apresentaram indicadores de componentes da ESF - homogêneo-ESF, homogêneo-mistos e heterogêneo-ESF e mistos -, destaca-se, também, a periodicidade das reuniões de equipe, semanal ou quinzenal. O que se mostra como condição para o trabalho em equipe, com capacidade de influenciar diretamente a coordenação do cuidado e possibilitar uma gerência participativa. Se, de fato, o espaço das reuniões pode ser absorvido por questões burocráticas e organizacionais, também é o espaço em que ocorre o planejamento e a discussão de casos 3939. Voltolini BC, Andrade SR, Piccoli T, Pedebôs LA, Andrade V. Reuniões da estratégia saúde da família: um dispositivo indispensável para o planejamento local. Texto Contexto Enferm 2019; 28:e20170477., de modo a viabilizar um trabalho em equipe.

Em que pese a grande heterogeneidade dos arranjos organizacionais, assim como evidenciado em serviços de APS de outros estados brasileiros 3131. Santos NCCB, Vaz EMC, Nogueira JA, Toso BRGO, Collet N, Reichert APS. Presença e extensão dos atributos de atenção primária à saúde da criança em distintos modelos de cuidado. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00014216., foi possível observar que os grupos de municípios homogêneo-ESF, homogêneo-misto e heterogêneo-ESF e mistos se destacaram positivamente em relação à maioria dos indicadores como condicionantes da gestão para um modelo de APS abrangente e integral. E que, por outro lado, o grupo homogêneo-tradicional, cujos serviços não são conformados por elementos relevantes do modelo ESF, destaca-se negativamente em relação às mesmas variáveis.

Dessa forma, pode-se constatar que o cenário apresentado aponta um alinhamento com o modelo da ESF no período estudado, mesmo que dentro da conformação de municípios com serviços do tipo UBS/USF. Tal tendência evidencia a posição estratégica dos gestores municipais na implementação de políticas que adaptem suas práticas à realidade local, pois mostra que as medidas organizativas, de planejamento e de gestão por eles tomadas assumem relevância ao permitir a realização de processos de trabalho com maior capacidade de resposta às necessidades de saúde de cada território. Também ressalta o poder indutivo das políticas federais e estaduais na incorporação desse modelo 4040. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,4141. Doricci GC, Guanes-Lorenzi C, Pereira MJB. O Programa Articuladores da Atenção Básica: uma proposta inovadora para qualificação da atenção básica. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:2073-82. pelas gestões municipais.

Considerando a relativa autonomia atribuída aos gestores municipais nas normativas atualmente vigentes em relação à gestão e financiamento da APS - que facultam aos municípios adaptarem as recomendações 1414. Araújo CEL, Gonçalves GQ, Machado JA. Os municípios brasileiros e os gastos próprios com saúde: algumas associações. Ciênc Saúde Colet 2017; 22:953-63.,1515. Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, Schiesari LMC, Bigoni A, Costa CF, et al. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a Covid-19: uma análise preliminar. Saúde Debate 2022; 46(n.esp. 1):15-32.,4242. Duarte LS, Viana MMO, Scalco N, Garcia MT, Felipe LV. Incentivos financeiros para mudança de modelo na atenção básica dos municípios paulistas. Saúde Soc 2023; 32:e210401pt. -, realça o papel estratégico dos processos de monitoramento e avaliação para a identificação e acompanhamento dos possíveis impactos das políticas de contrarreforma.

Nessa perspectiva, tais resultados se tornam preocupantes ao constatar que as normativas da gestão federal promulgadas nos últimos anos para esse nível de atenção, como a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 e o programa Previne Brasil, representam proposições que abrem espaço para a descaracterização da interdisciplinaridade das equipes, para a burocratização do papel dos ACS e para a redução das ações de promoção da saúde, prejudicando a consolidação de um trabalho na perspectiva da ESF. Mas, principalmente, impulsionando retrocessos na consolidação de uma APS forte e de um SUS público e universal 55. Cordilha AC, Lavinas L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:2147-58.,66. Filippon J, Giovanella L, Konder M, Pollock AM. A "liberalização" do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra: trajetória e riscos para o direito à saúde. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00034716.,77. Brandão JRM. A atenção primária à saúde no Canadá: realidade e desafios atuais. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00178217.,88. Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc Saúde Colet 2018; 23:1723-8.,1010. Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciênc Saúde Colet 2020; 25:1475-82.,1111. Miranda AS. A focalização utilitária da atenção primária à saúde em viés tecnocrático e disruptivo. Saúde Debate 2020; 44:1214-30..

Cumpre-se salientar a existência de limitações, como a utilização de indicadores, que, embora tenham se mostrado sensíveis para as associações estudadas, não permitiram uma maior aproximação na identificação do modelo de atenção operacionalizado nos serviços. Ademais, embora o universo analisado inclua um número relevante de municípios e serviços de APS, há de se considerar que se refere a um recorte estadual, de adesão voluntária, respondido pelo gerente da unidade e, portanto, sem considerar a perspectiva dos gestores para tal configuração da rede.

Entretanto, esta análise mostrou-se válida e replicável em outros contextos, proporcionando uma melhor compreensão da constituição das redes de atenção básica municipais, que inclui a organização da ESF e o tipo de incorporação da EqSF e/ou ACS. Permitiu, ainda, a identificação de elementos para o debate sobre as fragilidades existentes e alternativas de fortalecimento no processo de incorporação das diretrizes da ESF.

Considerações finais

Os resultados apontam uma expressiva presença da ESF num contexto de vigência da PNAB anterior, que priorizava claramente esse modelo de organização da atenção à saúde, incluindo repasses destinados à sua expansão. Mesmo num cenário em que convivem diferentes formas de organização dos serviços, as redes básicas municipais com a presença de EqSF e/ou ACS apresentaram características gerais mais próximas do preconizado pelas diretrizes do SUS para a APS, reforçando o poder de indução da gestão federal e estadual na mudança do modelo assistencial, e a posição estratégica dos gestores municipais na implementação de políticas que incidem sobre a organização das práticas de atenção.

A grande variedade de arranjos organizacionais identificados parece espelhar a construção histórica da APS no Estado de São Paulo, mas também sugere as escolhas políticas e institucionais realizadas pelos gestores municipais, que podem estar associadas a resistências profissionais em aderir a mudanças dos modelos tradicionais de atenção à saúde.

Os dados sugerem, ainda, que a sensibilização dos gestores para a incorporação da ESF tende a resultar na organização de serviços mais porosos aos incentivos e debates acerca da integralidade, avançando na consolidação do SUS. Assim, deve-se evitar que a heterogeneidade de arranjos existentes no contexto paulista seja explorada em nome da redução de práticas voltadas para a ESF, e, ao mesmo tempo, deve-se fortalecer as medidas que propiciem a incorporação das diretrizes da ESF na organização de serviços de APS.

Assim, ao evidenciar elementos estratégicos para o fortalecimento da APS, espera-se contribuir com a sensibilização dos três níveis de gestão para a importância da presença de EqSF e de ACS na (re)organização dos serviços, segundo as diretrizes de uma APS integral, com acesso universal e equânime e que fortaleçam os compromissos municipais com uma atenção de qualidade no SUS.

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    » https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Revisado
    05 Out 2023
  • Aceito
    10 Out 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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